A Águia, órgão do Movimento da Renascença Portuguesa, foi uma das mais importantes revistas do início do século XX em Portugal. No século XXI, a Nova Águia, órgão do MIL: Movimento Internacional Lusófono, tem sido cada vez mais reconhecida como "a única revista portuguesa de qualidade que, sem se envergonhar nem pedir desculpa, continua a reflectir sobre o pensamento português". 
Sede Editorial: Zéfiro - Edições e Actividades Culturais, Apartado 21 (2711-953 Sintra). 
Sede Institucional: MIL - Movimento Internacional Lusófono, Palácio da Independência, Largo de São Domingos, nº 11 (1150-320 Lisboa). 
Contactos: novaaguia@gmail.com ; 967044286. 

Donde vimos, para onde vamos...

Donde vimos, para onde vamos...
Ângelo Alves, in "A Corrente Idealistico-gnóstica do pensamento português contemporâneo".

Manuel Ferreira Patrício, in "A Vida como Projecto. Na senda de Ortega e Gasset".

Onde temos ido: Mapiáguio (locais de lançamentos da NOVA ÁGUIA)

Albufeira, Alcáçovas, Alcochete, Alcoutim, Alhos Vedros, Aljezur, Aljustrel, Allariz (Galiza), Almada, Almodôvar, Alverca, Amadora, Amarante, Angra do Heroísmo, Arraiolos, Assomada (Cabo Verde), Aveiro, Azeitão, Baía (Brasil), Bairro Português de Malaca (Malásia), Barcelos, Batalha, Beja, Belmonte, Belo Horizonte (Brasil), Bissau (Guiné), Bombarral, Braga, Bragança, Brasília (Brasil), Cacém, Caldas da Rainha, Caneças, Campinas (Brasil), Carnide, Cascais, Castro Marim, Castro Verde, Chaves, Cidade Velha (Cabo Verde), Coimbra, Coruche, Díli (Timor), Elvas, Ericeira, Espinho, Estremoz, Évora, Faial, Famalicão, Faro, Felgueiras, Figueira da Foz, Freixo de Espada à Cinta, Fortaleza (Brasil), Guarda, Guimarães, Idanha-a-Nova, João Pessoa (Brasil), Juiz de Fora (Brasil), Lagoa, Lagos, Leiria, Lisboa, Loulé, Loures, Luanda (Angola), Mafra, Mangualde, Marco de Canavezes, Mem Martins, Messines, Mindelo (Cabo Verde), Mira, Mirandela, Montargil, Montijo, Murtosa, Nazaré, Nova Iorque (EUA), Odivelas, Oeiras, Olhão, Ourense (Galiza), Ovar, Pangim (Goa), Pinhel, Pisa (Itália), Ponte de Sor, Pontevedra (Galiza), Portalegre, Portimão, Porto, Praia (Cabo Verde), Queluz, Recife (Brasil), Redondo, Régua, Rio de Janeiro (Brasil), Rio Maior, Sabugal, Sacavém, Sagres, Santarém, Santiago de Compostela (Galiza), São Brás de Alportel, São João da Madeira, São João d’El Rei (Brasil), São Paulo (Brasil), Seixal, Sesimbra, Setúbal, Silves, Sintra, Tavira, Teresina (Brasil), Tomar, Torres Novas, Torres Vedras, Trofa, Turim (Itália), Viana do Castelo, Vigo (Galiza), Vila do Bispo, Vila Meã, Vila Nova de Cerveira, Vila Nova de Foz Côa, Vila Nova de São Bento, Vila Real, Vila Real de Santo António e Vila Viçosa.
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quarta-feira, 21 de outubro de 2009

DIÁRIO DE MOEMA, VI


Diógenes, Jean-Léon Gérôme, 1860

2006, 2 de Abril.
«(…)Sou o silêncio incompreensível
Sou o proferir do meu nome.»
In Trovão, Mente Perfeita.

Deitei-me na noite, silenciei o mundo em meu redor, calei todas as vozes e esqueci-me de mim. Elevei-me até às estrelas. Escolhi uma, ao acaso, e fundi-me na sua energia.
Um dia, o silêncio dirá o meu nome.

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Entre os moinhos, a escuridão era cortada por uma fogueira, a alguns metros da autocaravana de Moema. A luz, não se vislumbrava senão da ponte, que, por aquelas horas, era pouco concorrida. As gentes da aldeia estavam à roda da televisão ou entretidas em conversas de café.
O Homem-com-um-tique-na-perna passeava-se pelas ruas, de olhos postos no chão, a imaginar as vidas para lá da luz das janelas. Procurava um canto que lhe deixasse olhar o casario. Ia partir no dia seguinte. Queria levar um pouco da tranquilidade que por ali se escondia e dela fazer segredo, para não a perturbar.
Sentou-se na outra margem e deixou a noite tomá-lo.
Lá em baixo, o brilho da fogueira atraiu a sua atenção. Desejou a presença daquele calor. Sentia-se frio na alma e estranho no mundo.
Levantou-se, saudou as estrelas e partiu.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

DIÁRIO DE MOEMA, V

Christian Coigny, Alekan, s/d


2006, 30 de Março.

Entrei no rio com o vagar do Sol que nasce.
As águas gélidas foram tomando cada centímetro do meu corpo, como quem saúda um amigo esperado.
Deitei-me ao colo do rio e o peso tornou-se leve, e as vozes líquidas. Na eternidade daquele instante senti-me um elo da grande corrente.
Pousada no peito, a minha concha contava-me histórias de errantes que encontraram o caminho de casa. Uns ficaram, outros voltaram a partir. Em todos se acendeu a chama da pertença e a certeza de uma candeia que nunca se apaga.

~Ü£w^’€>



O final da tarde solarenga encheu as ruas e a esplanada. O empregado de tez morena vagueava entre copos e pires de caracóis. Na mesa do canto, Moema escrevinhava num pequeno caderno de capa preta.
Sem aviso, explodiu o sorriso desdentado do Poeta a salpicar versos por quem não o ouvia. O vizinho de mesa de Moema, o Homem-com-um-tique-na-perna, convidou-o a juntar-se-lhe. Num encontro de loucos, ficaram frente a frente, a partilhar uma linguagem desconhecida.
Traga uma cerveja aqui para este amigo.
Por entre tragos de cerveja soltavam-se grandes nomes da literatura. O Poeta, declamando Baudelaire, como o maior de entre os maiores. O Homem-com-um-tique-na-perna sorria e soltava a voz noutro poema.
Um dos copos continuava cheio.
Os olhos azul-água, do velho Poeta, estavam turvos, da embriaguês de um único trago.
Vá bebendo, amigo, se quiser eu peço outra, que essa já está morta.
O Poeta semicerrou o olhar e, num doce rosnar, desabafou.
Como é que eu posso beber mais um gole, se eu já sou um gole, no copo vazio que é a minha vida?!
Olharam-se e deixaram o silêncio tomar conta do tempo.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Maçãs

Entro em casa, nesse espaço exíguo, que às vezes se torna num labirinto, onde nem o carteiro consegue chegar, porque essa estrutura, composta por vários caminhos, inicia numa das travessas que atravessam uma das ruas que desaguam em minha casa.
E assim se extraviam cartas com carácter urgente e características específicas que ficam por especificar, numa espécie de espectáculo, em que sou actriz e espectadora, mas onde não tenho bilhete para entrar, nem estou preparada para actuar.
Apesar dos extravios e destes equilíbrios desequilibrados, chego sempre ao meu destino, a esse espaço, que é outro labirinto formado por cerejeiras carregadas de suculentas maçãs brancas, que me lembram a sensação das tuas mãos, que me alimentam e arrepiam numa saciável e perfeita insaciedade desse outro labirinto que és tu.

