A Águia, órgão do Movimento da Renascença Portuguesa, foi uma das mais importantes revistas do início do século XX em Portugal. No século XXI, a Nova Águia, órgão do MIL: Movimento Internacional Lusófono, tem sido cada vez mais reconhecida como "a única revista portuguesa de qualidade que, sem se envergonhar nem pedir desculpa, continua a reflectir sobre o pensamento português". 
Sede Editorial: Zéfiro - Edições e Actividades Culturais, Apartado 21 (2711-953 Sintra). 
Sede Institucional: MIL - Movimento Internacional Lusófono, Palácio da Independência, Largo de São Domingos, nº 11 (1150-320 Lisboa). 
Contactos: novaaguia@gmail.com ; 967044286. 

Donde vimos, para onde vamos...

Donde vimos, para onde vamos...
Ângelo Alves, in "A Corrente Idealistico-gnóstica do pensamento português contemporâneo".

Manuel Ferreira Patrício, in "A Vida como Projecto. Na senda de Ortega e Gasset".

Onde temos ido: Mapiáguio (locais de lançamentos da NOVA ÁGUIA)

Albufeira, Alcáçovas, Alcochete, Alcoutim, Alhos Vedros, Aljezur, Aljustrel, Allariz (Galiza), Almada, Almodôvar, Alverca, Amadora, Amarante, Angra do Heroísmo, Arraiolos, Assomada (Cabo Verde), Aveiro, Azeitão, Baía (Brasil), Bairro Português de Malaca (Malásia), Barcelos, Batalha, Beja, Belmonte, Belo Horizonte (Brasil), Bissau (Guiné), Bombarral, Braga, Bragança, Brasília (Brasil), Cacém, Caldas da Rainha, Caneças, Campinas (Brasil), Carnide, Cascais, Castro Marim, Castro Verde, Chaves, Cidade Velha (Cabo Verde), Coimbra, Coruche, Díli (Timor), Elvas, Ericeira, Espinho, Estremoz, Évora, Faial, Famalicão, Faro, Felgueiras, Figueira da Foz, Freixo de Espada à Cinta, Fortaleza (Brasil), Guarda, Guimarães, João Pessoa (Brasil), Juiz de Fora (Brasil), Lagoa, Lagos, Leiria, Lisboa, Loulé, Loures, Luanda (Angola), Mafra, Mangualde, Marco de Canavezes, Mem Martins, Messines, Mindelo (Cabo Verde), Mira, Mirandela, Montargil, Montijo, Murtosa, Nazaré, Nova Iorque (EUA), Odivelas, Oeiras, Olhão, Ourense (Galiza), Ovar, Pangim (Goa), Pinhel, Pisa (Itália), Ponte de Sor, Pontevedra (Galiza), Portalegre, Portimão, Porto, Praia (Cabo Verde), Queluz, Recife (Brasil), Redondo, Régua, Rio de Janeiro (Brasil), Rio Maior, Sabugal, Sacavém, Sagres, Santarém, Santiago de Compostela (Galiza), São Brás de Alportel, São João da Madeira, São João d’El Rei (Brasil), São Paulo (Brasil), Seixal, Sesimbra, Setúbal, Silves, Sintra, Tavira, Teresina (Brasil), Tomar, Torres Novas, Torres Vedras, Trofa, Turim (Itália), Viana do Castelo, Vigo (Galiza), Vila do Bispo, Vila Meã, Vila Nova de Cerveira, Vila Nova de Foz Côa, Vila Nova de São Bento, Vila Real, Vila Real de Santo António e Vila Viçosa.

domingo, 31 de agosto de 2008

Metamorfose



Dos acúleos o mel volta às folhas
no chão as camarinhas despem-se,
a língua mole escalda.
Água e pântano ou corpo rebentam
no frontispício desta calda.
O mel volta verme.


Ana Mª Costa
10 de abril de 2007

VIVA A CORAGEM DE QUEM LUTA PELA LIBERDADE, PELA DEMOCRACIA E PELO OCIDENTE!


«SUDÁRIO, ESCUDO VERMELHO E ESPADA»


Este é o meu comentário à coisa aqui embaixo. Não suporto o fundamentalismo islâmico, nem quem o apoia, e estou e sempre estarei solidário com os nossos militares que combatem contra a tirania no quadro das missões de paz determinadas pelas Nações Unidas. Acredito ser essa também a posição do MIL.


Klatuu Niktos

Nenhum soldado português para o Afeganistão!


Leio hoje no Açoriano Oriental que Portugal enviou hoje para Cabul, no Afeganistão, 42 militares portugueses... um pequeno biscate ao serviço do Império estadunidense, que interesses tem Portugal no Afeganistão que justifique colocar em risco a vida dos nossos militares?
Um país pobre como o nosso não tem coisas melhores nas quais gastar o suado dinheiro dos contribuintes a não ser nos desvarios imperiais e islamofóbicos dos Estados Unidos?
Os soldados portugueses têm mais que fazer que morrer ao serviço de potências estrangeiras completamente alheias aos interesses de Portugal. Tragam os nossos rapazes para casa e deixem-se de brincadeiras atlantistas.

Para o Fernando Pessoa

Em Deus não acreditavas
Nem nos homens
Nem em ti, sequer

Apenas na Pátria
Esse sonho teu maior
Do tamanho do próprio mar

Enquanto por cá estiveste, não te ouviram
Talvez agora te ouçam, te levem a sério
E então enfim sejas

Cadernos de Agostinho da Silva (excertos)


FERNÃO LOPES

Pouco se conhece de seguro sobre a vida de Fernão Lopes; deve ter nascido entre 1378 e 1383, na altura em que Portugal, como consequência da política externa de D. Fernando e do desenvolvimento da burguesia que não desejava estar por mais tempo sujeita aos nobres, atravessava a crise em que se punha em jogo a sua independência; o cronista devia ser de origem humilde, porque tinha parentes entre os mesteirais ou operários de Lisboa, e pelo conhecimento profundo que mostra da psicologia popular, o que não é, de facto, argumento muito sólido; há nele também uma intensa simpatia pelas possibilidades da «arraia miúda»; é uma simpatia que não o leva a ocultar os defeitos e as explosões de brutalidade, mas faz, no entanto, que tudo compreendamos como o resultado do estado social das classes popula­res e das circunstâncias de momento. Num documento de 1418 aparece Fernão Lopes como guarda-mor da Torre do Tombo, onde se guardavam as escrituras do reino; no ano seguinte é notário e talvez secretário particular de D. João I; em 1422 exerce este último cargo junto do Infante D. Fer­nando; em 1434, já no reinado de D. Duarte, recebe o encargo de escrever a história geral do reino, para o que foi necessário fazer viagens pelo país, em busca de documentos de cartórios e de pessoas que ainda soubessem dos factos a narrar; não sabemos hoje se Fernão Lopes se desempenhou inteira­mente da incumbência real, porque apenas nos restam em seu nome a Cró­nica de D. Pedro I, a Crónica de D. Fernando e a Crónica de D. João I (primeira e segunda parte); existem, nos textos autênticos de Fernão Lopes, várias referências a outras crónicas de reis da primeira dinastia, mas não parecem fornecer bases seguras de prova; a Crónica do Condestabre, que corre anónima, foi também atribuída a Fernão Lopes, mas talvez sem grande razão; em 1454, estando o cronista, segundo o dizer do documento, já muito velho e fraco, mandou D. Afonso V que se lhe desse a reforma e o substi­tuísse Gomes Fanes de Azarara; a última notícia que temos de Fernão Lopes é de 3 de Julho de 1459: teria talvez falecido pouco depois. Os tra­balhos de Fernão Lopes constituem um dos escritos históricos mais vivos, mais pitorescos, mais coloridos, mais dramáticos, que existem em qualquer literatura ; colocando-se facilmente acima de Lopez de Ayala, o cronista castelhano, e de Froissart, o cronista francês, Fernão Lopes dá-nos perfeito exemplo do historiador que sabe ver no passado um trecho de vida e o anima com toda a sua experiência dos homens, todo o seu sentido psicológico, todo o seu entusiasmo pelo que narra, ao mesmo tempo que uma inteligência pe­netrante, uma grande imparcialidade, um saber que não é erudição, um fundo de ironia popular tornam mais reais as suas páginas e moderam o que podia haver de excessivo sentimento; através de toda a sua obra, Fernão Lopes aparece-nos como uma das mais equilibradas personalidades que tem existido em Portugal e, portanto, como uma das mais capazes de compreender um momento da nacionalidade que tem exactamente como característica um justo equilíbrio de qualidades de inteligência e de acção: há em tudo a mesma nota de saúde, de segurança na marcha, de energia de expansão, de simpli­cidade nos objectivos, de domínio dos meios; o guerreiro, o burguês e o es­critor, com forças de criação e com perfeito entendimento dos homens e das coisas, no mundo se apoiam, dele partem para o enriquecer e melhorar. Sob o ponto de vista artístico, e tomando a palavra num sentido restrito, há que acentuar primeiro a perfeita ordem da narrativa, a harmonia do plano que liga entre si todos os quadros, a técnica que permite entrelaçar os vários epi­sódios, nem os fragmentando demais para que o interesse se não perca, nem deixando que as narrativas se alonguem a ponto de se quebrar a ligação no tempo; quanto ao estilo, raros souberam como Fernão Lopes mantê-lo uno, adaptando-o ao mesmo tempo às diferentes situações, e poucos seriam igual­mente capazes de, elevando a linguagem popular a categoria literária, não terem caído no fácil pitoresco dos modismos. Em face das crónicas de Fer­não Lopes, quer atendamos ao fundo, quer à forma, lamenta-se que o Renas­cimento tenha cortado, com regime e literatura estrangeira, o que estava sendo em Portugal uma criação cheia de originalidade e perfeitamente de acordo com o espírito do nosso povo; uma comparação com a obra de João de Barros é bem interessante: as Décadas, pelas empresas que narram e pelo estilo que se emprega, mostram até que ponto fora o divórcio entre os diri­gentes e o país; a unidade do tempo de Fernão Lopes quebrara-se e, pelo menos, para muitos séculos.

