A Águia, órgão do Movimento da Renascença Portuguesa, foi uma das mais importantes revistas do início do século XX em Portugal. No século XXI, a Nova Águia, órgão do MIL: Movimento Internacional Lusófono, tem sido cada vez mais reconhecida como "a única revista portuguesa de qualidade que, sem se envergonhar nem pedir desculpa, continua a reflectir sobre o pensamento português". 
Sede Editorial: Zéfiro - Edições e Actividades Culturais, Apartado 21 (2711-953 Sintra). 
Sede Institucional: MIL - Movimento Internacional Lusófono, Palácio da Independência, Largo de São Domingos, nº 11 (1150-320 Lisboa). 
Contactos: novaaguia@gmail.com ; 967044286. 

Donde vimos, para onde vamos...

Donde vimos, para onde vamos...
Ângelo Alves, in "A Corrente Idealistico-gnóstica do pensamento português contemporâneo".

Manuel Ferreira Patrício, in "A Vida como Projecto. Na senda de Ortega e Gasset".

Onde temos ido: Mapiáguio (locais de lançamentos da NOVA ÁGUIA)

Albufeira, Alcáçovas, Alcochete, Alcoutim, Alhos Vedros, Aljezur, Aljustrel, Allariz (Galiza), Almada, Almodôvar, Alverca, Amadora, Amarante, Angra do Heroísmo, Arraiolos, Assomada (Cabo Verde), Aveiro, Azeitão, Baía (Brasil), Bairro Português de Malaca (Malásia), Barcelos, Batalha, Beja, Belmonte, Belo Horizonte (Brasil), Bissau (Guiné), Bombarral, Braga, Bragança, Brasília (Brasil), Cacém, Caldas da Rainha, Caneças, Campinas (Brasil), Carnide, Cascais, Castro Marim, Castro Verde, Chaves, Cidade Velha (Cabo Verde), Coimbra, Coruche, Díli (Timor), Elvas, Ericeira, Espinho, Estremoz, Évora, Faial, Famalicão, Faro, Felgueiras, Figueira da Foz, Freixo de Espada à Cinta, Fortaleza (Brasil), Guarda, Guimarães, Idanha-a-Nova, João Pessoa (Brasil), Juiz de Fora (Brasil), Lagoa, Lagos, Leiria, Lisboa, Loulé, Loures, Luanda (Angola), Mafra, Mangualde, Marco de Canavezes, Mem Martins, Messines, Mindelo (Cabo Verde), Mira, Mirandela, Montargil, Montijo, Murtosa, Nazaré, Nova Iorque (EUA), Odivelas, Oeiras, Olhão, Ourense (Galiza), Ovar, Pangim (Goa), Pinhel, Pisa (Itália), Ponte de Sor, Pontevedra (Galiza), Portalegre, Portimão, Porto, Praia (Cabo Verde), Queluz, Recife (Brasil), Redondo, Régua, Rio de Janeiro (Brasil), Rio Maior, Sabugal, Sacavém, Sagres, Santarém, Santiago de Compostela (Galiza), São Brás de Alportel, São João da Madeira, São João d’El Rei (Brasil), São Paulo (Brasil), Seixal, Sesimbra, Setúbal, Silves, Sintra, Tavira, Teresina (Brasil), Tomar, Torres Novas, Torres Vedras, Trofa, Turim (Itália), Viana do Castelo, Vigo (Galiza), Vila do Bispo, Vila Meã, Vila Nova de Cerveira, Vila Nova de Foz Côa, Vila Nova de São Bento, Vila Real, Vila Real de Santo António e Vila Viçosa.
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quarta-feira, 21 de outubro de 2009

DIÁRIO DE MOEMA, VI


Diógenes, Jean-Léon Gérôme, 1860

2006, 2 de Abril.
«(…)Sou o silêncio incompreensível
Sou o proferir do meu nome.»
In Trovão, Mente Perfeita.

Deitei-me na noite, silenciei o mundo em meu redor, calei todas as vozes e esqueci-me de mim. Elevei-me até às estrelas. Escolhi uma, ao acaso, e fundi-me na sua energia.
Um dia, o silêncio dirá o meu nome.

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Entre os moinhos, a escuridão era cortada por uma fogueira, a alguns metros da autocaravana de Moema. A luz, não se vislumbrava senão da ponte, que, por aquelas horas, era pouco concorrida. As gentes da aldeia estavam à roda da televisão ou entretidas em conversas de café.
O Homem-com-um-tique-na-perna passeava-se pelas ruas, de olhos postos no chão, a imaginar as vidas para lá da luz das janelas. Procurava um canto que lhe deixasse olhar o casario. Ia partir no dia seguinte. Queria levar um pouco da tranquilidade que por ali se escondia e dela fazer segredo, para não a perturbar.
Sentou-se na outra margem e deixou a noite tomá-lo.
Lá em baixo, o brilho da fogueira atraiu a sua atenção. Desejou a presença daquele calor. Sentia-se frio na alma e estranho no mundo.
Levantou-se, saudou as estrelas e partiu.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

DIÁRIO DE MOEMA, V

Christian Coigny, Alekan, s/d


2006, 30 de Março.

Entrei no rio com o vagar do Sol que nasce.
As águas gélidas foram tomando cada centímetro do meu corpo, como quem saúda um amigo esperado.
Deitei-me ao colo do rio e o peso tornou-se leve, e as vozes líquidas. Na eternidade daquele instante senti-me um elo da grande corrente.
Pousada no peito, a minha concha contava-me histórias de errantes que encontraram o caminho de casa. Uns ficaram, outros voltaram a partir. Em todos se acendeu a chama da pertença e a certeza de uma candeia que nunca se apaga.

~Ü£w^’€>



O final da tarde solarenga encheu as ruas e a esplanada. O empregado de tez morena vagueava entre copos e pires de caracóis. Na mesa do canto, Moema escrevinhava num pequeno caderno de capa preta.
Sem aviso, explodiu o sorriso desdentado do Poeta a salpicar versos por quem não o ouvia. O vizinho de mesa de Moema, o Homem-com-um-tique-na-perna, convidou-o a juntar-se-lhe. Num encontro de loucos, ficaram frente a frente, a partilhar uma linguagem desconhecida.
Traga uma cerveja aqui para este amigo.
Por entre tragos de cerveja soltavam-se grandes nomes da literatura. O Poeta, declamando Baudelaire, como o maior de entre os maiores. O Homem-com-um-tique-na-perna sorria e soltava a voz noutro poema.
Um dos copos continuava cheio.
Os olhos azul-água, do velho Poeta, estavam turvos, da embriaguês de um único trago.
Vá bebendo, amigo, se quiser eu peço outra, que essa já está morta.
O Poeta semicerrou o olhar e, num doce rosnar, desabafou.
Como é que eu posso beber mais um gole, se eu já sou um gole, no copo vazio que é a minha vida?!
Olharam-se e deixaram o silêncio tomar conta do tempo.

domingo, 7 de setembro de 2008

Se te incomoda


Se te incomoda ouvir falar da elevação no império posso antes mostrar-te o jardim, e o constrangimento que o jardineiro impõe às ervas. E adivinho já o teu fastio: vais dizer-me que te aborrecem os caminhos programados do Palácio, a disposição geométrica das rosas, a igualitária decapitação das sebes; vais dizer-me que está cheio de tabuletas com proibições e que os teus pés descalços dançam melhor no prado das fadas. E como posso eu não te dar razão? Não tenho culpa do cansaço e da frieza dos príncipes. Ah, mas não é ao jardim deles que te quero levar: não perco tempo a propor-te bailes de máscaras.

Por isso te mostro o jardim, e por ele entendo o que nos espera se deixarmos para trás o Palácio e as ruas arrogantes dos mercadores e generais: aqui a horta humilde que abastece os mercados, mais além a floresta dos lobos, no meio dela o teu prado das fadas; deste lado a montanha coberta de carvalhos e faias, por ali o caminho que conduz ao mar. Em qualquer lugar tu situas-te: apetece-te a solitária companhia das dunas e sabes que cortas à esquerda a seguir ao moinho de água; mas se tens saudades da roda das fadas sabes que tens primeiro que atravessar a encosta dos abetos. E se te perdes na noite de Outono sabes em que direcção vai a lua nascer.

Ainda sentes o constrangimento? Na verdade, os carvalhos não progrediram além da linha da areia, aqui no prado das fadas não ocorreu ao hortelão plantar as suas cebolas. Olha para estes ramos despidos: não é ainda o tempo das maçãs. Em vão procurarias aqui a orquídea dos trópicos, e elas enchem no entanto a orgulhosa estufa dos príncipes. É essa a duríssima lei do jardineiro maior. E, vês? Não recorreu para isso a tabuletas nem a cães de guarda.