terça-feira, 9 de setembro de 2008

Mosaico de Rancores: capítulo 3

René Magritte

Desço as escadas com dificuldade de cego. Poderia ficar enclausurada com a minha paranóia, as minhas loucuras, remoendo fiapos dos meus retalhos, não consigo. Ando pelas ruas, sinto cada buraco perfurando as solas dos meus sapatos, os meus velhos passos sempre me perseguem. Aonde se enfiou aquele imbecil? Sei que nunca irei achá-lo, nem sei se quero e ainda que o achasse, ele me negaria 3 vezes, como Pedro negou a Cristo. A velha grita feito uma histérica. Não posso matá-la, nem sequer esfaqueá-la.
Entro na padaria, não olho para o balcão, não olho para os doces, não olho para os sonhos. Peço um café sem açúcar. Não gosto de café, mas sempre é a primeira coisa que peço quando entro em algum lugar. Um abismo bebido em pequenos goles. Deixo um fundo na xícara. Abismos água abaixo. Não vejo a cara da balconista, me levanto e esbarro em uma mesa. Meu impulso é sair sem pagar, me controlo. Sempre reservos notas de um real no bolso, é mais fácil, não preciso esperar o troco, nem brigar por tentativas de pequenos roubos. Nunca confie num homem atrás de uma máquina registradora.
Saio depressa, o sol bate com violência no meu rosto, quer me espofetear. Ignoro, existem coisas que consigo ignorar. Na praça a fonte espirra uma água verde e calma, é o rio que insiste em nascer no meu antigo quintal. Crianças em roda jogam moedas. Cara ou coroa? Já me esqueço do limbo escuro do Vale dos Suicidas.

domingo, 7 de setembro de 2008

Se te incomoda


Se te incomoda ouvir falar da elevação no império posso antes mostrar-te o jardim, e o constrangimento que o jardineiro impõe às ervas. E adivinho já o teu fastio: vais dizer-me que te aborrecem os caminhos programados do Palácio, a disposição geométrica das rosas, a igualitária decapitação das sebes; vais dizer-me que está cheio de tabuletas com proibições e que os teus pés descalços dançam melhor no prado das fadas. E como posso eu não te dar razão? Não tenho culpa do cansaço e da frieza dos príncipes. Ah, mas não é ao jardim deles que te quero levar: não perco tempo a propor-te bailes de máscaras.

Por isso te mostro o jardim, e por ele entendo o que nos espera se deixarmos para trás o Palácio e as ruas arrogantes dos mercadores e generais: aqui a horta humilde que abastece os mercados, mais além a floresta dos lobos, no meio dela o teu prado das fadas; deste lado a montanha coberta de carvalhos e faias, por ali o caminho que conduz ao mar. Em qualquer lugar tu situas-te: apetece-te a solitária companhia das dunas e sabes que cortas à esquerda a seguir ao moinho de água; mas se tens saudades da roda das fadas sabes que tens primeiro que atravessar a encosta dos abetos. E se te perdes na noite de Outono sabes em que direcção vai a lua nascer.

Ainda sentes o constrangimento? Na verdade, os carvalhos não progrediram além da linha da areia, aqui no prado das fadas não ocorreu ao hortelão plantar as suas cebolas. Olha para estes ramos despidos: não é ainda o tempo das maçãs. Em vão procurarias aqui a orquídea dos trópicos, e elas enchem no entanto a orgulhosa estufa dos príncipes. É essa a duríssima lei do jardineiro maior. E, vês? Não recorreu para isso a tabuletas nem a cães de guarda.

Mas as dunas, dirás tu que as dunas hão-de um dia ser morada de lobos e que o hortelão só ganharia se de manhã encontrasse orquídeas em vez de cebolas e que acabas de reparar que então há direcções onde nunca vemos a lua nascer? As dunas, dirás tu que lhes falta a liberdade de ser tudo, dirás que é injusto as fadas elegerem o prado verde para dançar e que serias mais feliz se a partir do moinho de água pudesses escolher qualquer caminho e todos descessem ao mar? Aí, onde irias quando ansiasses pela solidão? Onde, quando o teu coração quisesse dançar?

Entendes porque te afastei dos caminhos geométricos do Palácio? Não há neles sequer a sombra de um jardim, e por isso todos eles vão dar à varanda dos príncipes cansados. E para os construir foi preciso derrubar a cabana e a fonte, e por isso aqueles guardas carrancudos que te ficaram na memória como guardiães do império. Impostores. Não te esqueças de que essa história foi escrita para agradar aos generais, foi paga pelos mercadores que dependem do luxo dos príncipes. Mas tu escapavas-lhes de noite, e saltavas a muralha para brincar com as crias do lobo.

Na verdade, a tua liberdade é constrangimento das ervas: se elas se dispersarem, não terás um prado para dançar. E o teu constrangimento é a liberdade das árvores: que será delas se derrubares quem se interpõe entre ti e o mar? Mas ambos se fundam no jardim, que a tudo situa em hierarquia e poema.

E em ti, quem eu quero fundar é o jardineiro.

DITADURA


99 Cent Store, Andreas Gursky, 1999


Ditadura, sim. Um Império se erga acima do formigueiro de corruptas urbes, das vias rápidas sem destino, das pontes quebradas pelo lixo, das muitas casas, queimadas e escuras, das muitas gentes, robóticas e sem fala. Erga-se, defenda-se, alastre-se, um fogo do espírito, uma lei acima das leis, um costume acima dos costumes, uma justiça acima das justiças, uma assembleia universal igual para todos, iguais no assento da palavra. «Nada farei, ó César, para te agradar, / Nem me interessa se és branco ou preto.»*. O mesmo direi de cada um de vós. Que comeis. Onde, quando. A que deus ou deuses rezais. Ou a nenhum. Que fazeis na cama. Com quem. Que fazeis na casa. Como vestis. Com que entretenimentos ocupais o tempo vosso. A ditadura é o Império, despreza-vos nas vossas diferenças, em todas aquelas pequenas inutilidades onde julgais que acontece a vossa vida, isso é folclore humano, isso é merda, um caos de emoções envolvido em pratas e púrpuras. A lei do Império é universal, só reconhece indivíduos nos atributos comuns da sua humanidade; perante o Império são calados os vossos deuses e o vosso ganir de matilha, as identidades medíocres que julgais acima das dos outros, os vossos tiques de pertença, que quereríeis, megalomanamente, supremos, mas que mais não são que a súmula patológica das vossas insuficiências e mediocridades e vilezas. Nada sois de vosso perante o Império, porque o Império não vos reconhece a propriedade sobre nada que seja a humanidade, sobre nada que pertença a todos, sobre nada que seja a civilização no seu progresso futuro e imparável, sobre nada que seja a manifestação suprema da liberdade como motor da História.
A civilização é a casa da humanidade. O Império, a sua assembleia única. A ditadura, a sua guardiã. Um Rei, o seu autor.


Klatuu Niktos



* XCIII

Nil nimium studeo, Caesar, tibi velle placere,
nec scire utrum sis albus an ater homo.


Gaius Valerius Catullus, poeta do Império Romano, 87 a.C. – 54 a.C.

sábado, 6 de setembro de 2008

O mundo, como um unicórnio


Para a Anita Silva, Anita Soror, retribuindo um comentário que me deixou hoje, deixo aqui em jeito de resposta um pequenino texto que fiz para o meu blog em 2004. A frase destacada é do Padre António Vieira.