Mais um destaque na net: lançamento no Recife...




1 de Setembro

20h - Coquetel e Lançamento da Revista "Nova Águia", de Portugal. Local: Salão Nobre do Gabinete Português de Leitura de RecifeRua do Imperador, nº 290, Centro do Recife.

2 de Setembro

9h - Conferência "O Acordo Ortográfico e o futuro da Língua Portuguesa", com o presidente da Associação Mares Navegados, Amândio Silva.

Sobre Aquilino Ribeiro


Opiniões Críticas



“Aquilino Ribeiro é um beirão da alta Beira Alta, das comarcas do Paiva – Terras do Demo (como diz um dos seus títulos de livro) – tributárias de uma região mais vasta e historicamente mais profunda – a terra lamecense, fronteira de Trás-os-Montes e das Beiras, do Portugal ameno e fácil dos vales atlânticos e do Portugal Montesinho e duro dos contrafortes continentais.

A obra de Aquilino exprime vigorosamente a condição humana nessas zonas alpestres em que nada é fácil. As aldeias endurecem-se nos seus alicerces seculares, acumulando a experiência do Inverno da neve e do lobo, e do Verão da trovoada e da canícula. O instinto, raiz da vida, dita uma conduta empírica, primária, em que os sentimentos afloram com violência e frescura. (…)

É uma concepção épica da terra e do homem que leva Aquilino à dimensão épica do livro e ao surto épico do estilo. A sua arte de narrar situa-se entre o Decameron e a novela picaresca. Do conto e do romance realistas aproveitará apenas lineamentos, virtuosidades de composição e de estilo. A peripécia envolvente e atmosférica do romance psicológico não é a peripécia de Aquilino, muito mais próximo parente do Flaubert de Salambô, de Eça de Queirós da Relíquia ou do Anatole France de Thaís do que dos romances ingleses.

A sua galeria de tipos, o retomado e sempre novo painel que nos dá da Serra da Estrela e dos vales beirões, a força e fecundidade da sua prosa castiça, que fala portuguesmente de tudo o que é português, impõem-no como um dos nossos maiores escritores e dos mais bem situados nas nossas estantes clássicas, de Gil Vicente e Fernão Lopes a Vieira e Camilo. (1)

“O autor de “Jardim das Tormentas”, de “Terras do Demo”, de “O Derradeiro Fauno”, de “O Malhadinhas”, de “Aventura Maravilhosa”, de “A Via Sinuosa”, de “Quando ao Gavião cai a Pena”, de “Cinco Réis de Gente”, de “S. Banaboião”, do prefácio e da tradução audaciosa de “A Retirada dos Dez Mil”, o animador admirável da “Raposa Salta-Pocinhas” (essa grande personagem da breve galeria da ficção portuguesa que animou de malícia e de incorrigível liberdade a infância de gerações inteiras) não necessita em verdade de homenagens: nunca foi um autor menor que convém engrandecer, nem é um autor que se sobreviva e convenha, pois, dar por vivo ao público desprevenido. O público conhece-o bem, e estima-lhe com justiça as limitações e as qualidades, porque das suas páginas irrompe uma lição de amor pela vida – aquela lição impede “O Malhadinhas” de ser lido sem os olhos rasos da comovida água da aceitação humana. A irreverência salutar do seu estilo e da sua maneira de narrar, o esplendor da presença cósmica do mundo físico nas suas páginas, a articulação encantatória das suas frases e de certas descrições que revelam da pura poesia, tudo isso faz de Aquilino Ribeiro uma simbólica figura de encruzilhada cultural, onde se encontram o primitivismo ruralista, o amor gratuito da erudição livresca, uma certa fascinação cosmopolita, o jogo mais da fantasia que da imaginação, uma liberdade de composição que desconcerta os críticos formalistas, uma subtileza psicológica mais confiada à alusão estilística que à introspecção discursiva, um cepticismo sonhador, um sentimentalismo recatado de homem das serranias, enfim, aquelas características que, de uma maneira ou de outra, e com as mais diversas limitações, propiciaram as obras que há primas da literatura portuguesa.” (2)

.

“Era uma vez um beirão que veio para as Letras com uns sentidos limpos, de pilha-ninhos e caçador das brenhas. Veio na altura em que todas as tábuas de valores ideológicos e sociais se desfaziam mais do que se refaziam, de modo que o seu estilo admirável contraiu o jeito de esfumar-se e enfadar-se quando se trata de fazer pensar o próximo. A tese da sua obra é sempre a mesma, e simples: a exaltação do belo animal humano, uno e duplo, homem e mulher, como uma concha bivalve. O estilo dir-se-ia assentar na miúda reticulação das fibras que conjuga um mundo recôndito de coisas vindas das retinas, dos tímpanos, das papilas sensitivas à flor da pele e das mucosas, coisas que não costumam subir, do nível bulbar ou cerebeloso, ao nível da consciência cerebral falante. (…)

Levantam-se muitas objecções ao estilo de Aquilino Ribeiro. Primeiro, que só se pode ler compreensivelmente com o dicionário ao lado. Há, é verdade, nele, a fuga ao termo e ao giro frásico já muito impressos; mas a sinédoque, a perífrase, as estranhezas escusadas só ressaltam como tais dos livros e páginas em que o assunto não prende muito o autor. Com Aquilino at his best a fraseologia e o vocabulário são correntios, falados e quase sempre populares, e, mesmo quando ainda não ouvidos, medimos-lhe bem o alcance se não estivermos divorciados do povo rural.” (3)



(1) NEMÉSIO, Vitorino, Portugal, a Terra e o Homem., Fundação Calouste Gulbenkian, 2ª Edição, Lisboa, 1978, pp. 211 a 213

(2) SENA, Jorge de, Estudos de Literatura Portuguesa – «Em louvor de um Grande Escritor» Edições 70, 1982, p. 198

(3) LOPES, Óscar, Modo de Ler – Crítica e Interpretação Literária, Editorial Inova, Porto, 1972, pp. 317 e 320/21

DIÁRIO DE MOEMA, III

Salamonde, Vieira do Minho, 2008


2006, 22 de Março.

Encontrei um pequeno lugar guardado entre montes.
Sei-me observada pelos penedos, mas sinto a sua indiferença. Para eles, o tempo tem outra contagem. Não passo de um pestanejar da eternidade.
Parei junto ao rio. Fiquei a ver a viagem da corrente que passa sem saber para onde vai. Tive vontade de lhe gritar o seu destino. Ouvi os penedos e fiquei em silêncio.
Tenho a resposta, mas as águas não fizeram a pergunta.

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O rio corria na verdura do vale, ao lado do casario antigo. Era pequena a aldeia, feita de gente simples e de claras verdades – o dia segue a noite e não há mal que sempre dure. As reflexões profundas eram deixadas para o Poeta, o louco, que falava de coisas que eles não entendiam, mas que davam um certo colorido às conversas de rua. Já estavam habituados a frases sem nexo e longos ditos, a que ele chamava poesia. Sorriam e acenavam a cabeça, pois se nem sequer rimava…
Novidade, foi a chegada de Moema, uma mulher sozinha, a viver numa casa andante.
Não é coisa normal por estas paragens.
Entre o aviar do bacalhau e o contar das notas - que nem parecem nossas - comentava-se à boca cheia.
Anda fugida pela certa. Não há-de ter feito coisa boa.
No café, espreitavam a porta, não fosse ela aparecer. Tinham dado pela sua chegada ao amanhecer, à hora da bica, estava a sala cheia. Tempo era coisa que por ali não faltava. O destino já tinha marcado a hora para o jardim das tabuletas, e o serviço não fugia.
À beira-rio, Moema estava sentada, a abraçar as pernas, de olhar perdido na paisagem. Tinha ido ali parar sem saber bem como. Deixava-se levar pelo rumo do vento ou pelo cheiro da água. Estava cansada de conduzir. Queria descansar os olhos do alcatrão sempre igual, do barulho dos carros, do torpor do volante.
Os chocalhos do rebanho que se aproximava, trouxeram um sorriso ao seu olhar.
Ia ficar ali, por uns dias.

Jogos indípicos: o interior v/s o interior, na Índia


Na semana passada o ministro do interior do governo de Goa exprimiu na Assembleia do Estado as suas preocupações caso se realizasse uma ligação directa por combóio entre Bihar e Goa. Estava a ser debatida a lei contra mendigos, e o ministro de Goa, Ravi Naik, foi citado pelo seu homógo no governo de Bihar de ter referido aos muitos mendigos que chegariam do Estado de Bihar! Foi aberto num tribunal desse Estado um processo de difamação contra o ministro de Goa. Tem sido ultimamente este o assunto de debates na Assembleia do Estado de Goa, e o presidente da Assembleia acautelou o juiz do tribunal de Bihar contra a violação dos privilégios de livre debate nas assembleias dos Estados.
Bihar é o 12º maior estado da União Indiana e é o 3º estado com mais população, excedendo 82 milhões. Basta abrir a Wikipédia para ler acerca da pobreza publicamente reconhecida deste Estado, associado na história como o berço da civilização hindu e do Budismo.
Durante esta semana têm sido noticiadas as cheias que devastaram o Estado de Bihar e continuam neste momento a preocupar o governo federal da Índia. Mas não serão as cheias as únicas culpadas da pobreza do Estado.