Mas as dunas, dirás tu que as dunas hão-de um dia ser morada de lobos e que o hortelão só ganharia se de manhã encontrasse orquídeas em vez de cebolas e que acabas de reparar que então há direcções onde nunca vemos a lua nascer? As dunas, dirás tu que lhes falta a liberdade de ser tudo, dirás que é injusto as fadas elegerem o prado verde para dançar e que serias mais feliz se a partir do moinho de água pudesses escolher qualquer caminho e todos descessem ao mar? Aí, onde irias quando ansiasses pela solidão? Onde, quando o teu coração quisesse dançar?

Entendes porque te afastei dos caminhos geométricos do Palácio? Não há neles sequer a sombra de um jardim, e por isso todos eles vão dar à varanda dos príncipes cansados. E para os construir foi preciso derrubar a cabana e a fonte, e por isso aqueles guardas carrancudos que te ficaram na memória como guardiães do império. Impostores. Não te esqueças de que essa história foi escrita para agradar aos generais, foi paga pelos mercadores que dependem do luxo dos príncipes. Mas tu escapavas-lhes de noite, e saltavas a muralha para brincar com as crias do lobo.

Na verdade, a tua liberdade é constrangimento das ervas: se elas se dispersarem, não terás um prado para dançar. E o teu constrangimento é a liberdade das árvores: que será delas se derrubares quem se interpõe entre ti e o mar? Mas ambos se fundam no jardim, que a tudo situa em hierarquia e poema.

E em ti, quem eu quero fundar é o jardineiro.

DITADURA


99 Cent Store, Andreas Gursky, 1999


Ditadura, sim. Um Império se erga acima do formigueiro de corruptas urbes, das vias rápidas sem destino, das pontes quebradas pelo lixo, das muitas casas, queimadas e escuras, das muitas gentes, robóticas e sem fala. Erga-se, defenda-se, alastre-se, um fogo do espírito, uma lei acima das leis, um costume acima dos costumes, uma justiça acima das justiças, uma assembleia universal igual para todos, iguais no assento da palavra. «Nada farei, ó César, para te agradar, / Nem me interessa se és branco ou preto.»*. O mesmo direi de cada um de vós. Que comeis. Onde, quando. A que deus ou deuses rezais. Ou a nenhum. Que fazeis na cama. Com quem. Que fazeis na casa. Como vestis. Com que entretenimentos ocupais o tempo vosso. A ditadura é o Império, despreza-vos nas vossas diferenças, em todas aquelas pequenas inutilidades onde julgais que acontece a vossa vida, isso é folclore humano, isso é merda, um caos de emoções envolvido em pratas e púrpuras. A lei do Império é universal, só reconhece indivíduos nos atributos comuns da sua humanidade; perante o Império são calados os vossos deuses e o vosso ganir de matilha, as identidades medíocres que julgais acima das dos outros, os vossos tiques de pertença, que quereríeis, megalomanamente, supremos, mas que mais não são que a súmula patológica das vossas insuficiências e mediocridades e vilezas. Nada sois de vosso perante o Império, porque o Império não vos reconhece a propriedade sobre nada que seja a humanidade, sobre nada que pertença a todos, sobre nada que seja a civilização no seu progresso futuro e imparável, sobre nada que seja a manifestação suprema da liberdade como motor da História.
A civilização é a casa da humanidade. O Império, a sua assembleia única. A ditadura, a sua guardiã. Um Rei, o seu autor.


Klatuu Niktos



* XCIII

Nil nimium studeo, Caesar, tibi velle placere,
nec scire utrum sis albus an ater homo.


Gaius Valerius Catullus, poeta do Império Romano, 87 a.C. – 54 a.C.

sábado, 6 de setembro de 2008

O mundo, como um unicórnio


Para a Anita Silva, Anita Soror, retribuindo um comentário que me deixou hoje, deixo aqui em jeito de resposta um pequenino texto que fiz para o meu blog em 2004. A frase destacada é do Padre António Vieira.


A mim, que sou quase todo feito de nada, entristece-me a tua ânsia de prender as palavras frágeis, de te embrulhar nelas como se te agasalhassem do vento mais forte. A mim, que sou quase todo feito de noite, entristece-me a tua ânsia de agarrar a beleza, de te misturar nela como se fosse em ti o véu da noiva ansiosa.

De que te queres proteger? Tu sabes que o perfume das rosas bravas não está na palavra "rosas", e o silêncio do azul claro não vem da palavra "mar". E em quantas coisas não reparaste, absorvido que estavas na beleza inútil da arte que as ocultou?

Olha para mim se não acreditas. Eu sou o primeiro a fraquejar, e por isso não te alegres se me vires dizer as rosas bravas. Para falar ao vento bastam palavras; para falar ao coração são precisas obras. E as obras nascem só do silêncio e da pedra e dos olhos que sabem guiar-se pelas mãos cansadas.

Não, não te alegres se eu cantar o mundo e os seus lugares de beleza. Porque não estarei a fazer mais que a disfarçar as lágrimas, e eu não gosto de chorar. Não te alegres sequer se me vires falar. É só porque calar-me era uma mentira maior.

Nunca aprendi a não ver as coisas tristes. E na vida pouco pude fazer para fazer o mundo sorrir. Mas eu, que sou quase todo feito das coisas que a ribeira arrasta, queria que os teus olhos soubessem que foram feitos para dar forma, que foram feitos para dar sentido. E que só neles poderás ser.

Sim, queria que entre ti e as trevas não houvesse o véu das palavras fáceis. Queria que olhasses cada um dos gritos que te prendem, cada um dos grilhões insustentáveis. Não te escondas atrás de palavras bonitas. Não acendas luzinhas na escuridão. Deixa as tuas mãos serem os teus olhos, e deixa os teus olhos tocar. E então sim, poderás falar. E experimenta dizer baixinho "princesa", como se chamasses a verdade: verás sorrir a beleza frágil, e junto dela o mundo.

O mundo, como um unicórnio.

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

RIMANCE DO CAVALEIRO DAS ESCÓCIAS (IV & V)



AQUELE QUE VAI MORRER


«A guerra é mãe e rainha de todas as coisas; a alguns transforma em deuses, a outros, em homens; de alguns faz escravos, de outros, homens livres.»

Heraclito


O exército parou a marcha e formou em frente à floresta. Esperaram, entre os relinchos das montarias e o calor intenso. Da floresta saiu um Cavaleiro, um só Cavaleiro, de armadura negra e cavalo negro, e parou. A sua posição e atitude no campo não deixavam incertezas, tinha vindo para o combate, para enfrentar aquele imenso exército.
Durante um segundo nada se moveu nas fileiras silentes, depois um quarto dos homens sorriu, um quarto riu alto e metade sentiu um medo inexplicável. Os capitães olharam para o Duque, e o Duque olhou para os capitães; depois os capitães olharam uns para os outros. Nem uma palavra foi proferida.
Para um observador externo a conclusão seria simples e rápida. O Cavaleiro de armadura negra, estático e extático, no seu cavalo estátua, bloco único de rocha da noite, não mais era que um lunático suicida e o destino da batalha estava decidido ainda antes de começar.
No entanto, é avisado acreditar que os instantes em que um homem eleva a matéria vil do mundo à grandeza que o transcende chamam sempre a atenção de observadores estranhos. Deus é esse observador. Superno às tristes criaturas, Ele somente não tem dúvidas que o milagre é uma espada que trespassa, sem dificuldade, a carne pútrida do mundo.