A mim, que sou quase todo feito de nada, entristece-me a tua ânsia de prender as palavras frágeis, de te embrulhar nelas como se te agasalhassem do vento mais forte. A mim, que sou quase todo feito de noite, entristece-me a tua ânsia de agarrar a beleza, de te misturar nela como se fosse em ti o véu da noiva ansiosa.

De que te queres proteger? Tu sabes que o perfume das rosas bravas não está na palavra "rosas", e o silêncio do azul claro não vem da palavra "mar". E em quantas coisas não reparaste, absorvido que estavas na beleza inútil da arte que as ocultou?

Olha para mim se não acreditas. Eu sou o primeiro a fraquejar, e por isso não te alegres se me vires dizer as rosas bravas. Para falar ao vento bastam palavras; para falar ao coração são precisas obras. E as obras nascem só do silêncio e da pedra e dos olhos que sabem guiar-se pelas mãos cansadas.

Não, não te alegres se eu cantar o mundo e os seus lugares de beleza. Porque não estarei a fazer mais que a disfarçar as lágrimas, e eu não gosto de chorar. Não te alegres sequer se me vires falar. É só porque calar-me era uma mentira maior.

Nunca aprendi a não ver as coisas tristes. E na vida pouco pude fazer para fazer o mundo sorrir. Mas eu, que sou quase todo feito das coisas que a ribeira arrasta, queria que os teus olhos soubessem que foram feitos para dar forma, que foram feitos para dar sentido. E que só neles poderás ser.

Sim, queria que entre ti e as trevas não houvesse o véu das palavras fáceis. Queria que olhasses cada um dos gritos que te prendem, cada um dos grilhões insustentáveis. Não te escondas atrás de palavras bonitas. Não acendas luzinhas na escuridão. Deixa as tuas mãos serem os teus olhos, e deixa os teus olhos tocar. E então sim, poderás falar. E experimenta dizer baixinho "princesa", como se chamasses a verdade: verás sorrir a beleza frágil, e junto dela o mundo.

O mundo, como um unicórnio.

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

RIMANCE DO CAVALEIRO DAS ESCÓCIAS (IV & V)



AQUELE QUE VAI MORRER


«A guerra é mãe e rainha de todas as coisas; a alguns transforma em deuses, a outros, em homens; de alguns faz escravos, de outros, homens livres.»

Heraclito


O exército parou a marcha e formou em frente à floresta. Esperaram, entre os relinchos das montarias e o calor intenso. Da floresta saiu um Cavaleiro, um só Cavaleiro, de armadura negra e cavalo negro, e parou. A sua posição e atitude no campo não deixavam incertezas, tinha vindo para o combate, para enfrentar aquele imenso exército.
Durante um segundo nada se moveu nas fileiras silentes, depois um quarto dos homens sorriu, um quarto riu alto e metade sentiu um medo inexplicável. Os capitães olharam para o Duque, e o Duque olhou para os capitães; depois os capitães olharam uns para os outros. Nem uma palavra foi proferida.
Para um observador externo a conclusão seria simples e rápida. O Cavaleiro de armadura negra, estático e extático, no seu cavalo estátua, bloco único de rocha da noite, não mais era que um lunático suicida e o destino da batalha estava decidido ainda antes de começar.
No entanto, é avisado acreditar que os instantes em que um homem eleva a matéria vil do mundo à grandeza que o transcende chamam sempre a atenção de observadores estranhos. Deus é esse observador. Superno às tristes criaturas, Ele somente não tem dúvidas que o milagre é uma espada que trespassa, sem dificuldade, a carne pútrida do mundo.





O REINO


Era uma vez um Cavaleiro que jurara lealdade a um Rei e uma Rainha, e um dia o Reino partiu-se e o Rei e a Rainha enviaram exércitos um contra o outro. Nesse dia o Cavaleiro fustigou a montada branca à ponta de um desfiladeiro e apeou-se na beira do precipício. Olhou os céus, olhou o rio de águas prateadas no fundo, muito fundo do abismo. Ficou ali, imóvel, enquanto o cavalo pastava, manhã e tarde, até que o cair do Sol lhe pintou a face de vermelho, e depois de negrume. Tinha feito uma jura, uma Jura de Cavaleiro e não poderia quebrá-la.
Voltou para comandar o exército do Rei e na sua armadura de prata conduziu a Cavalaria Real num movimento audaz, que forçou a retirada do exército da Rainha. Após a ceia recolheu à tenda e deixou ordens para não ser perturbado antes do claror da alba.
Quando tudo estava quieto, a coberto do escuro e com um manto negro, iludiu as sentinelas e caminhou para o centro da floresta densa, entrou numa antiga cabana de bruxa e de lá saiu um Cavaleiro de armadura mais de treva que a mais funérea das noites, que montou um cavalo preto, de longa crina. Qual espectro dos infernos, irrompeu pelo acampamento do exército do Rei e trucidou centenas de homens estremunhados e atónitos, uns que mal o enfrentavam, outros que fugiam em pânico, alguns que ajoelhavam e faziam o sinal da cruz.
Durante um lento e árduo ano, o exército do Rei progredia assim durasse a luz, chefiado pelo Cavaleiro de armadura de prata, mas assim a noite estendia o seu véu sobre o mundo eram duramente sangrados pela fúria do Cavaleiro Negro.
Nos exércitos em conflito militavam, cada um do seu lado, dois capitães que eram primos e que tinham estabelecido o pacto de, enquanto fossem vivos, se encontrar aos domingos numa capela, como amigos e família. Uma manhã, após terem rezado, confessaram as suspeitas que lhes devoravam o coração e escolheram uma noite para se reunir na floresta, cada um com um grupo de dez soldados valentes.
Era Lua cheia e viram nitidamente o Cavaleiro dirigir-se à cabana decrépita, que tinha um cavalo preto, de longa crina, com as rédeas atadas ao alpendre. Aguardaram que o Cavaleiro entrasse, fizeram cerco ao covil infecto e gritaram que se rendesse, uns em nome do Rei, outros em nome da Rainha.
Curta foi a espera, quando de lá saiu o Cavaleiro, equipado com partes de ambas as armaduras, que, ignorando o cavalo, se perfilou em frente da cabana, de escudo erguido e espada preparada, junto a uma lápide nua, sem qualquer inscrição. Os capitães de imediato deram sinal de ataque e um deles gritou «Traidor!», e o outro gritou também «Traidor!».
O combate durou uma interminável hora, o Cavaleiro foi ferido incontáveis vezes, nada parecia poder derrubá-lo e matou muitos, sem dizer palavra. Então, quando já só restavam seis dos soldados e os capitães, e desesperavam de poder vencer, a Rainha surgiu de dentro da noite a galope e atravessou o peito do Cavaleiro com uma flecha. O Cavaleiro deixou cair a espada e o escudo, foi golpeado pelos oito e tombou.
Sempre em silêncio, tentou arrastar-se para a lápide incógnita de pedra cega, mas uma lança pregou-o ao chão e nesse lugar morreu. Os capitães viraram o rosto e não viram a Rainha e nunca mais ninguém a viu e a paz voltou ao Reino.
Dizem os crédulos que quem passa no desfiladeiro, e se aproxima do precipício, ouve a Rainha chorar.


Lord of Erewhon

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

BENEDITA

Imagem do filme Vale Abraão, Manoel de Oliveira, 1993


Para a Márcia, que sempre está aqui.
E para a Byazinha, que sempre tem palavras de conforto.