Nascido Tarde




Quando nasci tinha trinta e nove anos de idade. Poesia é o nome da minha mãe que me teve numa idade avançada. Como sabem, em idades avançadas não se devia ter filhos porque se corre o risco de malformações nos fetos.
A minha mãe foi avisada pelos médicos, mesmo assim correu o risco e eu nasci.
Quando passeio no jardim escuto as pombas que param para beber no lago do livro de histórias que leem, enquanto eu me escondo dos meus vizinhos que atiram pedras de papel branco, a mando das mães.
Escondo-me porque nasci tarde, com trinta e nove anos, e sinto vergonha dos outros que nasceram antes de mim.
Os pedúnculos das flores que tenho pelo corpo nasceram ocos. Um dia, cheia de curiosidade, quis saber se os das árvores também seriam iguais. Foi quando me acusaram de ter cortado as veias às árvores do parque e elas morreram. Tentei explicar-lhes que só as queria ver como eram por dentro, e depois ia cozê-las com linhas de costura da minha mãe. Mas ninguém me entendeu e consideraram o acto como um defeito de ter nascido tarde. Agora escondo-me por baixo da capa do livro, cheia de ervas, e fico ali até à noite quando sigo as estrelas dos lençóis da minha cama.
Também não poderei frequentar as escolas porque tenho idade avançada.A minha mãe ralha-me por eu ter nascido tarde mas eu não tenho culpa e ela sabe.Um dia tentei agradar-lhe e arranquei uma flor do meu corpo e dei-a para ela ficar feliz, mas ela pisou-a com o pé.
Os médicos dizem que não tenho cura, serei assim toda a vida: o ter nascido tarde.
Um Médico escreveu à minha mãe que eu podia fazer um tratamento intensivo para aprender a fazer poesia, que assim ia aliviar as minhas dores. Disse à minha mãe para me levar a uma clínica de livros e de leituras para fazer fisioterapia aos músculos das minhas flores; ao mesmo tempo que lia, levava choques eléctricos nos olhos e raios infra – vermelhos, por baixo da pele, no sangue.
Nunca mais fui ao tratamento! Mentia à minha mãe e fugia para o mar. Atirava areias à água com as gaivotas. Um dia a minha mãe desconfiou que não fazia os tratamentos e bateu-me, aqui nas costas, com uma pena, onde tenho a marca nas costelas.
Gostava de ter outra mãe que não fosse tão má.
Esta, quando mamo nos bicos das suas letras. Diz que já não tenho idade para mamar.Ela tem razão mas eu não tenho culpa de ter nascido tarde. Com trinta e nove anos tenho mais fome de cores e imagens. É por isso que lhe trinco os bicos, para ir buscar o que ela tem dentro dela. Sei que lhe dói quando faço isso porque ela grita e não me dá mais.
Gostaria de ter nascido como os outros poetas, com sete ou com nove anos de idade, não mais nem menos.
A minha mãe não teve culpa de eu ter nascido tarde. Foi a bruxa que vive no monte, na casa dos partos que adormeceu durante trinta e nove anos. A minha mãe não queria acordá-la mas teve que o fazer porque já não podia estar grávida, mais tempo, porque o mar se soltou rebentado pelas pernas abaixo.
Foi por isso que eu só nasci aos trinta e nove anos.


Ana Maria Costa
30 de Março de 2007

Saudades da URSS

Confesse, às vezes você não tem saudades dos tempos da antiga URSS? Ou lembranças nostálgicas dos países do leste europeu que integravam o antigo bloco soviético? Reconheça, seus ouvidos ressentem de há muito não ouvirem o som da expressão cortina de ferro.
O meu tio Walmir, por exemplo, vez por outra beira a depressão por falta de leitura ou audição de palavras, tais como: détente, guerra fria, glasnost. Sim, senhor! A tia Edite, sua mulher, não raro comenta à boca pequena que ele fala enquanto dorme. Diz uns nomes esquisitos: Brezhnev, Nixon...

A erosão econômica do velho regime soviético, ademais de trazer um desequilíbrio de forças no planeta, também deixou o mundo meio sem graça. Você aí, acaso assistiu algum thriller, leu qualquer narrativa, ou viu alguma peça de teatro mais empolgante e com mais ingredientes de suspense que o episódio da crise dos mísseis de Cuba, em 1962? Duvido! Em contraponto, aposto que jamais assistiu alguma comédia-pastelão tão engraçada e cheia de trapalhadas como aquele outro fato histórico conhecido como a invasão da baía dos porcos, em 1961.

Outro dia, um amigo contou-me que, ao mencionar a expressão marxismo–socialismo científico, referindo-se à doutrina criada por Marx e Engels, indagaram-lhe se aquilo era uma nova tendência do rock. Isto é, mais um segmento como tantos outros existentes deste eterno estilo filosófico-musical: rock progressivo, hardcore, punk, gothic metal, dentre outros.
E pensar que, no Brasil, houve um tempo em que revelar-se comunista era sinônimo de prestígio intelectual e de sucesso entre as garotas. "O quê? Ele é comunista? Menina, que chique, hein?" - admirava-se uma amiga, em conversa acerca do novo namorado da outra.
Ainda me lembro dos primórdios da faculdade, no restaurante da Universidade Federal da Bahia, no Café, após o almoço, de debates acalorados sobre quem situava-se mais à esquerda na ideologia comunista. "Eu sou da corrente trotskista", vangloriava-se um; "eu, leninista", gabava-se outro; "fulano, é stalinista", afirmava alguém; "pois ciclano, é da linha albanesa". Ohhhh!!!, clamavam todos, em uníssono. Pois é, ser da linha albanesa era assim como uma espécie de ás de um jogo de cartas. Na categoria intolerância ao capitalismo e à burguesia, ganhava de todas as outras vertentes.

Meu nome é Bond. James Bond! Acredito que quando o escritor Ian Fleming criou as aventuras do agente 007, jamais passou pela sua cabeça o fim do império soviético. Hoje, não há mais contexto para se produzir um filme, como por exemplo, Moscou Contra 007 (From Russia With Love). Por outro lado, suponho que a produção de novas aventuras utilizando-se do cenário da antiga URSS estariam destinadas ao fracasso. Imagino os diálogos da turma com menos de trinta, após o término do filme: "Pô, véio! Filme ruim. KGB, Kremlin... os caras citam umas bandas que não passa na MTV".
E ainda que nos últimos anos não houvesse mais motivos para espionagem, contudo, os caras de Los Angeles ainda insistem com a personagem. O último filme desta série, Cassino Royale, tem locações em Madagascar, além de exibir um 007 brutamontes e mais burro que uma toupeira psiônica1. Madagascar, afinal que diabos tem para se espionar por lá? Nada! Nos antigos filmes de piratas estrelados por Errol Flynn e Burt Lancaster, esta ilha servia de esconderijo para saques.

Por falar em espionagem, com a queda do muro de Berlim julguei encerrada a carreira do escritor John Le Carré, meu autor favorito de romances deste gênero. Em 1989, ao ser arrancado o primeiro tijolo do Mauer - como os alemães chamavam o muro, Le Carré perdeu o seu tema: o universo dos agentes secretos. E agora? Escreveria sobre o quê?
Mas talento é talento, assim, há poucos anos, John Le Carré escreveu um ótimo livro, O Jardineiro Fiel (The Constant Gardener), por sinal, gerador de uma adaptação para um filme de mesmo nome. No entanto, esta produção nada tem a ver com guerra fria ou espionagem, é focada em experiências não-confessáveis no Quênia, patrocinada por uma espécie de divisão cosa nostra da poderosa indústria farmacêutica norte-americana.

O fim da URSS e do chamado bloco soviético, não serviu apenas para riscar os romances de espionagem da lista de best-sellers; nem de obrigar os cartógrafos da geopolítica a fazerem horas extras; além de encerrar a linha de produção daquele pequeno automóvel fabricado na RDA, o Trabant, ou Trabbi, para os íntimos (veja foto acima), um carrinho feio de doer, todavia, mais simpático que uma Mercedes F700. A sua queda libertou o dragão da cobiça apocalítica, ou seja, substituiu o famoso chavão dos Três Mosqueteiros "um por todos, todos por um", por "salve-se quem puder". Neste vórtice neoliberal, ainda desmoralizou a ONU; potencializou os poderes do destemido xerife Wyat Earp com novas técnicas de chutar cachorro morto; e, como uma prostituta sagaz, seduziu o luxuoso socialismo do oeste europeu, tentando-o com a sensação maravilhosa - num futuro próximo, de se respirar ar privatizado; também, promoveu uma lobotomia coletiva na esquerda, transformando os seus adeptos em toupeiras psiônicas dotadas de dois únicos dons: o da retórica vazia e o de nenhuma ação eficaz.


Guilherme Xavier


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(1) Toupeira psiônica - significado apenas conhecido por jogadores de RPG, linha Dungeons & Dragons.