O REINO


Era uma vez um Cavaleiro que jurara lealdade a um Rei e uma Rainha, e um dia o Reino partiu-se e o Rei e a Rainha enviaram exércitos um contra o outro. Nesse dia o Cavaleiro fustigou a montada branca à ponta de um desfiladeiro e apeou-se na beira do precipício. Olhou os céus, olhou o rio de águas prateadas no fundo, muito fundo do abismo. Ficou ali, imóvel, enquanto o cavalo pastava, manhã e tarde, até que o cair do Sol lhe pintou a face de vermelho, e depois de negrume. Tinha feito uma jura, uma Jura de Cavaleiro e não poderia quebrá-la.
Voltou para comandar o exército do Rei e na sua armadura de prata conduziu a Cavalaria Real num movimento audaz, que forçou a retirada do exército da Rainha. Após a ceia recolheu à tenda e deixou ordens para não ser perturbado antes do claror da alba.
Quando tudo estava quieto, a coberto do escuro e com um manto negro, iludiu as sentinelas e caminhou para o centro da floresta densa, entrou numa antiga cabana de bruxa e de lá saiu um Cavaleiro de armadura mais de treva que a mais funérea das noites, que montou um cavalo preto, de longa crina. Qual espectro dos infernos, irrompeu pelo acampamento do exército do Rei e trucidou centenas de homens estremunhados e atónitos, uns que mal o enfrentavam, outros que fugiam em pânico, alguns que ajoelhavam e faziam o sinal da cruz.
Durante um lento e árduo ano, o exército do Rei progredia assim durasse a luz, chefiado pelo Cavaleiro de armadura de prata, mas assim a noite estendia o seu véu sobre o mundo eram duramente sangrados pela fúria do Cavaleiro Negro.
Nos exércitos em conflito militavam, cada um do seu lado, dois capitães que eram primos e que tinham estabelecido o pacto de, enquanto fossem vivos, se encontrar aos domingos numa capela, como amigos e família. Uma manhã, após terem rezado, confessaram as suspeitas que lhes devoravam o coração e escolheram uma noite para se reunir na floresta, cada um com um grupo de dez soldados valentes.
Era Lua cheia e viram nitidamente o Cavaleiro dirigir-se à cabana decrépita, que tinha um cavalo preto, de longa crina, com as rédeas atadas ao alpendre. Aguardaram que o Cavaleiro entrasse, fizeram cerco ao covil infecto e gritaram que se rendesse, uns em nome do Rei, outros em nome da Rainha.
Curta foi a espera, quando de lá saiu o Cavaleiro, equipado com partes de ambas as armaduras, que, ignorando o cavalo, se perfilou em frente da cabana, de escudo erguido e espada preparada, junto a uma lápide nua, sem qualquer inscrição. Os capitães de imediato deram sinal de ataque e um deles gritou «Traidor!», e o outro gritou também «Traidor!».
O combate durou uma interminável hora, o Cavaleiro foi ferido incontáveis vezes, nada parecia poder derrubá-lo e matou muitos, sem dizer palavra. Então, quando já só restavam seis dos soldados e os capitães, e desesperavam de poder vencer, a Rainha surgiu de dentro da noite a galope e atravessou o peito do Cavaleiro com uma flecha. O Cavaleiro deixou cair a espada e o escudo, foi golpeado pelos oito e tombou.
Sempre em silêncio, tentou arrastar-se para a lápide incógnita de pedra cega, mas uma lança pregou-o ao chão e nesse lugar morreu. Os capitães viraram o rosto e não viram a Rainha e nunca mais ninguém a viu e a paz voltou ao Reino.
Dizem os crédulos que quem passa no desfiladeiro, e se aproxima do precipício, ouve a Rainha chorar.


Lord of Erewhon

terça-feira, 2 de setembro de 2008

DIÁRIO DE MOEMA, IV

Marduque, Buçaco, 2003


2006, 25 de Março.

Hoje estive a tomar um café na esplanada da aldeia.
Uma réstia de sol ajudou a afastar o terror que me assombra de noite. Continuo sem conseguir ler as palavras que de vermelho se escrevem e apagam perante o meu olhar.
O verde viscoso que escorre pelas paredes enche-me de pânico. São verdes os montes que me rodeiam, plenos de promessas de vida, mas são também verdes esses outros pântanos de águas podres, estagnadas. A cor do broto que desponta é a do lodo de que fujo.
A verdura que luta com o verde!
O vermelho que joga comigo!

~Ü£w^’€>




Sentada na esplanada, resguardada do vento que soprava, Moema segurava na mão um livro esquecido. Os seus olhos, fixos na mesma página, vagueavam por outras paragens, indiferentes ao movimento do mercado.
As mulheres entravam e saiam carregadas de sacos de fruta, verduras e peixe. O muge era muito procurado, frito ou no forno, era um verdadeiro petisco que poucos dispensavam.
Os homens, amontoados em pequenos grupos, enchiam o largo de conversas cantadas. Davam uma vista de olhos pelo jornal desportivo, faziam-se prognósticos para os jogos de futebol…olhavam Moema pelo canto do olho.
Bonita moça!
A mais não se atreviam, pelas mulheres que podiam estar alerta, pelo ar sério e meio ausente com que ela se recostava na cadeira desconfortável.
O empregado, de tez morena, trouxe o café da manhã. Entre o tom educado, com que indica o melhor pão caseiro, dá um relance pela capa do livro, marcado com o indicador.
É de poucas falas. E pelo que lê também não chego lá!
Entre um encolher de ombros e um ligeiro aceno de cabeça, pegou na bandeja, sem novidades para contar.
Lá dentro, o vinho tinto servia-se a copo, entre nódoas marcadas no balcão de mármore gasto pelo tempo.

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Esta noite


Alguém me compreenderá se eu disser que esta noite a minha pátria é New Orleans. O lugar onde uma vez morreu o Sargento Roma. Uma rua no Porto onde numa cave de granito ouvi pela primeira vez o Joaquim Castro Caldas (hoje, ele morreu) e os seus poemas de rasgar. O senhor dom João Afonso de Albuquerque, "o do ataúde", que viveu há seiscentos anos e que tem uma história de que hoje de manhã me lembrei. Santa Maria de Belém do Pará, que hoje encontrei na montra de uma livraria e onde morreu a minha trisavó Emília. A casa onde nasceu Camilo Castelo Branco, a cuja porta hoje me encostei para fumar um cigarro. Um texto de Antoine de Saint-Exupery sobre a morte dos inimigos e o amor aos inimigos ("hoje morreu aquele que reinava a Leste do meu império..."). A gruta de Elefanta perto de Bombaim. Os olhos quase verdes da minha filha. Uma coisa que ficou por dizer na última conversa aqui. Uma recordação de 1979. Um rosto de pedra que encontrei junto a um texto chamado "Diário de Moema". Um lama tibetano que falou em 1948 com um explorador italiano que escreveu o livro que ando a ler. Cerveja. Uma lua que hoje não vi. O corvo que me saudou quando em Julho atravessei o rio Minho e entrei em terras galegas. A forma portuguesa como estas coisas me fazem.

domingo, 31 de agosto de 2008

DIÁRIO DE MOEMA, III

Salamonde, Vieira do Minho, 2008


2006, 22 de Março.

Encontrei um pequeno lugar guardado entre montes.
Sei-me observada pelos penedos, mas sinto a sua indiferença. Para eles, o tempo tem outra contagem. Não passo de um pestanejar da eternidade.
Parei junto ao rio. Fiquei a ver a viagem da corrente que passa sem saber para onde vai. Tive vontade de lhe gritar o seu destino. Ouvi os penedos e fiquei em silêncio.
Tenho a resposta, mas as águas não fizeram a pergunta.

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O rio corria na verdura do vale, ao lado do casario antigo. Era pequena a aldeia, feita de gente simples e de claras verdades – o dia segue a noite e não há mal que sempre dure. As reflexões profundas eram deixadas para o Poeta, o louco, que falava de coisas que eles não entendiam, mas que davam um certo colorido às conversas de rua. Já estavam habituados a frases sem nexo e longos ditos, a que ele chamava poesia. Sorriam e acenavam a cabeça, pois se nem sequer rimava…
Novidade, foi a chegada de Moema, uma mulher sozinha, a viver numa casa andante.
Não é coisa normal por estas paragens.
Entre o aviar do bacalhau e o contar das notas - que nem parecem nossas - comentava-se à boca cheia.
Anda fugida pela certa. Não há-de ter feito coisa boa.
No café, espreitavam a porta, não fosse ela aparecer. Tinham dado pela sua chegada ao amanhecer, à hora da bica, estava a sala cheia. Tempo era coisa que por ali não faltava. O destino já tinha marcado a hora para o jardim das tabuletas, e o serviço não fugia.
À beira-rio, Moema estava sentada, a abraçar as pernas, de olhar perdido na paisagem. Tinha ido ali parar sem saber bem como. Deixava-se levar pelo rumo do vento ou pelo cheiro da água. Estava cansada de conduzir. Queria descansar os olhos do alcatrão sempre igual, do barulho dos carros, do torpor do volante.
Os chocalhos do rebanho que se aproximava, trouxeram um sorriso ao seu olhar.
Ia ficar ali, por uns dias.