Se pudesse entender, não escreveria. Estava cansado, um bocado cansado mesmo, embora contente. Contente porque depois de três meses eu poderia me encontrar outra vez com Benedita, que é boa e eu amo. Contente por poder ficar longe de toda aquela correria do banco, daquele dinheiro todo, daqueles clientes todos, de todas aquelas gravatas coloridas e daqueles ternos bem e mal talhados. Estava feliz porque Benedita escrevia poesia e me esperava e era sexta-feira e o trem... o trem estava por vir, e me levar pro oeste, onde ela, Benedita, me esperava, usando seu vestido vermelho com elefantes indianos desenhados e a bíblia aberta sobre o criado-mudo.

Certo é que ainda sobrava tempo pra tomar um café e fumar um cigarro olhando os gêmeos colombianos tocarem suas flautas de bambu enquanto o trem não vinha. Enfim era tempo de sorrir, eu estava sem calor, de banho recém tomado, imaginando Benedita nua com seus olhos brilhando no meio do rosto alegre, o corpo deixando o vestido sair, as mãos prontas pra serem minhas. E pensar que em breve eu seria senhor de tudo aquilo! E pensar que em breve eu não estaria mais na estação vermelha esperando o trem, em breve São Paulo e suas neuroses seriam passado e eu beberia algumas cervejas bem geladas depois do amor.

Eram sete e trinta e sete da noite, quando olhei no relógio da estação e decidi que era hora de abandonar o café e embarcar. Por farra resolvi pular a catraca, justamente na frente do guarda pra ver qual seria sua reação. Embora eu pulasse devagar, ele, o guarda, não esboçou qualquer reação. Fez como se não me tivesse visto. Melhor pra mim que poderia guardar o dinheiro pra mais tarde.

O trem não demorou a encostar. Estranhei-o, porque era extremamente velho. Como é que uma coisa naquela situação poderia suportar atravessar o estado? De qualquer maneira eles, os chefes da estrada de ferro, deveriam saber o que estavam fazendo. Não colocariam pro serviço um veículo que não poderia fazê-lo.

Assim que as portas se abriram eu entrei. Já havia algumas pessoas, poucas, dentro do vagão. Achei que eram, principalmente por suas aparências, foragidas de algum circo. Havia um palhaço sentado no banco em frente ao meu que fazia crochê com lã vermelha, não consegui distinguir o que ele tecia. Um pouco mais adiante, sentados no mesmo banco, conversavam uma mulher barbada e um homem de terno negro e cartola, que eu deduzi ser o mago. No banco atrás do meu, dormia um senhor de uns noventa anos com roupa de trapezista.

Sentei. Sorri. E decidi que era hora de tomar o meu comprimido azul.

Lá fora a noite aumentava cada vez mais. E, aos poucos, uma névoa clara quase como nuvem envolvia o trem. Senti meu corpo amolecer. Estava relaxado da cabeça à ponta dos pés. O mágico acendeu seu cachimbo. Tinha um cheiro bom a fumaça que o cachimbo dele, do mágico, emitia.
O trem ganhou velocidade. Avançava na noite feito um tigre. Não sei se adormeci, ou se ainda estava acordado. Talvez fosse sonho, talvez meus olhos estivessem realmente vendo aquele rio lindo correndo ao lado dos trilhos, cercado de girassóis azuis, e no qual os peixes eram todos de cores exóticas. Ao longe havia montanhas em cujos cumes um fogo intenso crepitava. Foi estranho que nem eu, nem ninguém no trem tivemos a menor reação, quando aquela cruz enorme surgiu entre as montanhas, tingindo tudo ao seu redor de fogo, feito o sol quando se põe. Mais estranho ainda foi ver aquele pano roxo enorme descer sobre a cruz, encobrindo tudo, inclusive as montanhas... Talvez eu estivesse mesmo sonhando.

Sei que quando dei por mim novamente os alto-falantes do trem anunciavam que dentro de dez minutos chegaríamos à estação onde eu deveria descer. Notei que os outros passageiros não estavam mais no trem. Fiquei feliz ao pensar que em vinte minutos, no máximo, eu teria Benedita só pra mim.

Assim que o trem parou, pulei com minha mochila, entretanto estranhei a estação, não parecia ser mais a mesma. O mofo havia tomado conta de todas as paredes, que em muitos lugares estava destruída ou deixava os tijolos à mostra. Havia um cheiro azedo no ar. Pensei em tomar um café, uma cerveja, ou qualquer coisa assim, mas o telhado da estação, onde ficava o bar, havia desabado. Saí para a rua e a cidade inteira não estava em melhor estado. Era absurdo que as coisas tivessem mudado tanto em apenas três meses. O cheiro de carne podre empesteava o ar.

Nas ruas não havia mais asfalto, apenas buracos, buracos enormes. Resolvi caminhar. Viva alma não encontrei em toda a cidade, apenas aranhas, teias de aranhas e o zumbir das moscas, alimento. Pelo menos as ruas ainda existiam, embora as casas estivessem destruídas e as pessoas estivessem longe, invisíveis.

Dobrei uma esquina, depois a outra, segui em frente...

Então, mesmo com medo de olhar, avistei a casa. Como a estação e todo o resto da cidade, não era mais que um emaranhado de ruínas, a casa. Continuei ... A porta estava escancarada. Em algumas partes da parede os tijolos também apareciam, porque o reboco havia caído. Onde os tijolos ainda não apareciam, o mofo cobria tudo. Um mofo negro, áspero.

Entrei devagar, sentindo o assoalho velho ranger sob meus pés. Ouvi vozes baixas que vinham do quarto onde Benedita dormia. Fui até lá. Meu coração disparou. A porta do quarto estava fechada. Pensei em bater, mas desisti e acabei entrando de uma vez.

Havia uma velhinha deitada na cama, segurando na mão de uma menina de uns doze anos. Conversavam. Não pude entender o que diziam. Aproximei-me da cama. A menina não se moveu um milímetro sequer. A velhinha, entretanto, virou-se pra mim e sorriu. Apesar de velho, era um rosto bonito o dela, e os olhos azuis, embora acinzentados pelo tempo, ainda brilhavam. Eu conhecia aqueles olhos. Ela disse meu nome calma, como se me conhecesse de longa data. Percebi pelos olhos, o sorriso, a voz que aquela senhora ali, deitada, de alguma forma, era Benedita, a minha Benedita. Havia uma cadeira encostada na parede. Tudo o que pude fazer foi me sentar e segurar a outra mão dela.

terça-feira, 2 de setembro de 2008

DIÁRIO DE MOEMA, IV

Marduque, Buçaco, 2003


2006, 25 de Março.

Hoje estive a tomar um café na esplanada da aldeia.
Uma réstia de sol ajudou a afastar o terror que me assombra de noite. Continuo sem conseguir ler as palavras que de vermelho se escrevem e apagam perante o meu olhar.
O verde viscoso que escorre pelas paredes enche-me de pânico. São verdes os montes que me rodeiam, plenos de promessas de vida, mas são também verdes esses outros pântanos de águas podres, estagnadas. A cor do broto que desponta é a do lodo de que fujo.
A verdura que luta com o verde!
O vermelho que joga comigo!