Tributo a Dalva de Oliveira – 91 anos




Vicentina Paula de Oliveira nasceu em 5 de maio de 1917 na cidade paulista de Rio Claro e faleceu em 31 de agosto de 1972. Filha da portuguesa Alice do Espírito Santo de Oliveira e do mulato festeiro Mário de Oliveira, o Mário Carioca, marceneiro na Companhia Paulista de Trens e tocador de saxofone nas horas vagas. Com a morte do pai quando ela tinha apenas oito anos, foi para um orfanato e um pouco depois juntou-se à mãe em São Paulo, onde trabalhou como babá , arrumadeira de hotel e cozinheira. Arranjou um emprego de faxineira numa escola de dança onde foi descoberta pelo maestro Antônio Zovetti. Cantora, expressão do samba-canção que antecederia a Bossa Nova, onde seu filho Pery Ribeiro entrou para a história como o primeiro a gravar “ Garota de Ipanema”.
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Dalva emitia as notas da melodia com a clareza e segurança de uma cantora lírica. E os arranjos, que eram feitos pelos grandes maestros que prestavam serviço à cultura popular da época, levavam em consideração com grande sensibilidade seus dotes vocais. Participou da dupla "Do Preto e do Branco”, onde conheceu Herivelto Martins, com quem veio a casar-se e separar-se mais tarde. Tanto Dalva, como Herivelto, fazia duelos e polêmicas musicais. Sua vida privada , discriminada pela separação e pela bebida devassada pela mídia, acaba sendo explorada pelos meios sensacionalistas de comunicação.
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Gravou com a orquestra de Roberto Inglez , Francisco Canaro e Rodrigues Fauro. Foi para Portugal passar cinco dias e ficou seis meses na Europa. Pela primeira vez, uma cantora brasileira se aventurava a ir à Europa e fazer sucesso.
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Aclamada como a Estrela Dalva, nome da peça teatral escrita por Renato Borghi, protagonizada por Marília Pêra, onde o papel do seu ultimo “bombom” que se chama Nacib Amun Farah que vive no RJ e guarda seu diário e um grande acervo da cantora (toda discografia, roupas e objetos pessoais), foi interpretado pelo diretor e ator Jorge Fernando.
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Chamada também como rouxinol, Dalva foi a Rainha da Voz, Rainha do Rádio, dos Ranchos, Favorita do Exército, Madrinha dos Músicos Chilenos, etc. Recentemente foi feito um documentário sobre Dalva de Oliveira e inscrito no festival de Gramado, RS. Existe um projeto para fazer de sua vida um filme.
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A frase de Dalva na peça “A Estrela Dalva”, sua intérprete de joelhos diz:
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“Aqui jaz Dalva de Oliveira
Atropelada pelas paixões
A procura de um grande amor”.
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*Dalva foi muito amiga de minha mãe e morreu praticamente nos braços de Nacib, numa casa de saúde em Copacabana. Em criança lembro-me dos almoços, das cantorias de Dalva em minha casa, das piadas e risadas que eu e meus irmãos escutávamos atrás da porta , quando minha mãe nos punha para dormir. Tenho um acervo de fotos da cantora.

sábado, 30 de agosto de 2008

Do Império e da perpetuidade de Portugal – mais seis notas para o Klatuu, e também para o Arnaldo, para o Casimiro e o Clavis (e para quem mais vier)


Escreveu o Klatuu no último post: “Os impérios sempre conferiram maiores direitos de cidadania que os estados e garantem melhor a paz, impedindo a rivalidade entre estes. É evidente que tornar-se Estado é a forma de afirmação da Nação, mas isto só é possível para as pequenas nações pelo recurso a uma terceira instância que é o «império».”.

1. Historicamente, nada de mais verdadeiro. Daí a necessidade das alianças ao longo dos séculos. De outro modo, há muito que Portugal tinha deixado de existir…

2. Nestas paragens, já passámos, contudo, o tempo das invasões*. Objectivamente, não há qualquer perigo de, por exemplo, sermos invadidos pela Espanha. O risco que poderia advir de Espanha seria a sua desintegração – e as consequências disso (voltaremos um dia a este ponto).

3. Não se pondo a questão de uma ameaça militar (a ameaça terrorista é outra coisa), há, decerto, outros planos a considerar – nomeadamente, o demográfico (sim, Portugal corre o risco de colapso demográfico) e o económico (apesar da “assistência” europeia). Mas, para esses, vai havendo sempre remédios, ou pelo menos, paliativos (que não iremos agora desenvolver).

4. Portugal, contudo, não é uma mera “empresa” - sob o ponto de vista empresarial, tudo isso se resolveria com uma mera “deslocalização”, como agora se diz. Portugal é um território (por definição, indeslocalizável) e, sobretudo, um povo, cuja singularidade está, essencialmente, na língua e na cultura. É esse o fundamento maior da nossa “independência”.

5. Sob esse ponto de vista, o risco maior à nossa independência seria a língua portuguesa ficar confinada a este nosso território (falamos sempre no plano do médio-longo prazo). Daí a aposta estratégica na Lusofonia: é do nosso interesse que a língua portuguesa se continue a falar nos diversos países da CPLP.

6. E, também, ponto decisivo, para os outros países da CPLP. Para os PALOPs (países africanos de língua oficial portuguesa), por exemplo, é a língua o grande factor de coesão nacional. Por isso (esclarecimento ao Casimiro) escrevi aqui que “é a razão o que sobretudo nos une”. Acredito mais na perpetuidade das alianças por interesse do que por paixão (as paixões esvaem-se; os interesses mantêm-se). Por isso, acredito no futuro da Lusofonia**. Tanto mais porque essa “plataforma linguística” tem virtualidades outras (económicas, por exemplo) ainda não de todo exploradas. Por isso, em suma, acredito no futuro de Portugal. Aliás, parafraseando o outro, se não acreditasse, não estaria aqui…


* O mesmo não se passa ainda, por exemplo, na Europa de Leste (veja-se o que se está a passar na Geórgia) e em muitos locais do mundo. Daí, também, a fragilidade da independência timorense (ponto a desenvolver).

** A este respeito, há, obviamente, que referir e salientar o papel do Brasil (outro ponto a desenvolver).

Notas à margem da mesma conversa


Caros, com pena de não ter mais tempo agora:

1. O assunto foi tomando, por assim dizer, a forma de uma estrela de David, de duplo triângulo: num plano, a tríade Vieira - Pessoa - Agostinho; num outro, a tríade Portugal - Europa - Lusofonia. Se quisermos, de um lado a idealização (Império, para manter a palavra) e, do outro, a realização (CPLP como caminho e, em pano de fundo, a globalização planetária). Curiosamente, cada vez mais claramente parece estarmos a falar de coisas completamente diferentes (foi a minha primeira reacção ao ler a "provocação" do Arnaldo); julgo que não estamos, e que nos falta no mapa um 7.º ponto, que não é vértice mas centro da estrela... Lá iremos ao andar da conversa, acho.

2. O que o Renato diz de Vieira, Pessoa e Agostinho é crucial, e merece análise mais funda: por agora, só dizer que o Agostinho está claríssimo, mas que, no Pessoa, a questão do "jogo literário" (precisamente por causa da sua possível confusão com qualquer "jogo interior") tem muito que se lhe diga, para não envolver uma petição de princípio: a de dar por demonstrado precisamente aquilo que em última análise toda a tradição de pensamento "esotérico-religiosa" (em amplíssimo sentido) repudia, e que é a ideia "moderna" de que o acto solitário, por si, não transforma o mundo (incluo neste "acto solitário" tudo o que vai da oração judeo-cristã à prática alquímica ou mágica).

3. Quanto à análise da situação actual, subscrevo quase inteiramente o que disse o Klatuu (o "quase" vem do ponto 2 e nasce só de ser eu, ao contrário, o maior céptico relativamente à minha racionalidade...). O ponto mais importante a meu ver vem trazido pelo Renato, e está nos pontos 4 (de ambos) sobre "europa das pátrias" e "europa imperial".

4. Da europa imperial há que excluir liminarmente a Inglaterra e o seu actual herdeiro americano, como tão perfeitamente compreendeu De Gaulle: o império destes não é império europeu mas império marítimo, e a vocação destes há-de ser sempre a de cercar e neutralizar a hipótese de um império continental (que na actual circunstância só pode ser russo-europeu).

5. De passagem, não penso que Portugal tenha sido alguma vez um império marítimo, ao contrário do que nos ensinam a pensar: marítimas eram, no tempo das nossas Descobertas, as potências com quem conflituámos (Veneza, Inglaterra, Holanda), e por isso a elas se deve a parte "material" da modernidade: o capitalismo na sua forma financeira, por exemplo. Mas à medida que Portugal se expandia (e expandia-se aprendendo, pois foi preciso re-conhecer primeiro o mundo a descobrir) procurou sempre uma plataforma continental em que ganhasse o fôlego de território que nesta faixa da europa lhe faltava, sendo a Índia e o Brasil as sucessivas hipóteses de centrar o império: através da expansão marítima, Portugal buscava penetrar na terra.


(a continuar)

Livro de Contos" CAMPO DE TRIGO COM CORVOS', Resenha Crítica de Escritor Português



Resenha Crítica

"CAMPO DE TRIGO COM CORVOS", Contos:
ALGUNS SÍMBOLOS DA PERPLEXIDADE


"O vôo rasante dos corvos
debicando/Não as espigas
maduras/Mas os olhos ..."


Jorge Sousa Braga, in
"O Lírio que há no Delírio"