Nascido Tarde




Quando nasci tinha trinta e nove anos de idade. Poesia é o nome da minha mãe que me teve numa idade avançada. Como sabem, em idades avançadas não se devia ter filhos porque se corre o risco de malformações nos fetos.
A minha mãe foi avisada pelos médicos, mesmo assim correu o risco e eu nasci.
Quando passeio no jardim escuto as pombas que param para beber no lago do livro de histórias que leem, enquanto eu me escondo dos meus vizinhos que atiram pedras de papel branco, a mando das mães.
Escondo-me porque nasci tarde, com trinta e nove anos, e sinto vergonha dos outros que nasceram antes de mim.
Os pedúnculos das flores que tenho pelo corpo nasceram ocos. Um dia, cheia de curiosidade, quis saber se os das árvores também seriam iguais. Foi quando me acusaram de ter cortado as veias às árvores do parque e elas morreram. Tentei explicar-lhes que só as queria ver como eram por dentro, e depois ia cozê-las com linhas de costura da minha mãe. Mas ninguém me entendeu e consideraram o acto como um defeito de ter nascido tarde. Agora escondo-me por baixo da capa do livro, cheia de ervas, e fico ali até à noite quando sigo as estrelas dos lençóis da minha cama.
Também não poderei frequentar as escolas porque tenho idade avançada.A minha mãe ralha-me por eu ter nascido tarde mas eu não tenho culpa e ela sabe.Um dia tentei agradar-lhe e arranquei uma flor do meu corpo e dei-a para ela ficar feliz, mas ela pisou-a com o pé.
Os médicos dizem que não tenho cura, serei assim toda a vida: o ter nascido tarde.
Um Médico escreveu à minha mãe que eu podia fazer um tratamento intensivo para aprender a fazer poesia, que assim ia aliviar as minhas dores. Disse à minha mãe para me levar a uma clínica de livros e de leituras para fazer fisioterapia aos músculos das minhas flores; ao mesmo tempo que lia, levava choques eléctricos nos olhos e raios infra – vermelhos, por baixo da pele, no sangue.
Nunca mais fui ao tratamento! Mentia à minha mãe e fugia para o mar. Atirava areias à água com as gaivotas. Um dia a minha mãe desconfiou que não fazia os tratamentos e bateu-me, aqui nas costas, com uma pena, onde tenho a marca nas costelas.
Gostava de ter outra mãe que não fosse tão má.
Esta, quando mamo nos bicos das suas letras. Diz que já não tenho idade para mamar.Ela tem razão mas eu não tenho culpa de ter nascido tarde. Com trinta e nove anos tenho mais fome de cores e imagens. É por isso que lhe trinco os bicos, para ir buscar o que ela tem dentro dela. Sei que lhe dói quando faço isso porque ela grita e não me dá mais.
Gostaria de ter nascido como os outros poetas, com sete ou com nove anos de idade, não mais nem menos.
A minha mãe não teve culpa de eu ter nascido tarde. Foi a bruxa que vive no monte, na casa dos partos que adormeceu durante trinta e nove anos. A minha mãe não queria acordá-la mas teve que o fazer porque já não podia estar grávida, mais tempo, porque o mar se soltou rebentado pelas pernas abaixo.
Foi por isso que eu só nasci aos trinta e nove anos.


Ana Maria Costa
30 de Março de 2007

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

DIÁRIO DE MOEMA,II

Pedro Tildes, Serra da Estrela, 2007


2006, 17 de Março.


Hoje encontrei o lugar ideal, um campo verde pincelado de vermelho. Tinha a certeza que o reconheceria assim que o visse, sempre esteve lá à minha espera.
Tirei uma foto. Um destes dias tenho que organizar o álbum da minha viagem.
Andei, até onde a estrada não me via, e finalmente mudei de nome. Recuso ser nomeada como aquela que já não existe. Reinventei-me, num abraço ao universo, e conquistei a minha identidade.
Moema é o meu nome.
Moema… Moema… Moema…
Gritei, aos quatro ventos para que não se esqueçam de mim, ao Sol para que me dê força, à terra para que me guie, à água para que me dê vida.
Moema é o meu nome, Moema.
Sei que ganhei uma nova alma e que as forças da natureza me apadrinharam.
No caminho de volta, aconteceu uma coisa estranha. Encontrei uma concha na berma da estrada. Estava ali tão deslocada e perdida como uma oliveira à beira-mar. Tive a certeza de que era um sinal. Desatei a tira de couro que trazia ao pescoço e pendurei-a. Este é o colar de Moema, nunca mais o vou tirar.

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Sentada no banco do condutor, Moema escrevinhava no diário, um pequeno caderno, de capa preta, protegido por um elástico. Era a segunda página que enchia com a sua letra redonda, tudo o resto, em branco, ainda. Não o folheava, queria-as imaculadas, como um futuro que ninguém conhece.
Por duas vezes levou a mão à concha, que lhe adivinhava o decote. Parecia ter encontrado um verdadeiro amuleto, oculto na forma de adereço. Foi o acaso que lho trouxe às mãos, os verdadeiros achados procuram-nos, quando deles precisamos. É preciso ter o coração aberto, os olhos são, quase sempre, cegos.
O sorriso, límpido, denunciava uma esfoliação da alma.
Demorou-se a admirar cada letra do seu novo nome, a inebriar-se com a pronúncia de um som, o desafio de uma musicalidade antiga.
Abriu o porta-luvas e retirou um livro que, de tanto uso, se abriu na página desejada. Recostou-se, compondo os cabelos em desalinho, e leu em voz alta:
«É como uma barca que te vai conduzir pela vida porque você sabe quem é.»
Sentia um verdadeiro fascínio pelos rituais indígenas, as culturas ancestrais, a certeza ingénua do lugar de cada indivíduo, a ligação à comunidade. Seriam, talvez, mais felizes, mais próximos da natureza e seguros dos valores por que se conduziam.
Perdida nas tradições dos Guarani, retomou o diário. Acrescentou uma última linha, siglas ilegíveis de uma só palavra. Justificou o último cadeado, com uma voz rouca e grave:
Tenho que ter um nome que só eu conheça. O que me revela e desnuda não pode ser pronunciado, ou ganharão o poder de me dominar.
Agora podia prosseguir viagem. Sem mapa nem bússola, fez-se à estrada à procura de lugar nenhum.

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

DIÁRIO DE MOEMA, I

Maria Rego, Figueira de Castelo Rodrigo, 2007


2006, 16 de Março.

Este é o momento zero. Sufoco com a primeira golfada de ar, como um veneno a que preciso de me habituar. A capa uterina, do mundo onde cresci, nada mais tem para me oferecer. Não me perguntaram se queria nascer. Revoltaram-se quando decidi renascer. Da primeira vez, fui amparada, por mãos que me embalaram; agora, aconchego-me na minha jangada de quatro rodas e faço dela o meu berço de mulher.


~Ü£w^’€>


Sentia um verdadeiro prazer em conduzir. Percorrer estradas e caminhos, sem outro rumo que o chamamento da paisagem. Gostava das rectas ladeadas de árvores, dos campos cobertos de flores silvestres, da cor da terra lavrada, das casas perdidas em nenhures. Dos casebres abandonados, das esculturas dos penedos, das árvores que não morrem de pé.
Tinha sido uma boa compra aquela autocaravana, mesmo em segunda mão estava em óptimo estado. Ainda tinha regateado o preço, mas a verdade é que não conseguiria nenhuma mais em conta. Já andava cansada de procurar uma casa rolante, tinha pressa de partir e não estava interessada em luxos. Desde que não deixasse entrar água e o motor estivesse em bom estado, era quanto bastava. O espaço não era problema, precisava de pouco, umas mudas de roupa prática, objectos de higiene, a máquina fotográfica, o velho macaco de peluche, uns livros e – o mais importante – o seu diário. Claro, não podia dispensar a sua caneta preferida. Não prescindia dela, detestava esferográficas, eram impessoais, sem história, não conheciam o seu traço próprio.
Da berma da estrada sorria-lhe uma papoila. Acreditava, desde que se lembrava de si própria, na linguagem da natureza, na forma como estas frágeis flores anunciam algo de mágico. A Primavera chegou, as papoilas sabem esperar o momento certo e só o anunciam a pessoas especiais.
Encostou à berma e espreguiçou-se. A altura chegara. Sabia o que tinha de fazer.

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

MEMÓRIA DO ESQUECIMENTO


1ª Parte – Capítulo VIII

– Ai...uuu...é! Ai...uuu...é!

Eu brincava na vala sobre as raízes da tangerineira que lhe serviam de ponte e onde atava moinhos de cana que rodavam com a corrente. A mesma que atravessava o quintal entrando pelo tanque de lavar a roupa, onde o musgo prendia avencas que se espelhavam vaidosas à sombra da roseira de molhos de flores cremes, pequenas e olorosas, passava pela goiabeira ao lado e corria até bem ao fundo da horta, por entre as laranjeiras, esgueirando-se depois sob o muro até à lagoa grande lá em baixo.