~Ü£w^’€>




Sentada na esplanada, resguardada do vento que soprava, Moema segurava na mão um livro esquecido. Os seus olhos, fixos na mesma página, vagueavam por outras paragens, indiferentes ao movimento do mercado.
As mulheres entravam e saiam carregadas de sacos de fruta, verduras e peixe. O muge era muito procurado, frito ou no forno, era um verdadeiro petisco que poucos dispensavam.
Os homens, amontoados em pequenos grupos, enchiam o largo de conversas cantadas. Davam uma vista de olhos pelo jornal desportivo, faziam-se prognósticos para os jogos de futebol…olhavam Moema pelo canto do olho.
Bonita moça!
A mais não se atreviam, pelas mulheres que podiam estar alerta, pelo ar sério e meio ausente com que ela se recostava na cadeira desconfortável.
O empregado, de tez morena, trouxe o café da manhã. Entre o tom educado, com que indica o melhor pão caseiro, dá um relance pela capa do livro, marcado com o indicador.
É de poucas falas. E pelo que lê também não chego lá!
Entre um encolher de ombros e um ligeiro aceno de cabeça, pegou na bandeja, sem novidades para contar.
Lá dentro, o vinho tinto servia-se a copo, entre nódoas marcadas no balcão de mármore gasto pelo tempo.

domingo, 31 de agosto de 2008

DIÁRIO DE MOEMA, III

Salamonde, Vieira do Minho, 2008


2006, 22 de Março.

Encontrei um pequeno lugar guardado entre montes.
Sei-me observada pelos penedos, mas sinto a sua indiferença. Para eles, o tempo tem outra contagem. Não passo de um pestanejar da eternidade.
Parei junto ao rio. Fiquei a ver a viagem da corrente que passa sem saber para onde vai. Tive vontade de lhe gritar o seu destino. Ouvi os penedos e fiquei em silêncio.
Tenho a resposta, mas as águas não fizeram a pergunta.

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O rio corria na verdura do vale, ao lado do casario antigo. Era pequena a aldeia, feita de gente simples e de claras verdades – o dia segue a noite e não há mal que sempre dure. As reflexões profundas eram deixadas para o Poeta, o louco, que falava de coisas que eles não entendiam, mas que davam um certo colorido às conversas de rua. Já estavam habituados a frases sem nexo e longos ditos, a que ele chamava poesia. Sorriam e acenavam a cabeça, pois se nem sequer rimava…
Novidade, foi a chegada de Moema, uma mulher sozinha, a viver numa casa andante.
Não é coisa normal por estas paragens.
Entre o aviar do bacalhau e o contar das notas - que nem parecem nossas - comentava-se à boca cheia.
Anda fugida pela certa. Não há-de ter feito coisa boa.
No café, espreitavam a porta, não fosse ela aparecer. Tinham dado pela sua chegada ao amanhecer, à hora da bica, estava a sala cheia. Tempo era coisa que por ali não faltava. O destino já tinha marcado a hora para o jardim das tabuletas, e o serviço não fugia.
À beira-rio, Moema estava sentada, a abraçar as pernas, de olhar perdido na paisagem. Tinha ido ali parar sem saber bem como. Deixava-se levar pelo rumo do vento ou pelo cheiro da água. Estava cansada de conduzir. Queria descansar os olhos do alcatrão sempre igual, do barulho dos carros, do torpor do volante.
Os chocalhos do rebanho que se aproximava, trouxeram um sorriso ao seu olhar.
Ia ficar ali, por uns dias.

Nascido Tarde




Quando nasci tinha trinta e nove anos de idade. Poesia é o nome da minha mãe que me teve numa idade avançada. Como sabem, em idades avançadas não se devia ter filhos porque se corre o risco de malformações nos fetos.
A minha mãe foi avisada pelos médicos, mesmo assim correu o risco e eu nasci.
Quando passeio no jardim escuto as pombas que param para beber no lago do livro de histórias que leem, enquanto eu me escondo dos meus vizinhos que atiram pedras de papel branco, a mando das mães.
Escondo-me porque nasci tarde, com trinta e nove anos, e sinto vergonha dos outros que nasceram antes de mim.
Os pedúnculos das flores que tenho pelo corpo nasceram ocos. Um dia, cheia de curiosidade, quis saber se os das árvores também seriam iguais. Foi quando me acusaram de ter cortado as veias às árvores do parque e elas morreram. Tentei explicar-lhes que só as queria ver como eram por dentro, e depois ia cozê-las com linhas de costura da minha mãe. Mas ninguém me entendeu e consideraram o acto como um defeito de ter nascido tarde. Agora escondo-me por baixo da capa do livro, cheia de ervas, e fico ali até à noite quando sigo as estrelas dos lençóis da minha cama.
Também não poderei frequentar as escolas porque tenho idade avançada.A minha mãe ralha-me por eu ter nascido tarde mas eu não tenho culpa e ela sabe.Um dia tentei agradar-lhe e arranquei uma flor do meu corpo e dei-a para ela ficar feliz, mas ela pisou-a com o pé.
Os médicos dizem que não tenho cura, serei assim toda a vida: o ter nascido tarde.
Um Médico escreveu à minha mãe que eu podia fazer um tratamento intensivo para aprender a fazer poesia, que assim ia aliviar as minhas dores. Disse à minha mãe para me levar a uma clínica de livros e de leituras para fazer fisioterapia aos músculos das minhas flores; ao mesmo tempo que lia, levava choques eléctricos nos olhos e raios infra – vermelhos, por baixo da pele, no sangue.
Nunca mais fui ao tratamento! Mentia à minha mãe e fugia para o mar. Atirava areias à água com as gaivotas. Um dia a minha mãe desconfiou que não fazia os tratamentos e bateu-me, aqui nas costas, com uma pena, onde tenho a marca nas costelas.
Gostava de ter outra mãe que não fosse tão má.
Esta, quando mamo nos bicos das suas letras. Diz que já não tenho idade para mamar.Ela tem razão mas eu não tenho culpa de ter nascido tarde. Com trinta e nove anos tenho mais fome de cores e imagens. É por isso que lhe trinco os bicos, para ir buscar o que ela tem dentro dela. Sei que lhe dói quando faço isso porque ela grita e não me dá mais.
Gostaria de ter nascido como os outros poetas, com sete ou com nove anos de idade, não mais nem menos.
A minha mãe não teve culpa de eu ter nascido tarde. Foi a bruxa que vive no monte, na casa dos partos que adormeceu durante trinta e nove anos. A minha mãe não queria acordá-la mas teve que o fazer porque já não podia estar grávida, mais tempo, porque o mar se soltou rebentado pelas pernas abaixo.
Foi por isso que eu só nasci aos trinta e nove anos.


Ana Maria Costa
30 de Março de 2007

Saudades da URSS

Confesse, às vezes você não tem saudades dos tempos da antiga URSS? Ou lembranças nostálgicas dos países do leste europeu que integravam o antigo bloco soviético? Reconheça, seus ouvidos ressentem de há muito não ouvirem o som da expressão cortina de ferro.
O meu tio Walmir, por exemplo, vez por outra beira a depressão por falta de leitura ou audição de palavras, tais como: détente, guerra fria, glasnost. Sim, senhor! A tia Edite, sua mulher, não raro comenta à boca pequena que ele fala enquanto dorme. Diz uns nomes esquisitos: Brezhnev, Nixon...

A erosão econômica do velho regime soviético, ademais de trazer um desequilíbrio de forças no planeta, também deixou o mundo meio sem graça. Você aí, acaso assistiu algum thriller, leu qualquer narrativa, ou viu alguma peça de teatro mais empolgante e com mais ingredientes de suspense que o episódio da crise dos mísseis de Cuba, em 1962? Duvido! Em contraponto, aposto que jamais assistiu alguma comédia-pastelão tão engraçada e cheia de trapalhadas como aquele outro fato histórico conhecido como a invasão da baía dos porcos, em 1961.