O título, sumamente concreto e substantivo, impele ostensivamente para zonas sensoriais e pictóricas. No entanto, "Campo de Trigo com Corvos" não é mera reprodução do quadro de Van Gogh onde o trigo, amarelo, eivado das chamas loucas do pintor, escorraça de seu seio o bando negro dos corvos. Aqui, no livro, muito para além dos afugentados, corvos há que permanecem pairantes ou, mais ainda, baixando ao rés do solo jogam-se contra as pessoas provocando a clivagem (ou a carnagem). E esta fórmula aproxima os textos de uma realidade mais humana, ainda que desumana em função de traumatismos de que se tece a evolução vital e biológica. Mas, na arte de contar estórias, e é um pouco do que se trata aqui, o texto recorre globalmente a técnicas específicas da pintura. Designadamente, dos seguintes modos: Os fatos sucedem-se em tom linear, contíguos ou adjacentes, em direção a um desfecho, previsível ou não, podendo-nos apropriar neste caso da imagem do rio que decorre e atravessa a paisagem rumo à foz. A disposição da narrativa procede à colocação ou disposição de cenas paralelas, quadros que se encostam na vertical, ou na horizontal, às vezes na diagonal. Lembrando um pouco os vitrais medievais que ainda hoje se encontram nas catedrais. Postado na posição do personagem, o narrador reavém e sintetiza em frases-cristais largas faixas de vida transcorrida. São parágrafos breves, como riscos impressionistas e apressados, que intentam ou ensaiam remover um vulto de episódios para um mínimo centro, na vã tentativa de os aprisionar. De tudo dizer, sem ceder ao uso da gordura das palavras, muitas palavras, o "contar palha" da gíria. Por outro lado, mais do que abordagens textuais que imitam ou pretendem imitar técnicas fílmicas ou de vídeo, nota-se um apropriar de materiais atinentes ao teatro. Desde logo, na encenação criteriosa e fiel de palcos que suportam os personagens, a reconstrução de sítios, locais, ambientes ou atmosferas. Em que tem papel fenomenal o fluxo da enumeração. Neste exemplo, utilizaremos o conto nodal, que dá título ao livro, "Campo de Trigo com Corvos" para promover a tipificação: "Contratou peões de fora, tipos mal encarados de outras plagas, outras praças, gaúchos, catarinas, ˝barrigas-verdes˝”. Observemos como se delineiam outras estilísticas da arte de talma: O imprevisto é um dos recursos que pode fazer balançar o espectador na cadeira. Ele é aqui arremessado, quer surgindo de-vereda, o designado "causo", bem assim o pandareco, quer atribuindo um rumo à história totalmente inverso, ou ao menos diverso da lógica que as teias já desarmadas anunciavam. O equívoco é, como se sabe, o banquete de muitas peças de teatro. De algumas em exclusivo. Ele provoca o espectador, obriga-o à concentração e à reflexão (e ao riso ou sorriso), mantém vivo o desenrolar do evento e o esforço dos atores. Aqui também ele atua, burilando surpresa nos personagens, dando lastros de ironia às vidas encenadas, apanhando na contra-mão o leitor. Quiçá, o próprio autor terá aberto olhos quando da elaboração dos textos. Alguns títulos, algumas frases, preparam para ocorrências posteriores do conto. É uma espécie de levantar do véu, destapar de roupas femininas, jogo de sedução e permeio. Que muitas vezes pode desaguar num dos recursos anteriores, anulando ou aparelhando os efeitos: o imprevisto. Mas, o mais robusto de todos os recursos é o golpe-de-teatro. Repare-se que a própria palavra de que vimos falando integra a nova palavra, esta, aliada a golpe. Quando tudo se encaminhava no rumo certo, quando a rotina ou a monotonia se estavam solidificando, eis que de supetão tudo se desmorona, tudo se transtorna, ficamos submersos nas estrias que estouraram sobre nossas cabeças, fica tudo de pernas ao ar, a mesa, a casa, o livro, o corpo, a mente. Apesar de usado e abusado, o conto produz-se hoje em doses avulsas. A despeito de sua condenação, final da história e seus componentes-trave: narração, tempo e espaço, decretados pelo noveau-roman. Não basta hoje dispor magnanimamente da arte de contar. Não basta, como a Silas Corrêa Leite, ser um domador de estórias. É condição, ainda e nomeadamente, inventar histórias, seu entrechocar, prover à invenção de uma "história nova". Isso aconteceu muitas vezes neste livro. Mas vejamos algumas das várias fórmulas de história com que nos deparamos: Existe a história que é canto, beco e síntese em "Boêmio". Existe a história que se traduz inteira e integral em "O Enterro". Existe a que se senta na paragem, recusa avançar de momento e aguarda o porvir em "Quando a Tragédia Bate em sua Porta". Existe a história que se metamorfoseia em lenda, veste-se mágica, irreal, em "O Inventor". Existe a história contida, espelho de deserto dos tártaros, com tempestade iminente mas que não desaba em "Campo de Trigo com Corvos". Mas todo livro é ou pretende ser uma obra literária. E é só isso que importa. Obtê-lo, consegui-lo, é todo o mérito e o valor acrescentado possível. Também aqui se obteve largamente esse desiderato. Observemos alguns dos meios. Ou fins. Deitando mão de uma linguagem que, afora o popular, o linguajar, a gíria, agarra os elementos específicos de dialetos, sintaxe indígena, eivando a escrita de vocábulos originados do tupi. Exercitando uma experiência genialmente rasgada noutros países de língua de expressão portuguesa por Mia Couto e Luandino. Dando o braço à metáfora, à imagem em novos moldes, revitalizando os textos. E desse modo obtendo o viço, a chispa, o engaste de muitas frases. Alongando a metáfora, expandindo-a, cingindo-a a personagens inteiros ou à globalidade do conto. Metáfora que se transforma em alegoria. Exemplo seguro de tudo que fica dito são os Corvos de "Campo de Trigo com Corvos" e o "Muro," ou em "Anistia". Lançando as palavras umas contra as outras, quando contíguas, provocando choque, conflito, traumatismo, mas também colo, enlace, anel. E neste particular merece realce a intensa e não pretensa construção de novos vocábulos. Fruto de tentativas ou abordagens díspares. Usando a colagem, a composição, errônea em aparência mas sempre imprevista, como no caso de "esposa-vítima", "vento-coisa", "nuvem-lesma", "instante-trevas" ou "lebre-dor". Recorrendo à síncope, como se verifica em "marra" e "garra". Provocando a junção, de que poderemos enunciar "enfebre", "nágua" e "cinzazul". Adstringindo a preposição, prefixada, em "de-vereda", "de-assim" e "de-primeiro". Neste campo, de trigo literário, em que muitas letras são corvos, entendo que o mais subtil e profundo recurso resulta do germinar de vocábulos novos, que estimulam os acordes da sintaxe, da fonologia e da morfologia. Realizando cambiâncias, muito pouco vistas e nada pouco inesperadas. Ousando obter o substantivo a partir do verbo, do adjetivo, ou mesmo do próprio substantivo. Obtendo ligas que só ao alquimista são permitidas. Vejamos. Do inúmero número de vocábulos em que se verifica um processo de alteração da categoria sintática, ou manutenção sintática por força de novo vocábulo, quer por ação da base quer do derivado, topamos estas nominalizações deverbais: "acontecência", "havência", "pertencimento", "andação" ou "conhecença". Como apodo de nominalização denominal, poder-se-ia citar "mentirança" e "medaço". Para não jazer nas plagas do vazio, eis também uma adjectivalização denominal: "encrenqueira". Recuando: perante o impasse da estória, notória se torna a premência da exploração de técnicas e moldes e dados inovadores. Porque não basta à ficção reproduzir a realidade ou ser espelho do real. Isso já se fez ou é horta de outras artes. Da perícia autoral depende a superação do real. Mais: a sua subversão. E é o que acontece substantivamente em "Campo de Trigo". Podemos apontar o irreal em "O Inventor"; o surreal em "Anistia"; a subversão do real (pelas palavras) em "Justiça". Estas e outras estórias é que provocam o avanço. Deixando as restantes coladas, como pinto recém-nascido a casca-de-ovo, a correntes literárias recentes. E já que entramos na corrente, deveremos referir a mais ousada ousadia presente neste livro. Algo que apelidaríamos de transrealismo. Obter do texto a superação do real, a sua mistificação, submeter e soterrar normas, o erigir de um outro real. Isso acontece aqui e ali, mas de forma exemplar no conto mais de todos escatológico: "O Osso" (também em "Congonha"). De que retiramos três análises resumíticas: a mulher que se dá ao pai e depois ao filho, sendo carne para o primeiro e osso para o segundo; o homem que, elo em Kafka, devém canino, o filho-cão; a habituação a baixas desumanidades que impede um ser humano de reverter após uma vivência animalesca. Falávamos de artes plásticas. De artes cênicas. De linguística. E, sobretudo, de arte literária. E corrente. Literária, claro, mas não só. Tudo muito apreciado. Mas então, e a vida? Porque é o sangue dela que muitos pretendem, ou preferem ver escorrer das letras dos livros. Diria: Existe, como metáfora da terra, e dela, a vida, um extenso campo de trigo. E pequenos pontos negros no meio do trigo, os corvos. Este é o palco, é aqui que tudo decorre. Com o sol por testemunha ou sob o céu noturno. Os pequenos pontos negros por vezes exaltam-se. Rebelam-se. Ficam loucos. Pode dar na destruição de todo o enorme campo. De trigo. E é assim que a vida se eleva (mesmo quando derrubada). Porque ela é em simultâneo
Luz e escuro
Branco e negro
Gozo e dor
Água e fogo
Campo de Trigo e Corvos.


Antero Barbosa
– Literato de Porto, Portugal (Poema, Ficção, Ensaio). Licenciado em Estudos Portugueses, Diretor de Escola de Ensino Superior. Crítico Literário, autor dos livros "Contextos" (Contos) e "Ramos e de Repente (Poemas). Prêmio de Poesia Brétema, 1990, e Prêmio Trindade Coelho, 2005.


BOX:
Livro "Campo de Trigo Com Corvos", Contos, a maioria premiados, 144 Páginas - Editora Design, Santa Catarina, Brasil


À venda no site: www.livrariacultura.com.br
Autor: Silas Correa Leite, Itararé, São Paulo, Brasil
Site: www.itarare.com.br/silas.htm

Contatos: e-mail: poesilas@terra.com.br
Blogue: www.portas-lapsos.zip.net

Morreu Luciana Picchio, amante das letras portuguesas


Luciana Stegagno Picchio, uma das maiores divulgadores das literaturas de língua portuguesa, morreu ontem aos 88 anos, em Roma. Filóloga, ensaísta e crítica literária, Luciana Picchio nascida em Alessandria, a 26 de Abril de 1920, foi professora catedrática na Universidade de Roma, onde leccionou Língua e Literatura Portuguesa e Literatura Brasileira. Foi também professora convidada em vários países, entre os quais Portugal, Brasil e EUA, tendo, neste último, trabalhado com o linguista Roman Jakobson. Autora de mais de 500 obras, dedicadas à literatura e cultura de língua portuguesa, Luciana Picchio estudou o teatro português e assinou edições críticas sobre a prosa e a poesia portuguesas (de João de Barros a Fernando Pessoa, passando por José Saramago e Jorge de Sena). Foi também membro da Academia Brasileira de Letras e da Academia de Ciências de Lisboa.


Fonte: Público

A JUNTAR-ME AO TRIÁLOGO (?) COM O RENATO, O ARNALDO E O CASIMIRO… ALGUÉM MAIS?



Não te faltam munições – mas como estes me são mais fáceis, do que a tríade: Pessoa/Vieira/V Império... aqui vai.
(Em breve o resto; ainda hoje).