A vala continha tesouros sem preço, nas noites ressoando o croá-croá dos sapos de goela inchada, os fios de gelatina pintalgados e esguios, longos, longos, presos nas beiras e ondeando coleantes na correnteza alegre. Os girinos escuros chegados logo depois dando à cauda, escorriam por entre os nossos dedos que em vão os queriam reter, ocupando horas infindas dos nossos dias.

A algazarra era imensa lá fora e eu trepei ao muro de adobe no fundo do quintal para mais depressa saber o que se passava. Corri um pouco ao longo do mesmo, esbarrei entretanto esfolando-me nas pernas e braços, mas segui em frente, sacudindo de mim a terra.

– Patrão matou jacaré. Vem, menino. Anda ver!

– Mentira… – mas continuei a correr.

Era certo que meu pai tinha saído a seguir ao almoço, fora dar uma volta pela fazenda à caça, decerto descera até ao rio e eu nem sequer o tinha ouvido chegar.

– É... é…! Verdade, menino!

Realmente a carrinha estava parada em frente ao portão grande, ajoujada com o peso do animal de que eu só conseguia ver a cauda pendurada. Cheguei arquejante junto ao círculo onde se juntavam todos: cozinheiro, lavadeira, criados, serventes, pastores, mulheres, garotos. Os mais pequenos escondiam-se agarrados aos panos das mães, assustados; as mulheres juntavam as mãos junto ao rosto como quem reza ou tapavam a boca com uma das mãos, segurando no outro braço o filho de colo; os homens comentavam:

– O’ngando inê...ê...êne!

– Haaca!

– Hum...hu. Avôiô...ô...!

Meu pai sorria, satisfeito, a língua a brincar com o capim seco na boca, de botas altas, enlameadas, rosto afogueado, cabelo colado à testa. Tinha chovido muito nos últimos dias e o rio transbordava, via-se de casa. Havia um tipo de veados que meu pai caçava – chissóvio – que habitavam os capinzais da beira-rio e raramente apareciam, saindo apenas durante as cheias, quando o nível das águas os forçava, e por isso meu pai descera. A sua carne era muito macia, de gosto agradável, e a pele de tom castanho-dourado, com leves riscas brancas no dorso, era sempre aproveitada: depois de salgada e seca ao sol, bem esticada, depois raspada com uma pedra para a amaciar, servia então para atapetar os quartos da casa.

Não era todos os dias que aparecia um crocodilo descuidado nas margens das lagoas de águas turvas que ladeavam o rio. Fora um acaso encontrá-lo e acertar-lhe no ponto certo para o imobilizar de imediato para que não pudesse deslizar para a água. Vezes sem conta os vi dentro do rio, boiando como um tronco pequeno onde se distinguiam apenas os olhos, mas atirar-lhes estava fora de questão, nunca poderiam ser retirados. Foi um dia de festa para todos, pois era muito apreciada a carne branca do réptil. Para nós, ficou a recordação de um cheiro pestilento e nauseabundo, que durante três dias empestou tudo em redor. E a pele.

É verdade, tenho de não me esquecer de estender esta ao sol, agora que está calor. É que no Inverno há demasiada humidade e pode encher-se de bolor. Há que preservá-la, afinal veio comigo de Angola num caixote, salgada, para ser curtida numa casa ali à Praça da Figueira, em Lisboa, vai para 40 anos…

Veio, foi, voltou. E aqui está intacta. Desafiando tudo. Enrolando tudo o que sobra das vidas que ficaram, no seu rolo escuro dentro do papel pardo, no armário húmido.

(segue)

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

MEMÓRIA DO ESQUECIMENTO


1ª Parte – Capítulo VII


Demorou pouco, porém o suficiente para começar a sentir-se incomodado fisicamente. Logo o assistente, de jeito afável e solícito, o ajudou a levantar para regressar ao cubículo onde tinha deixado a sua roupa. Esperou ainda algum tempo e logo a seguir o outro exame, menos confrangedor.

Já na recepção, foi informado de que os resultados da ecografia e da TAC só estariam prontos na semana seguinte. Teria ainda de vir em jejum retirar sangue para análises diversas. Outra coisa que o constrangia, sem compreender como não tinham ainda inventado uma forma menos mórbida de fazer essa extracção. Claro que é uma questão de somenos, sangue é vida, deveria ser olhado naturalmente, mas não era o único – sabia-o – para quem a visão do líquido pastoso e vermelho fervilha no cérebro mais no sentido da morte. Depois era sempre uma agulha enorme, uma seringa amplíssima, só de pensar naquele instrumento a perfurar a pele provocava-lhe arrepios, quando não lhe dava a volta ao estômago.

Amanhã não podia ser, era dia de reuniões; logo a primeira, reunião geral às nove, nunca se sabe a que horas termina, nem pensar, talvez no dia a seguir. Anotou as datas na sua agenda de trabalho.

Entrou no carro e, distraidamente, ligou o rádio. Pensou aproveitar e passar no supermercado, há sempre alguma coisa a comprar, mas a música que ouvia agradou-lhe e resolveu escolher o caminho mais longo para chegar a casa, conduzindo brandamente. Felizmente havia já boa música portuguesa. Alguns grupos dedicavam-se à pesquisa e recriação de dizeres e cantares de antanho e o resultado era admirável. Não sabia os nomes nem se preocupava em identificá-los; aquela voz feminina era vibrante e de timbre melodioso a sobressair dos sons de cordas e tímbalos bem cadenciados. Era leigo na matéria, mas sabia ouvir com a alma.

Continuou em direcção a casa, deixando as compras para outra altura. Queria mesmo não pensar em nada, ser capaz de parar o rio dos pensamentos que lhe povoavam as entranhas. Tinha trabalho a fazer para a escola, que o Verão chegava ao termo e a preparação do novo ano lectivo já começara. Organizava um guia do professor, tentando colmatar algumas falhas que se repetiam ano após ano com o desconhecimento das normas da instituição pelos novos professores que sempre chegavam; calendarizava as semanas e dias de cada período, reunia materiais e programas para as planificações habituais, preparava já os testes de diagnóstico. Este ano não entrava na comissão de horários, sentia-se demasiado cansado para conseguir a concentração necessária para essa tarefa. Lá ia o tempo em que, com verdadeiro afã, preparava a chegada dos novos elementos vindos de outras escolas. Um piquenique na Serra, na Fonte Mariana, nos Olhos d’Água, almoço num restaurante, raras vezes. A seguir, um passeio pelos lugares à volta, donde provinham as crianças normalmente mais carenciadas, que necessitavam de maior apoio, quer a nível pedagógico, quer económico, e nem sempre bem referenciado. Havia que estar atento e o conhecimento dos locais de origem das crianças pelos professores e, principalmente, pelos directores de turma, era fundamental na detecção de falhas nas crianças. Quantas tinham de levantar-se de madrugada para apanhar o autocarro e estar a horas do primeiro tempo na escola, muitas vezes sem pequeno-almoço tomado, sonolentas de uma noite mal dormida, mal aquecida, sem a higiene devida.

Deu o sinal horário na Antena 1 e o noticiário abriu com uma série de dislates proferidos pelo Senhor da Ilhas. Sem lhe discutir o conteúdo, mas a forma, e apenas a forma, como educador, aquilo pareceu-lhe mentira; não podia ser verdade o que os seus ouvidos escutavam. Num repente sentiu o vazio da sua profissão, ali pôs em causa todo um percurso de vida. Ser professor não era para ele mera profissão, era entregar-se por inteiro, mostrar-se tal como sentia, como o baobá daquele conto africano que gostava de ler aos seus alunos. Era ensiná-los a viver, a colher, a ser, como o lebrão, alegres e irreverentes e curiosos e espantados e sinceros e doces e carinhosos e caridosos e também perspicazes para conhecer as hienas... ser professor era ser exemplo na hombridade e no carácter, era ser rei. E ser rei era ter sangue vermelho nas veias, era lutar na frente de combate, era ser respeitado porque mais experiente, mais sabedor, mais compreensivo e também humilde para ouvir os outros, mas com força para impor a lei.

Hoje as leis não se cumprem porque as há em excesso e a quantidade reduz a qualidade; depois, perde-se demasiado tempo a escrever sobre elas. Pouco se faz por intuição, por vocação, por amor. Tudo é obrigação, tudo é contabilizado para ser pago. Foi-se o tempo da permuta, da troca de bens, tudo se vende por dinheiro. Mesmo os sacerdotes têm ordenado para dizer missa, que não para encaminhar as almas que os não procuram já. Assim se cumpre o segundo milénio de cristianismo que já não tem lugar porque se perdeu na bruma do progresso que tudo altera, qual a humidade que penetra nos ossos e nas máquinas ali criando a ferrugem que mina e destrói.