Outro dia, um amigo contou-me que, ao mencionar a expressão marxismo–socialismo científico, referindo-se à doutrina criada por Marx e Engels, indagaram-lhe se aquilo era uma nova tendência do rock. Isto é, mais um segmento como tantos outros existentes deste eterno estilo filosófico-musical: rock progressivo, hardcore, punk, gothic metal, dentre outros.
E pensar que, no Brasil, houve um tempo em que revelar-se comunista era sinônimo de prestígio intelectual e de sucesso entre as garotas. "O quê? Ele é comunista? Menina, que chique, hein?" - admirava-se uma amiga, em conversa acerca do novo namorado da outra.
Ainda me lembro dos primórdios da faculdade, no restaurante da Universidade Federal da Bahia, no Café, após o almoço, de debates acalorados sobre quem situava-se mais à esquerda na ideologia comunista. "Eu sou da corrente trotskista", vangloriava-se um; "eu, leninista", gabava-se outro; "fulano, é stalinista", afirmava alguém; "pois ciclano, é da linha albanesa". Ohhhh!!!, clamavam todos, em uníssono. Pois é, ser da linha albanesa era assim como uma espécie de ás de um jogo de cartas. Na categoria intolerância ao capitalismo e à burguesia, ganhava de todas as outras vertentes.

Meu nome é Bond. James Bond! Acredito que quando o escritor Ian Fleming criou as aventuras do agente 007, jamais passou pela sua cabeça o fim do império soviético. Hoje, não há mais contexto para se produzir um filme, como por exemplo, Moscou Contra 007 (From Russia With Love). Por outro lado, suponho que a produção de novas aventuras utilizando-se do cenário da antiga URSS estariam destinadas ao fracasso. Imagino os diálogos da turma com menos de trinta, após o término do filme: "Pô, véio! Filme ruim. KGB, Kremlin... os caras citam umas bandas que não passa na MTV".
E ainda que nos últimos anos não houvesse mais motivos para espionagem, contudo, os caras de Los Angeles ainda insistem com a personagem. O último filme desta série, Cassino Royale, tem locações em Madagascar, além de exibir um 007 brutamontes e mais burro que uma toupeira psiônica1. Madagascar, afinal que diabos tem para se espionar por lá? Nada! Nos antigos filmes de piratas estrelados por Errol Flynn e Burt Lancaster, esta ilha servia de esconderijo para saques.

Por falar em espionagem, com a queda do muro de Berlim julguei encerrada a carreira do escritor John Le Carré, meu autor favorito de romances deste gênero. Em 1989, ao ser arrancado o primeiro tijolo do Mauer - como os alemães chamavam o muro, Le Carré perdeu o seu tema: o universo dos agentes secretos. E agora? Escreveria sobre o quê?
Mas talento é talento, assim, há poucos anos, John Le Carré escreveu um ótimo livro, O Jardineiro Fiel (The Constant Gardener), por sinal, gerador de uma adaptação para um filme de mesmo nome. No entanto, esta produção nada tem a ver com guerra fria ou espionagem, é focada em experiências não-confessáveis no Quênia, patrocinada por uma espécie de divisão cosa nostra da poderosa indústria farmacêutica norte-americana.

O fim da URSS e do chamado bloco soviético, não serviu apenas para riscar os romances de espionagem da lista de best-sellers; nem de obrigar os cartógrafos da geopolítica a fazerem horas extras; além de encerrar a linha de produção daquele pequeno automóvel fabricado na RDA, o Trabant, ou Trabbi, para os íntimos (veja foto acima), um carrinho feio de doer, todavia, mais simpático que uma Mercedes F700. A sua queda libertou o dragão da cobiça apocalítica, ou seja, substituiu o famoso chavão dos Três Mosqueteiros "um por todos, todos por um", por "salve-se quem puder". Neste vórtice neoliberal, ainda desmoralizou a ONU; potencializou os poderes do destemido xerife Wyat Earp com novas técnicas de chutar cachorro morto; e, como uma prostituta sagaz, seduziu o luxuoso socialismo do oeste europeu, tentando-o com a sensação maravilhosa - num futuro próximo, de se respirar ar privatizado; também, promoveu uma lobotomia coletiva na esquerda, transformando os seus adeptos em toupeiras psiônicas dotadas de dois únicos dons: o da retórica vazia e o de nenhuma ação eficaz.


Guilherme Xavier


__________
(1) Toupeira psiônica - significado apenas conhecido por jogadores de RPG, linha Dungeons & Dragons.

sábado, 30 de agosto de 2008

Livro de Contos" CAMPO DE TRIGO COM CORVOS', Resenha Crítica de Escritor Português



Resenha Crítica

"CAMPO DE TRIGO COM CORVOS", Contos:
ALGUNS SÍMBOLOS DA PERPLEXIDADE


"O vôo rasante dos corvos
debicando/Não as espigas
maduras/Mas os olhos ..."


Jorge Sousa Braga, in
"O Lírio que há no Delírio"