1. Portugal é a raiz da Europa moderna; dispensa «lições de Europa», seja de quem for.

2. Também é convicção funda minha, para não lhe chamar Fé, mas como é Fé e como (te disse) sou o maior céptico em relação ao meu próprio misticismo (fundamentalmente porque não o consigo racionalmente explicar) – penso que é avisado admitirmos que Portugal poderá não existir no futuro. Como tal cabe a nós, os vivos, garantir que Portugal terá um Futuro.

3. Não concordo inteiramente. Dependerá muito da forma: se for uma soma, não terá eficácia, mas se for uma coordenação das políticas externas de cada estado-membro poderá ser muito eficaz – desde que a Europa Comunitária não caia na tentação de se substituir à NATO.

4. Penso que isso acontecerá, mas não pelos vectores que apontas: é a própria «europa imperial» que criará esse retorno à Nação (veja-se a Bósnia, etc), mas não por uma reacção à Europa Comunitária, mas sim porque as «super-estruturas imperiais» permitem que as nações se libertem da «tirania dos estados». A mensagem de Deepak Lal em «O Elogio dos Impérios. Globalização e ordem» é inequívoca: os impérios sempre conferiram maiores direitos de cidadania que os estados e garantem melhor a paz, impedindo a rivalidade entre estes. É evidente que tornar-se Estado é a forma de afirmação da Nação, mas isto só é possível para as pequenas nações pelo recurso a uma terceira instância que é o «império».
Não esqueçamos aqui algo de fundamental: o projecto de extensão da civilização portuguesa deve ser na direcção de mar e terra; juntá-los reforça-la-á nos dois vectores e isto também se aplica à economia, tornando-se Portugal uma boa parte da plataforma de relação comercial entre a Europa, o Brasil e África.

5. 6. 7. Nestes pontos concordo inteiramente.

8. É evidente que a rota do MIL não poderia ser outra, querer que a CPLP se substituísse à Comunidade Europeia seria absurdo – Portugal deve manter-se em ambas as estruturas; isso torna-o aliciante além e aquém mar.

9. Concordo, mas há que tornar a CPLP mais dinâmica, não só enquanto estrutura, mas na convergência de um modelo económico e na abertura de um mercado livre de fronteiras entre os estados lusófonos – e isto basta; mais não é necessário: a possibilidade federativa enfraqueceria Portugal enquanto nação europeia e ameaçaria a nossa sobrevivência.

10. A convergência económica fomentaria a democracia – e não nos esqueçamos de um fenómeno imparável: o da cada vez mais rápida e livre divulgação da informação, da cultura e do conhecimento. Os regimes ditatoriais têm os dias contados... pela crescente tomada de consciência da cidadania individual transnacionalista, do indivíduo enquanto cidadão planetário.


Klatuu Niktos

Mais dez breves notas – para o Arnaldo, o Casimiro, o Klatuu e o Clavis.


1. Portugal é um país europeu: geográfica e, mais do que isso, civilizacionalmente. Sempre foi (muito antes da maior parte dos outros países) e sempre há-de ser, enquanto existir.

2. Se essa condição é “eterna”, o actual modelo de construção europeia é meramente conjuntural. Nasceu ainda do rescaldo da 2ª Guerra Mundial e pelo facto da Alemanha ter ficado no estado em que ficou. Durante décadas, durante mais de meio século, a Alemanha aceitou pagar essa construção europeia sem reclamar qualquer voz política. Pela natural ordem das coisas (não há condenações eternas), isso está a mudar, e mudará cada vez mais…

3. O presente “salto em frente” da União Europeia, nomeadamente com a definição de uma política externa comum, é o seu canto do cisne. A Europa, a velha e eterna Europa, nunca terá uma política externa comum, pela simples mas suficiente razão de que a força da Europa está na sua pluralidade. Podia aqui multiplicar os exemplos: a França, tida como grande “europeísta”, sempre teve uma política própria; da Inglaterra nem vale a pena falar…

4. A construção europeia vai pois regressar à "Europa das Pátrias": é esse o seu destino. Há coisas mais fortes do que todos os voluntarismos de circunstância. É o chamado “Vento da História”.

5. E Portugal? Portugal, depois de 25 de Abril, quis fazer um corte com todo o seu passado. Exausto da guerra colonial (a maior razão para o golpe de estado), Portugal voltou as costas a todo o Ultramar (com algumas consequências bem trágicas) e empenhou-se em “regressar à Europa”. Daí essa obsessão de ter “a Europa connosco” (lema soarista) ou de sermos o “bom-aluno europeu” (lema cavaquista).

6. Passados já mais de trinta anos sobre o 25 de Abril, saradas (ou a caminho disso) as feridas do lado de cá e de lá, com uma nova geração já nascida depois de tudo isso, é tempo de refazer as pontes…

7. Refazendo as pontes com o mundo lusófono, Portugal não está pois a renegar a sua condição europeia, mas, ao invés, a cumpri-la: tal como o fazem, de diferentes modos, as outras potências europeias…

8. O que o MIL pretende, como já foi mil vezes dito, não é senão estimular essa dinâmica de reconvergência lusófona – todas as posições públicas que temos tomado é claramente a essa luz que devem ser lidas. No aprofundamento do que existe, ou seja, da CPLP. Não é senão isso o que queremos ser: a “guarda avançada” da CPLP, os que vão à frente a abrir caminho…

9. Até onde poderá ir essa convergência, não sei, nem acho que tenhamos que propor a priori modelos políticos. Por enquanto, a meu ver, importa apenas alimentar essa dinâmica: cooperação cultural, desde logo, mas também económica, cívica, social, institucional, diplomática, etc, etc, etc…

10. Decerto, é preciso caminharmos com cuidado, até porque, do lado de lá, há regimes que não inspiram a menor confiança (desnecessário nomear quais). Mas também isso irá, a pouco e pouco, mudar…

5:45

A Persistência da Memória, Salvdor Dali, 1931


(Para Márcia e para meus editores Silvana e Albano)

Então a vida segue
Depois da noite grande e da travessia
Segue a vida
Planta morta que renasce de si mesma
Orvalho solto que se junta na folha
Até virar gota e correr deitar na terra
Destino de tudo.
Segue sempre a vida
Ainda que seja grande o número de mortos e destruídos
Ainda que os homens levem gaiolas na luz das cabeças
Ainda que as orquídeas sejam defuntas
E os corvos de parafuso e eletricidade destrocem o trigal
Quando menos esperamos...
Quando tudo é dor e dor e dor...
Quando casa já não há...
Uma criança solta no ar seu pipa* fluorescente
E este pipa grita por outro
Que grita por outro
Que grita por outro
Que espalha o grito
Então é tempo de pipa outra vez
E o céu tem a cor de todo menino.
A vida, segue sempre a vida
Construtora de si mesma
Operária do próprio corpo
Noiva pobre maquiando o rosto sozinha
Diante do espelho e do rosto quebrado.
Ontem ainda éramos zumbis
Ontem ainda éramos alcoólatras
Prostitutas... parasitas... proxenetas... pederastas... presidiários
Agora somos gente
Sempre fomos gente.

A vida se renova
Da mesma forma que o amor
Da mesma forma que a vontade
Ninguém nos disse que seria fácil
E de fato não foi
Mas agora o passado já não dói
É hora de você me dar a sua mão e caminharmos juntos
Como quando éramos criança
Na missa de domingo.
A chuva fez enchente é certo
Agora
Depois do temporal
Crianças brincam com barquinhos de papel
No lago do fundo do quintal.
Nosso corpo tem estrelas
Contudo não quero ser herói
Só quero estar contigo
Sempre
A esta hora todos os asilos tramam a Revolução.

* imita a fala da periferia de São Paulo, por isto o substantivo está no masculino.


Daniel Lopes é o pianista boxeador.

Entre Vieira, Pessoa e Agostinho – seis breves notas em "triálogo" com o Arnaldo, o Casimiro e o Klatuu.


1. Como todos nós, mais ou menos, Vieira foi um homem do seu tempo, por mais (mas nunca totalmente) que o tivesse transcendido.

2. Não sei o que seria Vieira se tivesse nascido no tempo de Pessoa. Decerto, um Vieira bem diferente. A ponto de se reconhecer na "heresia" pessoana? Talvez até, pelo menos em parte.

3. Vieira era, a meu ver, um espírito muito pragmático, mesmo no plano ideativo. Dir-se-á que pôs o V Império ao serviço de uma visão cristocêntica do ser e do tempo. Poder-se-á, contudo, também dizer o contrário: que pôs a mundividência cristocêntrica do seu tempo ao serviço da “sua” ideia de V Império.

4. O mesmo exercício especulativo se pode fazer com Pessoa. Se ele tivesse nascido em 1608, decerto teria sido bem mais cristocêntico. Talvez até mais do que Vieira…

5. Num ponto, decerto, eles divergem, e aqui entra o Agostinho, e o seu grande ponto de ruptura em relação ao Pessoa. Para Pessoa, tudo se passa, sobretudo, num plano interior, ou, para ser mais cáustico, num plano lúdico-literário*. Para Vieira, como depois para Agostinho, o V Império (também não gosto da expressão, mas adiante) tem que ter uma tradução política, social e económica. Decerto, também interior, ou “espiritual”. Mas não apenas…

6. E, por isso, estando no plano ideativo mais próximo de Pessoa (vide a sua obra “Um Fernando Pessoa”), no plano da praxis, Agostinho é um vieirino, tanto quanto se pode ser vieirino neste nosso tempo. Mas sobre isso, sobre a construção práxica do V Império no século XXI, mais notas escreverei adiante**.