Circulava em via de tolerância zero, que ele já desrespeitava com o ponteiro a ultrapassar os noventa, e os carros que vinham atrás passavam e zarpavam, desaparecendo a breve espaço. Nas auto-estradas quem respeita o limite? Ninguém, e ninguém é punido por isso. Passam as motos a velocidades estonteantes, ziguezagueando por entre os carros; passa o ministro, passa porque tem pressa, os guardadores da lei abrem caminho. Passa porque é ministro, passa porque tem trabalho, passa porque tem de chegar a tempo, passa e não respeita a lei. Aprova a lei mas para os outros, que ele está acima das que propõe e aprova. Para os outros.

Accionou o pisca-pisca e saiu da estrada principal, virou no meio de pinheiros e mimosas, um eucaliptal a seguir. Extenso, fundo, quase a lembrar os que davam apoio ao CFB na sua terra, relativamente, claro, mas doía-lhe ver tudo cercado de eucalipto, a minar a terra e os lençóis de água deste país ameno, cobrindo os campos outrora território de pinheiros. Os fogos chegam mais facilmente, trepando das ervas pelos troncos secos e folhosos do eucalipto, cedo atingindo os cumes e logo propagados num ápice. Será que ninguém entendia isto? Governos atrás de governos, de centro direita e de centro esquerda, nenhum tocava no óbvio, era difícil prescindir do reverter de milhões das companhias de celulose.

Um pouco mais e estava em casa. Entrou na garagem vazia, sinal de que estaria só por algum tempo. Sentia-se cansado, muito cansado e soube-lhe bem o silêncio. Subiu as escadas e a cada degrau as têmporas doíam mais forte; a respiração longa e compassada deixava sentir o sangue em sobressalto correndo desvairado dentro de si. Precisava parar, não pensar, não sentir, não ouvir-se. Tomou um ansiolítico com um copo de leite quente e estirou-se no sofá.

(segue)

sexta-feira, 1 de agosto de 2008

MEMÓRIA DO ESQUECIMENTO


1ª Parte – Capítulo VI

Estou agora a ler a Agustina, a quinta-essência da escrita: olhos gulosos de outros relatos, ambiência vivida, espírito sabedor, prosa forte, concisa, de português nobre. A obra é produto de um trabalho aturado, preciso, organizado. Eu, escrevedor de linhas para expurgar angústias, sopro no vento o meu xangrilá. Os meus dedos tocam as teclas por todos os sonhos e por todos os silêncios, por toda a saudade também, e neles afloram os espíritos dos meus mortos porque eu já sou eles.

Ler Agustina é lembrar que o mistério do Oriente pairou na casa de meus pais com o nome carinhoso que a família sempre deu a meu pai – o tio Chinês – e a minha irmã que, como ele, tinha os olhos ligeiramente oblíquos e salientes, a Chinesa – a Fu-Ling-Chu, para os momentos de arrelia. A magia chegava pelos objectos que decoravam a casa, das arcas de madeira esculpida outras incrustadas a madrepérola, ao bar gravado com dragões e pagodes e homens e pássaros estranhos, nas paredes do escritório os quadros alongados e estreitos de largo passepartout azul, com paisagens elaboradas a folha de cortiça, as chávenas de porcelana finíssima decorados a moedas estranhas, com uma chinesa no fundo quando olhadas à transparência.

No escritório havia dois grandes livros encadernados a vermelho sobre a história da China, e as ilustrações de um elegante Buda dourado e sério, de pernas traçadas, os pássaros, os dragões, aquela estrada larga sobre a Muralha, encantaram os meus olhos de menino. Os dedos tacteavam o ouro das letras na capa, deslizavam por sobre o papel brilhante como para sentir pelo tacto a verdade daquilo que me parecia tão fabuloso. Onde moravam os dragões? Era verdade que lançavam chamas pelas ventas? Tudo tão irreal como as histórias de um outro grande livro que, como os anteriores, só raramente podíamos desfolhar, sentados no colo de quem nos contava o que diziam as letras que ainda não sabíamos ler. Este era encadernado a verde, tinha por título «A Mitologia» e estava no escritório ao lado de dois outros volumes idênticos sobre a Grande Guerra. O Rapto das Sabinas, a Hidra de Lerna, o Velo de Oiro, Hércules e a Serpente, o Labirinto, o Fio de Ariadne, tudo fazia ferver a imaginação que os anos derreteram, como o sol fundiu a cera das asas de Ícaro.

Mas era o grande Buda – tarde soube ser apenas representação de um monge budista, um dos sete deuses da sorte – esculpido em madeira escura, na estante do escritório, de pé, com os braços erguidos e expressão risonha, que deliciava os meus olhos; ele simbolizava o meu pai, ainda hoje evoca em mim lembranças que não se apagam.

Escrever é agora a esperança que me resta, quando já tudo fenece, quando o sol se deita, quando a lua não brilha e as estrelas se apagam. Só a escrita como refúgio quando há paz e tudo está quieto. Porque é preciso tranquilidade para deixar que os nossos dedos falem o que lhes vai na alma, quietude para dizer da exaltação da vida, para transmitir ao mundo algo de apaziguador de todas as tragédias, de todas as angústias, de todos os medos, opressões, desesperos, violência. Porque é preciso esquecer, calar, afagar o soluço, a vaga que às vezes sobe e se agiganta mais e mais.

(segue)

sexta-feira, 25 de julho de 2008

MEMÓRIA DO ESQUECIMENTO


1ª Parte – Capítulo V

Um lustro passado, depois outro e vários mais, não voltara a ouvir ninguém rir como seu pai. Gargalhadas sãs, de quem está de bem consigo e com a vida que é para ser levada sem mágoas, como a água límpida que corre sobre os seixos e os contorna e alisa, com decisão, com transparência e alegria.

Era vê-lo de conversa com os pastores em cada fim de dia, levando o sal que distribuía com uma grande colher de madeira ao longo do estreito atalho de conduzia ao rio, abaixo da casa. Bordão na mão, tocava de leve este ou aquele animal, afastando-lhe os chifres para passar, apontando um ou outro para separar, aquela porque está prenhe, este para castrar, aquele negro e mocho, de saliência no alto da cabeça, para manter e apurar a raça. No meio de cada tarefa de cavador ou servente, a sua chegada era recebida com agrado, conversa solta que ele não entendia, mas que breve suscitava ruídos de prazer que nunca soube imitar: gargalhadas de criança grande que dobra o riso e faz sorrir quem presencia.

Na sua mente cansada, perpassavam episódios que gostaria de reviver ali. No tempo do cacimbo, lá para os finais da colheita, acontecia aparecer um Sècuulo, velho idoso e muito respeitado, de longas barbas muito brancas, que só esporadicamente saía de casa. Eram-lhe prestadas certas deferências e, nesse dia, as conversas eram sempre mais moderadas, com cumprimentos efusivos e respeitosos. Seu pai conversava alegremente com ele, entre palmas e risos, pois as recordações de episódios passados em comum sucediam-se e era do agrado de todos que os partilhassem. Cultivava-se o prazer da conversa e o diálogo entre os dois velhos era escutado com devoção pelos presentes.

Portugal não sabe rir, é a fome, dizia seu pai. Mas agora não é a fome, é porque fica bem, porque assim devem ser os europeus. As pessoas devem ser contidas, severas no gesto, que o riso é alvar, é próprio dos tolos ou de quem está embriagado. Apenas sorrir é conveniente. Dixit.

Também ele já perdera a alegria. Chegou a sua vez no atendimento e felizmente alguém afável e eficiente consegue mesmo que aproveite o dia considerado perdido. Havia uma desistência e, entre telefonar e convocar quem não estava presente, cedeu-lhe a oportunidade. Para ele foi duplamente benéfico: primeiro, por não ter de voltar à policlínica e não ter de pensar mais nos exames médicos que tanto o contrariavam; segundo, porque dispunha de cada vez menos tempo para o seu trabalho que via amontoar-se em papéis e responsabilidades, tendo a perfeita noção de dia a dia se ver mais incapaz de assumir e concretizar. Há muito tempo, há demasiado tempo vinha acordando cansado, preocupado, inquieto e vazio. Tinha sempre de preparar aulas, matérias e testes, apressar a correcção dos que haviam sido feitos e nem sentia a cabeça, completamente oca, como se houvesse sido esvaziada, incapaz de coordenar o que quer que fosse. Fazia um esforço inumano para se levantar, ele que saltava da cama ainda há pouco, pronto a desafiar o mundo, no entusiasmo de viver cada dia contagiando os outros do seu prazer no trabalho, transmitindo a força que nem sempre sentia, mas passando-a, embora.