O título, sumamente concreto e substantivo, impele ostensivamente para zonas sensoriais e pictóricas. No entanto, "Campo de Trigo com Corvos" não é mera reprodução do quadro de Van Gogh onde o trigo, amarelo, eivado das chamas loucas do pintor, escorraça de seu seio o bando negro dos corvos. Aqui, no livro, muito para além dos afugentados, corvos há que permanecem pairantes ou, mais ainda, baixando ao rés do solo jogam-se contra as pessoas provocando a clivagem (ou a carnagem). E esta fórmula aproxima os textos de uma realidade mais humana, ainda que desumana em função de traumatismos de que se tece a evolução vital e biológica. Mas, na arte de contar estórias, e é um pouco do que se trata aqui, o texto recorre globalmente a técnicas específicas da pintura. Designadamente, dos seguintes modos: Os fatos sucedem-se em tom linear, contíguos ou adjacentes, em direção a um desfecho, previsível ou não, podendo-nos apropriar neste caso da imagem do rio que decorre e atravessa a paisagem rumo à foz. A disposição da narrativa procede à colocação ou disposição de cenas paralelas, quadros que se encostam na vertical, ou na horizontal, às vezes na diagonal. Lembrando um pouco os vitrais medievais que ainda hoje se encontram nas catedrais. Postado na posição do personagem, o narrador reavém e sintetiza em frases-cristais largas faixas de vida transcorrida. São parágrafos breves, como riscos impressionistas e apressados, que intentam ou ensaiam remover um vulto de episódios para um mínimo centro, na vã tentativa de os aprisionar. De tudo dizer, sem ceder ao uso da gordura das palavras, muitas palavras, o "contar palha" da gíria. Por outro lado, mais do que abordagens textuais que imitam ou pretendem imitar técnicas fílmicas ou de vídeo, nota-se um apropriar de materiais atinentes ao teatro. Desde logo, na encenação criteriosa e fiel de palcos que suportam os personagens, a reconstrução de sítios, locais, ambientes ou atmosferas. Em que tem papel fenomenal o fluxo da enumeração. Neste exemplo, utilizaremos o conto nodal, que dá título ao livro, "Campo de Trigo com Corvos" para promover a tipificação: "Contratou peões de fora, tipos mal encarados de outras plagas, outras praças, gaúchos, catarinas, ˝barrigas-verdes˝”. Observemos como se delineiam outras estilísticas da arte de talma: O imprevisto é um dos recursos que pode fazer balançar o espectador na cadeira. Ele é aqui arremessado, quer surgindo de-vereda, o designado "causo", bem assim o pandareco, quer atribuindo um rumo à história totalmente inverso, ou ao menos diverso da lógica que as teias já desarmadas anunciavam. O equívoco é, como se sabe, o banquete de muitas peças de teatro. De algumas em exclusivo. Ele provoca o espectador, obriga-o à concentração e à reflexão (e ao riso ou sorriso), mantém vivo o desenrolar do evento e o esforço dos atores. Aqui também ele atua, burilando surpresa nos personagens, dando lastros de ironia às vidas encenadas, apanhando na contra-mão o leitor. Quiçá, o próprio autor terá aberto olhos quando da elaboração dos textos. Alguns títulos, algumas frases, preparam para ocorrências posteriores do conto. É uma espécie de levantar do véu, destapar de roupas femininas, jogo de sedução e permeio. Que muitas vezes pode desaguar num dos recursos anteriores, anulando ou aparelhando os efeitos: o imprevisto. Mas, o mais robusto de todos os recursos é o golpe-de-teatro. Repare-se que a própria palavra de que vimos falando integra a nova palavra, esta, aliada a golpe. Quando tudo se encaminhava no rumo certo, quando a rotina ou a monotonia se estavam solidificando, eis que de supetão tudo se desmorona, tudo se transtorna, ficamos submersos nas estrias que estouraram sobre nossas cabeças, fica tudo de pernas ao ar, a mesa, a casa, o livro, o corpo, a mente. Apesar de usado e abusado, o conto produz-se hoje em doses avulsas. A despeito de sua condenação, final da história e seus componentes-trave: narração, tempo e espaço, decretados pelo noveau-roman. Não basta hoje dispor magnanimamente da arte de contar. Não basta, como a Silas Corrêa Leite, ser um domador de estórias. É condição, ainda e nomeadamente, inventar histórias, seu entrechocar, prover à invenção de uma "história nova". Isso aconteceu muitas vezes neste livro. Mas vejamos algumas das várias fórmulas de história com que nos deparamos: Existe a história que é canto, beco e síntese em "Boêmio". Existe a história que se traduz inteira e integral em "O Enterro". Existe a que se senta na paragem, recusa avançar de momento e aguarda o porvir em "Quando a Tragédia Bate em sua Porta". Existe a história que se metamorfoseia em lenda, veste-se mágica, irreal, em "O Inventor". Existe a história contida, espelho de deserto dos tártaros, com tempestade iminente mas que não desaba em "Campo de Trigo com Corvos". Mas todo livro é ou pretende ser uma obra literária. E é só isso que importa. Obtê-lo, consegui-lo, é todo o mérito e o valor acrescentado possível. Também aqui se obteve largamente esse desiderato. Observemos alguns dos meios. Ou fins. Deitando mão de uma linguagem que, afora o popular, o linguajar, a gíria, agarra os elementos específicos de dialetos, sintaxe indígena, eivando a escrita de vocábulos originados do tupi. Exercitando uma experiência genialmente rasgada noutros países de língua de expressão portuguesa por Mia Couto e Luandino. Dando o braço à metáfora, à imagem em novos moldes, revitalizando os textos. E desse modo obtendo o viço, a chispa, o engaste de muitas frases. Alongando a metáfora, expandindo-a, cingindo-a a personagens inteiros ou à globalidade do conto. Metáfora que se transforma em alegoria. Exemplo seguro de tudo que fica dito são os Corvos de "Campo de Trigo com Corvos" e o "Muro," ou em "Anistia". Lançando as palavras umas contra as outras, quando contíguas, provocando choque, conflito, traumatismo, mas também colo, enlace, anel. E neste particular merece realce a intensa e não pretensa construção de novos vocábulos. Fruto de tentativas ou abordagens díspares. Usando a colagem, a composição, errônea em aparência mas sempre imprevista, como no caso de "esposa-vítima", "vento-coisa", "nuvem-lesma", "instante-trevas" ou "lebre-dor". Recorrendo à síncope, como se verifica em "marra" e "garra". Provocando a junção, de que poderemos enunciar "enfebre", "nágua" e "cinzazul". Adstringindo a preposição, prefixada, em "de-vereda", "de-assim" e "de-primeiro". Neste campo, de trigo literário, em que muitas letras são corvos, entendo que o mais subtil e profundo recurso resulta do germinar de vocábulos novos, que estimulam os acordes da sintaxe, da fonologia e da morfologia. Realizando cambiâncias, muito pouco vistas e nada pouco inesperadas. Ousando obter o substantivo a partir do verbo, do adjetivo, ou mesmo do próprio substantivo. Obtendo ligas que só ao alquimista são permitidas. Vejamos. Do inúmero número de vocábulos em que se verifica um processo de alteração da categoria sintática, ou manutenção sintática por força de novo vocábulo, quer por ação da base quer do derivado, topamos estas nominalizações deverbais: "acontecência", "havência", "pertencimento", "andação" ou "conhecença". Como apodo de nominalização denominal, poder-se-ia citar "mentirança" e "medaço". Para não jazer nas plagas do vazio, eis também uma adjectivalização denominal: "encrenqueira". Recuando: perante o impasse da estória, notória se torna a premência da exploração de técnicas e moldes e dados inovadores. Porque não basta à ficção reproduzir a realidade ou ser espelho do real. Isso já se fez ou é horta de outras artes. Da perícia autoral depende a superação do real. Mais: a sua subversão. E é o que acontece substantivamente em "Campo de Trigo". Podemos apontar o irreal em "O Inventor"; o surreal em "Anistia"; a subversão do real (pelas palavras) em "Justiça". Estas e outras estórias é que provocam o avanço. Deixando as restantes coladas, como pinto recém-nascido a casca-de-ovo, a correntes literárias recentes. E já que entramos na corrente, deveremos referir a mais ousada ousadia presente neste livro. Algo que apelidaríamos de transrealismo. Obter do texto a superação do real, a sua mistificação, submeter e soterrar normas, o erigir de um outro real. Isso acontece aqui e ali, mas de forma exemplar no conto mais de todos escatológico: "O Osso" (também em "Congonha"). De que retiramos três análises resumíticas: a mulher que se dá ao pai e depois ao filho, sendo carne para o primeiro e osso para o segundo; o homem que, elo em Kafka, devém canino, o filho-cão; a habituação a baixas desumanidades que impede um ser humano de reverter após uma vivência animalesca. Falávamos de artes plásticas. De artes cênicas. De linguística. E, sobretudo, de arte literária. E corrente. Literária, claro, mas não só. Tudo muito apreciado. Mas então, e a vida? Porque é o sangue dela que muitos pretendem, ou preferem ver escorrer das letras dos livros. Diria: Existe, como metáfora da terra, e dela, a vida, um extenso campo de trigo. E pequenos pontos negros no meio do trigo, os corvos. Este é o palco, é aqui que tudo decorre. Com o sol por testemunha ou sob o céu noturno. Os pequenos pontos negros por vezes exaltam-se. Rebelam-se. Ficam loucos. Pode dar na destruição de todo o enorme campo. De trigo. E é assim que a vida se eleva (mesmo quando derrubada). Porque ela é em simultâneo
Luz e escuro
Branco e negro
Gozo e dor
Água e fogo
Campo de Trigo e Corvos.


Antero Barbosa
– Literato de Porto, Portugal (Poema, Ficção, Ensaio). Licenciado em Estudos Portugueses, Diretor de Escola de Ensino Superior. Crítico Literário, autor dos livros "Contextos" (Contos) e "Ramos e de Repente (Poemas). Prêmio de Poesia Brétema, 1990, e Prêmio Trindade Coelho, 2005.