* Como se, para Pessoa, tudo fosse um mero jogo, uma mera construção literária. Nessa medida, tanto poderia ter escrito sobre o V Império como sobre a União Soviética (é o que pensam, ainda que não o digam, muitos dos ditos “pessoanos”). Não é, de todo, o que eu penso: acho que há um Pessoa genuíno para além de todo o jogo literário, mesmo para além de todos os seus heterónimos. E não considero que seja uma questão de fé. Ele está lá, para quem o quiser ver…

** Convocando também o Clavis, que tem igualmente procurado fazer esse exercício.

Desenvolvimento como Liberdade (Amartya Sen)


Se pensarmos no caso português é evidente que dispomos de liberdade política. Quanto às disponibilidades económicas diz-nos o governo que a maioria dos portugueses as têm em demasia, pretendendo o governo restringir tais disponibilidades! Sem ironia, é evidente que as disponibilidades económicas não são nem nunca foram iguais para todos. As oportunidades sociais são um aspecto crucial num País. Neste Portugal em que os jovens, cada vez mais, se dispersam em frivolidades, poderíamos ouvir Amartya Sen a dizer sobre esse tipo de liberdade ou libertinismo. Quanto às garantias de transparência apetece perguntar se Amartya estará a brincar! A transparência não é ainda um assunto suficientemente sério para nós. Repare-se que Democracia sem transparência é um conceito leviano! Mas é o que temos, ou não? Quantas votações sabemos minadas, quanta “democracia” é contornada, quantas formas sabemos existirem de tornear a democracia? Por último, cada vez mais, no Mundo e na Europa, nosso caso específico, temos que dizer que precisamos de protecção e segurança. Assaltos estão na ordem do dia. Precisamos de protecção física contra agressores, mas também contra quem nos quer (parece que sim…) despedir, obrigar a trabalhar até cair morto, quem nos quer colocar em competição directa com o trabalho barato ou escravo das fábricas da China ou da Índia. Que iremos fazer? Viver na Europa com 20 ou 30 Euros mensais não é possível! Competir com escravos significa que o nosso modelo é o do regresso ao modo de produção esclavagista. Como podem os nossos jovens sair desse impass sem formação adequada? Não podemos esquecer que a Europa é responsável pelas consequências que agora enfrenta. O Ocidente avançou com a globalização pensando que iria controlar melhor os recursos globais em seu proveito. Pensava talvez que estava ainda na fase histórica do colonialismo! Ironicamente, o seu colonialismo criou potencialidades e rivalidades que estão a tomar conta da sua estratégia de globalização! Afinal a modernização e as liberdades de que a Europa fazia tanto alardo desde o Iluminismo não eram para todos? Proponho a leitura de Amartya Sen, o prémio Nobel indiano, que conhece o mundo dos pobres e a pobreza do mundo. Podemos começar com o seguinte estudo sobre as suas ideias principais.

Para ler mais sobre o assunto
clique aqui.

Roberto Maia, o Homem-Enciclopédia.



Link: http://maiapodcast.podomatic.com/.

Fragmento (II)



Se Portugal é caminho e antevisão de Império, então a mais alta escolha dos portugueses é permitir à alma ser lugar da realização de Portugal, serviço nocturno do seu Rei Encoberto; mas, desses, nos que se saibam chamados pelo Rei à Gesta e ao Gesto, naqueles a quem não bastem a contemplação do labirinto ou os melancólicos cantos da derrota, o mais alto serviço é o que clandestinamente vise o cumprimento da Estratégia Imperial.

Mistério da Espada, que só é força bruta se não souber elevar-se a Nau.

Em tudo, deixa-te guiar pela Noite: ela sabe que as luzes são a última protecção da Treva. E a tua espada fará o Sol.

[fotografia: "Condestável", de Lima de Freitas]

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

O dancing-bar "Vasco da Gama"




No tempo em que as noites adormeciam ao embalo de “era uma vez…” e puxava para os olhos a manta protectora dos medos nocturnos, o bulício nocturno da avenida de Angola entrava pela varanda fronteira à sala que à noite era quarto, da longa recta de alcatrão que se metamorfoseava quando os candeeiros se acendiam e as formigas humanas se travestiam no exótico da vida nocturna, em que homens solitários se refugiam em bandos de seus iguais na busca da anestesia alcoólica e do sexo barato que o som alto das juke-boxes promete.

Quase fronteiro ao meu está o prédio onde é rei da noite local o ‘Dancing-Bar Vasco da Gama’, catedral da luxúria e dos desejos lascivos com bolsos menos afortunados. Uma prostituição de classe intermédia, sem ser a naif que se visita nas barracas do caniço profundo nem a espampanante dos bares próximos ao porto, lá na zona baixa da cidade, Rua Araújo e adjacentes; algo a meio caminho entre a modesta capulana que se abre num só gesto, para alimentar a criança que também aninha, e as mini-mini saias de lantejoulas e meias de nylon, também o modesto lenço na cabeça em oposição à cabeleira postiça, rígida de laca e despenteada em vãs ilusões.


Cresci conhecendo-as, mirando ao longe a sua ostentação corporal, e não fui muito tempo indiferente à sua oferta. Nas noites em que adormecia ouvindo o seu linguarejar que subia a rua onde os táxis se sucediam, as suas gargalhadas, às vezes os seus gritos e impropérios, na privacidade dos sonhos íntimos adivinhava em mim cresceres, maturações corporais, e nas carícias onanistas que a mim concedia eram elas as ninfas que oniricamente as guiavam.

A fauna militar em folga era a clientela de eleição do bar, mais o pequeno assalariado da cidade de cimento, mais todos os malandros e proto-malandros do bairro e arredores. Por tudo isto, pelo caldeirão inevitavelmente explosivo que junta putedo e tropa, embriaguês de frustrações e vidas falhadas, a autoridade policial era visita regular do ‘Vasco da Gama’. Se os jeep’s da polícia civil só lá acorriam quando chamados a por cobro a desmandos, mais frequentes em fins-de-semana, os da polícia militar paravam sempre por lá na sua ronda, com os tropas de capacete branco bebendo nos olhares de receio os ‘desenfiados’ que procuravam. Noutras vezes acorriam chamados pela polícia civil por causa de brigas que envolviam militares, assim como a polícia aérea e a naval, embora estas fossem raras de ver nos subúrbios da cidade pois os seus soldados eram elite ao lado do vulgo ‘feijão-verde’, e saciavam necessidades de evasão em locais mais perfumados que este ‘dancing-bar’ de 3ª classe, onde as incansáveis juke-boxes eram substituídas por veros conjuntos musicais, e a idade das moças ofertantes não pesava tanto nos atributos físicos que vendiam, como nas, que em regra, ganhavam os dias nas noites do ‘Vasco da Gama’. Naturalmente estava proibido de lá entrar, ou sequer de me abeirar, quando os serões de verão autorizavam gostosas horas em brincadeiras no passeio em frente ao meu prédio.

Entre nós, putos do prédio que nos juntávamos em conversas secretas num qualquer muro enseroado tentando adivinhar o crescer, o ‘Vasco da Gama’ e o seu acesso era visto como se de passaporte para a desejada vida adulta se tratasse. O nocturno, o verdadeiro. Porque, à luz do dia, todos nós, em grupo ou a solo, já lá tínhamos penetrado olhos curiosos a pretexto duma chuinga ou duma laranjada. Tentando descobrir no bucólico vazio das mesas a magia da sua animação nocturna, no olhar a uma ou outra prostituta em espera de trabalho fora de horas, tentávamos adivinhar segredos que a vida ainda não desmistificara. Passaram anos e noites húmidas antes de ousar nele penetrar na sua hora própria, palácio de desejos e tentações revelado em toda a sua cor e ruído, alegria. Timidamente, claro. Mais ousadamente à segunda, claro, como se de veterano desses folguedos se tratasse. Depois mudei de bairro e não tenho memória de lá ter regressado, ganhara outras asas e independências que iam mais longe que o furtivo atravessar duma rua. Mas passava lá em frente muitas vezes, mais de dia que de noite, e havia sempre um olhar cúmplice que trocava com a sua fachada, com os seus velhos dizeres a néon.

Quando a Frente de Libertação de Moçambique entrou na capital moçambicana após o acordo de Lusaka de 1974, careceu dum local para sua sede e foi o edifício do velhinho ‘dancing-bar Vasco da Gama’ que foi escolhido. Foi simbólica a mensagem que pretendeu transmitir, e eu percebi-a. Mas, quando lá passava e os olhos brilhavam ao fitá-lo, não o faziam só à bandeira das utopias que lá esvoaçava, ainda prometedora; era também ao néon definitivamente apagado e às memórias que ele me induzia, ao tempo do “era uma vez”, vezes tantas que marcaram o meu crescer e ensinaram-me que há mistério e beleza numa puta que sorri e gargalha, seja envolta em gasta capulana ou despida em lantejoulas.



(fotos do jornalista moçambicano Ricardo Rangel, ambas obtidas no blogue do meu blogo-amigo 'jpt': o "ma-schamba".)

Ao Arnaldo Norton, reflexão sobre o Império e a Estratégia Imperial (I)


Caro Arnaldo Norton, impensada e solitariamente levantei a luva da sua importantíssima provocação, e eis-me agora com um mundo de coisas para treplicar. Tantas, na verdade, que tenho de começar por picar os pontos essenciais da pergunta (múltipla) que lançou e, descendo dos princípios para a confusa realidade quotidiana, responder hierarquizando as questões.

Partamos assim do Império, que sendo o Fim é o melhor lugar do Princípio.

Eu não disse que Pessoa não estimasse e admirasse Vieira; não acrescentei - mas digo-o agora - que duvido de que Vieira estimasse as ideias de Pessoa, se as pudesse ter conhecido (vou manter arredada por ora a Terceira Pessoa da nossa profética trindade, o Agostinho). E a razão funda desta desestima é a de que Vieira era católico, enquanto Pessoa - conforme o último livro que ia lendo - era ou fazia-se (nunca o saberemos) teosofista, neo-pagão, admirador de Crowley, pseudo-templário ou invocador de diversas serpentes; coisas perdoáveis ou estimáveis num artista (e num génio) mas tudo coisas a ver com cautela (porque há caminhos que não têm regresso) se entrarmos nas vias de conhecimento, gnose ou revelação (que não são já as da teologia e da metafísica, racionais ainda) mas as do profetismo, do esoterismo, do ocultismo ou do misticismo (deixo a cada leitor a sua escolha pessoal).