Levaram-no a um espaço exíguo para que se despisse e colocasse uma espécie de bata, tarefa que efectuou pausadamente. Sem grande demora, passou a uma sala relativamente grande e vazia, toda branca, branca como o que via agora dentro de si, roda de cores deslizando qual ventoinha tocada por vento forte, rodando, rodando e perdendo a coloração na velocidade. Ao fundo mal viu o que lhe pareceu um forno crematório. Foi convidado a deitar-se numa maca e na horizontal o conduziram para o túnel que a sua mente logo classificou de impróprio, desconfortável e deprimente. Cerrou os olhos com muita força.

(segue)


segunda-feira, 21 de julho de 2008

MEMÓRIA DO ESQUECIMENTO


1ª Parte – Capítulo IV


Quatro portas de madeira se abriam para o exterior da loja, nas duas paredes perpendiculares que ficavam fora do balcão. Grossas trancas de madeira as protegiam por dentro e quantas vezes, tarde da noite, eu ia, pequenito, de candeeiro na mão, alumiar o caminho para meu pai trancar as portas. Habitualmente só duas se abriam, uma do lado poente, outra do lado do rio, ficando aí outra sempre fechada. Só o cacimbo, com o sol ardente, sem chuva, trazia a força necessária para que todas as portas estivessem abertas desde a madrugada.

Era o tempo do milho. Grãos amarelinhos, macios ao tacto, aquecidos, deslizantes. Nos anos de abundância, o movimento era de tal ordem que não havia tempo de guardar o cereal que chegava às arrobas em quindas enormes trazidas à cabeça das mulheres ou em sacas em cima de um tronco enorme bifurcado, puxado por bois. Eram então colocadas tábuas de madeira a barrar a porta de entrada do armazém até meia altura e tudo era despejado directamente para o chão batido. Lá para Junho, Julho, já o milho aparecia à altura das tábuas e nós aguardávamos, ansiosos, o fim de tarde para a brincadeira no monte de grãos frescos, com a euforia própria da idade que nos deixava o corpo e cabelo cobertos de escamas.

Mas o que mais gostava era de acordar de manhã ao som da cantilena dos serventes na faina do tratamento do cereal. De quando em quando uma gargalhada vibrante, acompanhada de outras mais, de risos em coro: as graças de meu pai por entre a faina. Era sinal de vida, de alegria, de bulício, lugares novos para jogar às escondidas com a irmã, com os amigos que sempre trazíamos em tempo de férias.

Havia um trabalho de equipa. A duna de milho descia da porta de comunicação entre a loja e o armazém, que tinha o tapume de madeira, até à grande porta dos fundos que dava para norte, também para o rio lá em baixo. Aí era colocada a tarara, que iniciava o seu trabalho de manhãzinha e só descansava pelas cinco ou seis da tarde. A faina consistia em encher sacos com o milho amontoado, sacos esses que dois transportadores levantavam, segurando um de cada lado, com uma mão em cada ponta de baixo, e que deixavam tombar a parte superior sobre os outros dois braços livres entrelaçados, fazendo uma espécie de cadeirinha para aquele peso imenso. Iniciava-se então aquele soar... hing- hang ... hing-hang... hing-hang... que se prolongava por todo o dia. Uns levavam os sacos para a tarara, outros carregavam-nos com o milho já tareado para a balança e depois para o fundo do armazém onde eram alinhados e cosidos com fio de sisal enfiado numas agulhas enormes de cerca de um palmo, escuras e achatadas na ponta em que se enfiava o barbante.

Eu era fascinado pela conversa em surdina misturada com o barulho da máquina, os sons que não decifrava mas que me foram familiares desde que me lembro de mim. Havia sempre quem lhe facultasse uma daquelas agulhas enormes escuras para tentar coser também uma saca e uma mão amiga guiando a minha. Por pouco tempo embora, que era o tempo dos pássaros, de aprontar a fisga, de ir ver dos ninhos.

A culpa veio depois, no tempo da primeira comunhão, na capela do Colégio das Madres, na espera pela primeira confissão com a pergunta à minha irmã: também tenho de dizer que costumo matar passarinhos?

(segue)

terça-feira, 15 de julho de 2008

MEMÓRIA DO ESQUECIMENTO

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1ª Parte – Capítulo III


Que há valores, sabia-o bem. Mas valores, outros valores. Que valores? Valores são sonhos. Sonhos são fantasia, falsidade, logro. Têm uma conotação aliciante, aprazível, porque é algo que se deseja e só se anseia pelo que nos parece bom. Concretizam-se sonhos? Não. Nunca. Um sonho nunca deixa de o ser porque consiste num devaneio, numa ficção, porque é etéreo, porque não existe. Ainda. Quando acontece, acaba. E nunca é idêntico. Só serve para nos guiar e para nos fazer suportar a existência. O sonho é o tempo do devir e o tempo não existe. O tempo, somos nós. O tempo é a vida que passa. A vida não permanece. É. Passa. Flui. Quando se olha para ela, já acabou.

Revisitando a sua terra, cinquenta anos depois de África, seu pai viera mostrar aos filhos a herança dos avós que deixara intacta no final da Primeira Guerra, quando fizera as partilhas antes de abalar para responder à chamada dos irmãos mais velhos. A sua parte ficara à guarda da única irmã que permanecera na terra, já mãe de alguns filhos e doutros mais que viriam; terras de cultivo e olivais, para os ajudar a criar. Mas os pinheiros, ninguém lhes tinha tocado, nunca haviam sido resinados. A confirmação deste facto era-lhe sucessivamente assegurada após as viagens «de graciosa» de familiares. Em Vale de Cerejeira e nos Castanheirinhos, deixara-os já da altura de uma casa, agora, o abraço de um homem não chegaria para os contornar. E abria os braços desvanecido, enquanto acrescentava que, na Metrópole, os pais cortam os pinheiros que recebem de herança para construírem o seu início de vida, e logo plantam novos para que os filhos por sua vez os cortem e replantem de novo. Um corte de pinhal em cada geração, pois. Para os seus, porém, guardara ele orgulhosamente os dos avós: altos, vetustos, incólumes...

Só que a realidade foi diferente, e quando se deparou com ela, a certeza bateu forte. Resinados ano após ano, eventualmente replantados, haviam crescido esguios e frágeis. Cinquenta anos de ausência fora demasiado tempo e aqueles cortes na casca até bem alto, sentiu-os no coração já cansado de muitas labutas. Depois, ver sua irmã extremosa envelhecida, mais do que isso, velha e mirrada, descalça, já sem grande tino, foi outro choque. Aquela menina única que sua mãe não queria no campo, aquela irmã que o embalara e de quem se sentira sempre o irmão preferido, aquela irmã que se encheu de filhos, mais do que poderia manter a sua dignidade de mulher… por isso mergulhara na herança de seu irmão, que outros forçaram a que pensasse não voltar a ver, por isso deixou lancetar a carne dos pinheiros, deixou escorrer deles a seiva que era o sangue do seu menino de outros tempos. Só que ela não o sabia.

Ele também não questionou. Só desejou regressar rapidamente à sua terra, a terra de adopção que escolhera como sua, mas nem teve forças para chegar a casa. Oito dias no «Infante» a olhar as ondas da vida nas madrugadas na proa, o coração quieto ou em intenso pulsar, as cartas escritas com a alma a desfalecer, assim aportou à baía de Luanda. Mas já não conseguiu subir ao planalto.

Quisera viver um último sonho, e mal abriu os olhos, a vida parou.

(segue)

quinta-feira, 10 de julho de 2008

MEMÓRIA DO ESQUECIMENTO

1ª Parte – Capítulo II


O sonho de uma noite é por vezes tão real na madrugada chuvosa que daria um daqueles quadros surrealistas o seu relato. Gravar não é preciso, iria sobrecarregar o disco rígido com memória já tão pesada. Só aumentando os RAM. Mas o tempo agora é de repouso, há que digerir e arrumar os ficheiros.