Ora para Vieira o V Império há-de ser a culminação da História na redenção da humanidade (e da Criação), e portanto há-de ser obra divina; o fim da cisão, da falha, do abismo que duram desde a fundação do mundo. É, em termos cristãos, o mistério do Oitavo Dia: coroação da tripartida Obra de Deus na Criação do Pai, na Redenção do Filho, na Consolação Nupcial e Final do Espírito Santo.

Já para Pessoa, o V Império há-de ser uma coisa inteiramente outra: não consegue ele conceber, perdido sempre nos seus "caminhos da serpente", outra coisa que não a auto-iluminação pessoal, a auto-elevação pessoal de cada homem a uma condição "angélica", uma vez que Deus não falará nunca, não mostrará nunca a Sua face (não porque o não queira, mas porque a não tem: "o Cristo não é mentira, mas (...) é da essência do Cristo não poder ser encontrado"). O Império será, naturalmente, a morada - ou a alma colectiva - dos homens tornados plenamente conscientes de que, para serem como Deus (ou para prescindirem da sua insuportável ausência) hão-de ser tão múltiplos que uma só Face também já não tenham.

Compare-se isto com a visão católica de Vieira: a desvairada multidão de Povos que Portugal ajuntou, na "globalização" das Descobertas (ante-anunciada no Índio que uma pintura manuelina apresenta como um dos Reis Magos) é, essencialmente, a re-união do Único Povo (disperso na História) sob a égide do rei do mundo, delegado terreno da Única Fonte (que é o Amor infinito, divina forma do Nada de onde brota todo o Ser).

Vale a pena, a meu ver, pensar nisto (pensar aqui, quero eu dizer) porque aquilo que seja para nós o Império condiciona aquilo que veremos como o caminho para o atingir: quer do ponto de vista do caminho pessoal para a santidade ou a iniciação (esse, não nos ocupa aqui), quer do ponto de vista do caminho colectivo: aquilo a que chamarei (para a distinguir das pequenas tácticas da guerrilha política) a Estratégia Imperial.

E a Estratégia Imperial (por ser diferente o lugar que nela a nossa alma tem) não é a mesma, diria mesmo que é a oposta, conforme entendamos que sejam caminhos do Império tudo o que contribua para a infinita difracção de cada alma no prisma infinito dos caminhos da possibilidade ("Sermos tudo", como dizia Pessoa, sermos "Como os deuses que conhecem o bem e o mal", como dizia a velhíssima Serpente bíblica...) ou que sejam esses caminhos tudo o que contribua para o combate e a contenção da parte material (terrena, se preferirmos), do Manto de Trevas que recobre o mundo em que estamos (e que, por isso mesmo, nos recobre a nós também).

Dito de outra forma: há uma determinada Estratégia Imperial quando o objectivo é o da libertação, à imagem do Nada, da infinita aparência das coisas, e há uma outra Estratégia Imperial quando o objectivo é o da libertação, à imagem da Vitória, da infinita apetência das coisas (não há nada mais ávido do que os demónios...).

No fundo, o que esta escolha pressupõe é saber se o nosso Ser é como o Oceano, informe e idêntico a si mesmo num imenso infinito sonho, ou se é como o Reino, hierárquico e polarizado num Rei e num Centro ou Eixo (simbolizado pela Cruz para um cristão e num Pólo, numa Árvore Sagrada ou numa Montanha em outras espiritualidades).

Para que não nos percamos (ainda estamos longe da CPLP mas, oh Arnaldo Norton, você é que despejou o cesto em cima da mesa...), poder-se-á começar a entender porque é que há duas leituras possíveis (mas, inconciliáveis?) do significado dos tempos de "paz e espiritualidade" antevistos pelo profeta Daniel...

Para uma ocasião seguinte, porque isto vai longuíssimo já, ficarão a globalização, o capitalismo e uma certa "moderna Europa" como os rostos visíveis do nosso actual adversário e, por isso mesmo, como as maiores armadilhas para Portugal, nesta fase histórica do seu destino...

Cadernos de Agostinho da Silva (excertos)


BUFFON

Georges Louis Leclerc, cavaleiro, depois conde de Buffon, em recom­pensa dos seus trabalhos, nasceu em Montbard, em 1701; pertencia a uma família rica e pôde dedicar-se, sem nenhuma preocupação de ordem finan­ceira, ao estudo de todas as questões que o interessavam; quando o pai morreu, ficou na posse de minas e de forjas que o tornavam um dos homens mais abastados de França; entre os 20 e os 25 anos de idade viajou pela Itália e pela Inglaterra com um jovem inglês seu amigo e iniciou-se na botânica; a matemática, no entanto, prendia-o mais e toda a sua admiração ia para os estudos de Newton; ao mesmo tempo, trabalhava na física e traduzia para francês obras de sábios ingleses; em 1755 foi nomeado sócio adjunto da Academia de Ciências e apresentou várias memórias sobre física e agricultura. A escolha para intendente do Jardim de El-Rei ou Jardim das Plantas foi o grande passo da sua vida: era este o cargo em que Buffon melhor podia aplicar as suas qualidades e também o que mais sólidas bases lhe daria para a obra futura; o Jardim tivera até aí reduzida importância: destinava-se ao cultivo de plantas medicinais e os seus directores nada tinham feito que lhe desse carácter mais largo; com uma grande capacidade de ini­ciativa, uma forte atenção a todos os pormenores, uma larga concepção de objectivos, uma perseverança que nada abatia, um tom geral de energia calma, um entusiasmo que se não dissipava em explosões sem resultado, mas todo se concentrava e movia os obstáculos mais poderosos por um esforço sem pressa e sem descanso, conseguiu Buffon que o Jardim das Plantas se transformasse num dos maiores institutos de ciências naturais que se têm organizado; foi ele quem imaginou e realizou o Muséum d'Histoire Natu­relle onde tantos trabalhos notáveis se haviam de produzir e onde os estu­diosos encontrariam sempre ao seu dispor colecções de incalculável riqueza; não só alargou os domínios da botânica como lhe juntou a zoologia, a mineralogia e todas as disciplinas que podiam dar uma visão tão completa quanto possível do mundo em que vivemos. Em 1749 saíram os três primeiros volumes da História Natural; começava-se por uma Teoria da Terra e um Sistema da Formação dos Planetas em que Buffon expunha teorias relativa­mente audaciosas que provocaram reacções da Sorbonne; depois vinham uma História Geral dos Animais e uma História do Homem; entre 1755 e 1767 apareceram os doze volumes consagrados à história dos quadrúpedes: o êxito foi enorme, tendo-se vendido dezenas de milhares de livros; os me­lhores espíritos da época reconheceram o génio de Buffon e logo o compa­raram a Aristóteles e a Plínio, os grandes mestres de ciências naturais da antiguidade clássica; certo é, porém, que Buffon lhes era muito superior, pela grandiosidade do plano, pela segurança de vistas, pelo poder criador; a História Natural, completada, com a ajuda de outros cientistas, pela Histó­ria das aves e dos minerais e pelas Épocas da natureza, publicadas já em 1789, um ano depois da morte do autor, dá a exacta medida do espírito de Buffon: não há nele uma estreita e determinada vocação de botânico ou de zoólogo; o seu domínio é o da síntese, o da contemplação de todo o universo, o da inclusão, numa obra única, de tudo o que interessa na vida do mundo natural; tem, juntamente com as qualidades do sábio, as do artista, as do poeta e as do filósofo: a sua obra é uma concepção geral do mundo, traba­lhada com a exactidão do investigador, a capacidade sensual do pintor, os raptos de imaginação do grande poeta e a sólida concatenação do pensador; ao mesmo tempo, o estilo, que não é, segundo Buffon, senão uma ordenação das ideias, acompanha magnificamente, com o seu curso largo e profundo, com a sua perfeita continuidade, com a sua elevação que nunca é retórica, mas sólido e vasto pensamento, esta compreensiva exposição dos fenómenos naturais. Há erros, certamente, nas páginas de Buffon, doutrinas que não entendeu bem, como, por exemplo, a da nomenclatura de Lineu, outras de que não soube tirar todas as conclusões possíveis: muitos dos defeitos, eli­minou-os com o tempo, porque há um progresso sem interrupção desde o primeiro ao último volume da História Natural; os que ficaram pouco re­presentam em face do que de positivo conseguiu realizar: foi o criador de disciplinas científicas, como a paleontologia, a geogenia, a geografia zoológica; foi, pelas suas doutrinas sobre a evolução das espécies, e apesar de no início ter sido fixista, o precursor de Lamarck e de Darwin; está na base dos trabalhos de Cuvier e de Geoffroy Saint-Hilaire; e deu sobretudo a todos os homens uma alta ideia das possibilidades humanas: para Buffon a humanidade está ainda no início da sua história e um dia chegará, por uma organização adequada, a libertar-se de tudo o que significa inquietação mate­rial e de tudo o que provoca as grandes injustiças e os grandes morticínios; toda a História Natural, mesmo nos pontos em que menos o parece, está penetrada de sentido humano, tudo se refere em última análise à humanidade, tudo interessa ao homem; Buffon põe até, como sinal da nossa grandeza, o poder que temos, e podemos vir a ter em muito maior grau, de modificar a natureza, de a fazer obedecer às nossas concepções; e a cultura calma e progressiva do espírito, a certeza de que só dentro de nós encontraremos a energia que nos levará ao domínio das forças naturais, aparecem a Buffon como os alicerces indispensáveis de todo o trabalho construtivo que se possa realizar na terra; como o fim último também, porque nada pode imaginar de mais alto do que um homem perfeitamente culto e com a plena consciên­cia do valor universal do seu espírito.