O gorgolejar da gasolina a entornar pelo funil largo – escoando de um garrafão guardado há meses ad hoc – ainda ressoa nas minhas noites, o sangue ainda circula mais quente e os músculos ainda traem a firmeza das mãos. O abraço longo e cheio de lágrimas à Sofia, a mulher leal que connosco partilhara os anos da criação dos filhos e as também últimas recomendações: os muitos envelopes selados com a direcção da aldeia natal, escreva, vá dando notícias… venha ao menos ver a casa… se venho eles matam-me, senhor, tenho de fugir, ir no mato…!

Já a caminho do aeroporto, deixadas as ruas largas de moradias abandonadas, algumas marcadas já de guerra com furos de balas nas paredes, jardins sem dono, queimados pelo longo cacimbo que mal chegara ao fim, a obstrução súbita da viagem por homens de fato camuflado, armados de G-3. Olhos baços e ensanguentados no rosto escuro, adiante a metralhadora feita braço a ordenar a saída do carro, o remexer na mala traseira, o terror estampado nos rostos das crianças afundadas no banco de trás, os próprios movimentos mecânicos, de reacção contida, o ar sem entrar nos pulmões, parado o sangue, muda a voz, o agora, o sempre, o nunca mais…

A palidez veio em seguida, esgotadas as forças, já com o carro estacionado a esmo, entre tantos outros no meio do capim circundante ao exterior da aerogare, antes de retirar os trinta e cinco quilos a que cada um tinha direito ao entrar no avião. De toda uma vida, trinta e cinco quilos. De quê? Agasalhos para o Inverno europeu, os livros de cabeceira, os discos da mocidade, o tractor do garoto, o chorão da filha, as pratas herdadas, os álbuns das fotos, das crianças, dos meus cinco anos de tropa, da minha infância... o que é mais importante? O que vai ser importante? Que futuro? Que força vai ser necessária para o equilíbrio de todos nós?

O aeroporto é um mar de gente. O chão de cimento coberto de caixas, malas, grades, colchões, crianças dormindo, pessoas estiradas, novos, velhos, doentes, sãos, todos cansados, despenteados, desordenados, desnorteados, refugiados vindos de Malange, fugidos à guerra. Outros encheram já os hospitais, as escolas primárias, o liceu Norton de Matos, a industrial Sarmento Rodrigues, a preparatória Gentil Martins. Alguns tiveram tempo de trazer os seus animais, pássaros, gatos, cães enormes em caixotes pregados, prontos a embarcar. Embarcar? Não sei. O nosso voo seria dentro de poucos minutos.

Finalmente a caminho para a entrada do avião da ponte aérea, horas mais tarde, a mulher à frente com o pequeno mais novo pela mão, na outra o saco, seguíamos em fila. Entre nós, de repente, uma corda quebrou o cordão humano. A nossa filha, oito anos de desvelos, ternuras, esperanças, com a mão livre agarrou a corda, a outra apertando a minha, e aterrada gritou MÃE! «Vai no próximo. Sai outro avião dentro de meia hora.» NÃO! A menina passou, tão breve o susto que não chegou a marcar.

Eu segui depois, encontrámo-nos no aeroporto em Lisboa, cada um a trocar cinco contos de réis em dinheiro da metrópole. As crianças não tinham direito sequer a esses valores.

(segue)


quarta-feira, 9 de julho de 2008

RIMANCE DO CAVALEIRO DAS ESCÓCIAS (II & III)

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FINISTERRA


«O meu cavalo é a minha pátria.»

Dito por um proto-ariano anónimo no princípio dos tempos

«Quando estiveres perdido na batalha, meu filho, solta os cães, mas não para muito longe de ti, porque os cães já foram um dia lobos, criaturas selvagens.»

Dito por um guerreiro Dácio ao seu filho durante a iniciação militar


O mar sem fim, a luz feroz, acesa alto e o semi-deserto, florido de todas as maravilhas terrenas. Ó terra, recebe-me como teu filho, porque eu fui escorraçado de todas as pátrias e muito caminhei e padeci para aqui chegar. Tanta luz e mar e horizonte são a tua coroa, mãe generosa e doce, gentes tão diversas e felizes são as tuas vestes, limpas e simples e os perfumes do ar, em que se mistura toda a imensa beleza destes campos sagrados, são o teu ceptro, justo e altivo. Recebe-me, terra, recebe-me, mãe, que eu sou um errante sem pátria e já só tu, Terra do Fim, Terra das Serpentes, és a minha derradeira esperança.
Ouvi no vento furioso que no teu ventre santo guardas um tesouro e um sonho, que unirás todos os povos do mundo no teu seio manso e belo e erguerás um Império de Luz Extrema, em que os homens, as feras e as aves cantarão juntos. Recebe-me como filho, ó mãe, que me fizeram órfão e me roubaram tudo, eu serei o guardião do teu tesouro e o soldado do teu sonho e por ti combaterei, eu e todos estes por quem ergo a voz, cavaleiros fulvos das Escócias, aprumados lanceiros das Arábias, valentes guerreiros Mandingas das Áfricas primordiais, archeiros clarividentes da Cidade de D*us e muitos outros que virão, os que vierem de além das estepes, os de além dos gelos, os que descerem das montanhas, vestidos de nuvem e luz e os que se levantarão do fundo negro dos mares, ainda que lhes digam que estão mortos.
Ó Terra do Fim, mãe generosa e doce, Senhora minha, Rainha minha, aceita-me por teu filho e a este exército apátrida; sem mãe, um homem não tem centro nem paz e à nossa a mataram diante dos nossos olhos. Recebe-nos mar sem fim, recebe-nos luz alta, recebe-nos deserto desprezado do Ocidente, eu serei o teu filho fiel, o teu jardineiro proficiente e o teu bardo vociferante, sangrento e sem temor, inflamando pelo canto todos os que aqui perfilam comigo, ajoelhados na areia da praia última, frente ao mar Oceano, irmãos do meu sangue e teus filhos, que seremos a carne do teu Trono e da tua Glória!
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OS QUE VÃO MORRER


O homem baixo de olhos altivos acercou-se da montada do gigante de longos e revoltos cabelos castanho-avermelhados.
– «Senhor, os meus estão prontos. Já rezámos e quero dizer-lhe que o meu D*us o receberá no Seu Paraíso.»
O Cavaleiro de aspecto feroz moveu o rosto e olhou.
– «De que falais?»
– «Senhor, eu sei que morreremos hoje, o inimigo é dez vezes os nossos! Face à morte nada mais pode separar os homens… Quero que saiba que é sangue do nosso sangue para sempre, merece mais do que passar a Eternidade numa taberna suja!»
O gigante de cabelos revoltos, como lume, moveu um pé do estribo para o dar ao homem baixo de olhos estranhos, estendeu-lhe o braço. O cavalo tremeu.
– «Subi! Olhai para o fim do nosso exército!»
– «Alguns fogem, Senhor…»
– «Fogem sempre alguns. Olhai mais fundo, para além do horizonte…»
– «Vejo sombras, fogos-fátuos, vultos…»
– «Olhai agora para a direita e para a esquerda… e olhai para cima!»
O rosto e a voz do Israelita de olhos estranhos alteraram-se de um modo indizível e disse.
– «Os mortos…»
– «Sim, os mortos!» – replicou o Cavaleiro das Escócias – «O nosso exército dos mortos é mil vezes superior… e cada vez que um de nós cair aqui… irá engrossar o número daqueles» – estendeu o braço e apontou para o céu – «ali! Preparai-vos!»
Um vento começou a soprar. O inimigo dava já mostras de querer atacar. O Cavaleiro de bárbaros couros vestido ergueu a espada.
– «A mim! A mim, bravos das Escócias! Gritai comigo! Que nem um homem fique a dormir nas highlands! Que os clãs despertem e saibam que ganharemos hoje, aqui, a glória!»
Um grande grito humano se ouviu, urro terrível e temerário. Depois, uma espécie de grito, ainda maior, e era como um cântico e homens gritavam e, entre eles, Anjos.
– «Shema Yisrael Adonai Eloheinu Adonai Ehad!!»
O Cavaleiro carregou e, de imediato, foi ultrapassado por cavalaria rápida.
– «Santiago!!»
– «São Jorge!!»
Cavaleiros ibéricos de rosto fechado e, no meio dos cavalos, tão lestos quanto estes, se moviam sombras letais, guerreiros negros emplumados, de tronco nu. O Cavaleiro das Escócias, de longo cabelo revolto irmão do vento, empinou a montada e gritou.
– «Portugal!» – e ouviu-se um eco vindo da terra e do céu – «Portugal!!»
Os homens gritavam, mas também Anjos, cavalos, deuses esquecidos, mastins de guerra e o clamor do vento, a luz cheia e o rugido do mar.
«PORTUGAL!!!»


Lord of Erewhon