BOX:
Livro "Campo de Trigo Com Corvos", Contos, a maioria premiados, 144 Páginas - Editora Design, Santa Catarina, Brasil


À venda no site: www.livrariacultura.com.br
Autor: Silas Correa Leite, Itararé, São Paulo, Brasil
Site: www.itarare.com.br/silas.htm

Contatos: e-mail: poesilas@terra.com.br
Blogue: www.portas-lapsos.zip.net

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

A SOLIDÃO COMO UM VAZIO NOS BOLSOS


Não sei bem como começar com isso. Não sei se é uma carta, ou um conto. Não sei se uso o ele, ou o você. Mas isto também não importa, pois o próprio Cortázar já tratou dessas impossibilidades. Vou seguir a vontade então. Nós devíamos ter uns doze, ou treze anos por essa época. Estávamos descobrindo o Pink Floyd e as mulheres eram um sonho distante. Seres de um outro planeta, quem sabe até de uma outra galáxia. Eu não tinha nada, além de uma BMX pantera branca, com os pneus vermelhos. Mesmo assim, se uma garota me dissesse. “Você me dá uma bicicleta, que eu te dou...” Eu teria entregado a minha BMX sem pensar duas vezes. A masturbação era uma realidade triste e o mundo era um inferno desconhecido. A gente ainda não sabia das maldades que as pessoas podiam cometer. Maldade pra gente era não dividir um chocolate, ou um refrigerante.
Ele era meu primo. Ele é meu primo. Você é meu primo. Mas, antes de ser primo, ele era o meu melhor amigo. Andando a pé, eu demorava uns dez minutos pra chegar à casa dele. Mesmo assim, eu passava todas as férias lá. Porque estar perto, era uma maneira de ser confidente e de dividir a mesma dor. Além disso, o pai dele gostava de uma cervejinha, e, quando bebia, trazia um bocado de doces pra gente. Acho que isto herdei dele, do meu padrinho, porque o pai dele era meu padrinho. Hoje, sempre que bebo, levo doces pra casa. Uma malandragem pra evitar brigas, ou um meio de ser amado pelas crianças, não sei ao certo.
Nós dois éramos esta espécie de território abandonado que são os filhos do meio. Nem tão amados, quanto os mais velhos, nem tão mimados, quanto os mais novos. Talvez isto nos desse espaço pra sermos rebeldes, talvez isto nos desse liberdade pra sentir o rock como uma verdade íntima e profunda. Era tanto Iron Maiden, e tanto Metallica que eu tinha certeza que não chegaria com os ouvidos intactos aos trinta anos. Vou fazer trinta e um. Vamos fazer trinta e um. Ainda ouço bem, embora as canções de hoje sejam mais amenas.
Esse era meu primo Eduardo, o cara que viveu coisas ao meu lado, que, por mais que eu tente não consigo esquecer. Agora também não quero mais esquecer. Embora tenhamos mais rugas e sejamos outros, tem coisas que nunca sairão da minha cabeça e nem do meu coração. Uma dessas coisas, é aquela vez em que estávamos limpando o fusca marrom do seu pai e, enquanto eu passava pretinho nos pneus e você colocava um Black Sabbath pra tocar, alguém, você, gritou alto por cima do Paranoid:
- Eu sei dirigir!
- O que? Perguntei, duvidando da história toda.
- Eu sei dirigir.
- Sabe porra nenhuma. Eu vivo aqui na sua casa o tempo todo e nunca vi você nem ligar o carro.
- Duvida que eu sei dirigir?
- Duvido.
- Abre o portão então que você vai ver.
Corri até o portão e o abri excitado. Aventura sempre foi aventura, além do mais, eu era jovem. Lembro do barulho do motor quando você deu a partida e da ré torta que você deu. Toda ré é ruim. É a minha opinião. Contudo você conseguiu sair pelo portão escancarado. E eu fechei o portão, e entrei no carro, e colocamos o som no talo, porque era mesmo muito rock n´roll para cabeças tão jovens. Então você saiu cantando os pneus e eu fiz do painel uma bateria. E tudo o que a gente conseguia sentir era que a gente era mesmo FODA! Só que aí aconteceu uma merda, pra variar, né? Na primeira curva você perdeu o carro e entrou de cara no poste. A farra tinha terminado. Era a hora da ressaca. O carro tinha deixado de funcionar. Você estava desesperado. Nervoso. Não conseguia mais ligar o carro. Tive que correr até a sua casa e chamar seu irmão mais velho. Tudo o que você conseguia dizer era o seguinte:
- Daniel, fodeu Daniel!
E tudo o que eu conseguia dizer era o seguinte:
- Calma, bicho, não vai dar nada.
Se deu alguma coisa, ou não, eu não sei. Não fiquei lá pra saber, tratei de pegar correndo o caminho da minha casa. Podia sobrar pra mim e eu sempre fui covarde.
Agora o tempo passou. Tudo isso ficou longe e não temos mais medo. Nos distanciamos. Fizemos novos amigos e novos falsos amigos. Nos casamos, eu tive filhos e você sossegou. Eu não, às vezes bebo demais. Só de saudades de tudo que fui perdendo pelo caminho. Sei que a vida sorri cheia de sucessos nos bolsos pra você, apesar do desemprego, que é mesmo uma bosta passageira.
Seu pai morreu há dois anos e eu não pude dizer nada, porque nunca fui muito bom pra falar as coisas. Um dia antes de ele morrer, nós dois fomos juntos ao hospital e você estava meio doido, falando um bocado de coisas sem sentido. Lembro que meu padrinho estava lá inconsciente, com todos aqueles aparelhos enfiados na boca e no nariz dele. E nós dois ficamos lá. Um de cada lado da cama. Segurando nas mãos dele e então, no dia seguinte, ele faleceu. Pelo menos eu me despedi, pensei, como se tivesse também me despedido da minha infância e dos meus sonhos.
Espero que seja feliz e eu, do meu lado, me alegro ao ver brotar no meu filho, todas as trapalhadas e a inocência que eu mesmo tive... um dia. Estamos vivos, deveríamos assar uma carne qualquer dia desses.


Daniel Lopes

DIÁRIO DE MOEMA,II

Pedro Tildes, Serra da Estrela, 2007


2006, 17 de Março.


Hoje encontrei o lugar ideal, um campo verde pincelado de vermelho. Tinha a certeza que o reconheceria assim que o visse, sempre esteve lá à minha espera.
Tirei uma foto. Um destes dias tenho que organizar o álbum da minha viagem.
Andei, até onde a estrada não me via, e finalmente mudei de nome. Recuso ser nomeada como aquela que já não existe. Reinventei-me, num abraço ao universo, e conquistei a minha identidade.
Moema é o meu nome.
Moema… Moema… Moema…
Gritei, aos quatro ventos para que não se esqueçam de mim, ao Sol para que me dê força, à terra para que me guie, à água para que me dê vida.
Moema é o meu nome, Moema.
Sei que ganhei uma nova alma e que as forças da natureza me apadrinharam.
No caminho de volta, aconteceu uma coisa estranha. Encontrei uma concha na berma da estrada. Estava ali tão deslocada e perdida como uma oliveira à beira-mar. Tive a certeza de que era um sinal. Desatei a tira de couro que trazia ao pescoço e pendurei-a. Este é o colar de Moema, nunca mais o vou tirar.

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Sentada no banco do condutor, Moema escrevinhava no diário, um pequeno caderno, de capa preta, protegido por um elástico. Era a segunda página que enchia com a sua letra redonda, tudo o resto, em branco, ainda. Não o folheava, queria-as imaculadas, como um futuro que ninguém conhece.
Por duas vezes levou a mão à concha, que lhe adivinhava o decote. Parecia ter encontrado um verdadeiro amuleto, oculto na forma de adereço. Foi o acaso que lho trouxe às mãos, os verdadeiros achados procuram-nos, quando deles precisamos. É preciso ter o coração aberto, os olhos são, quase sempre, cegos.
O sorriso, límpido, denunciava uma esfoliação da alma.
Demorou-se a admirar cada letra do seu novo nome, a inebriar-se com a pronúncia de um som, o desafio de uma musicalidade antiga.
Abriu o porta-luvas e retirou um livro que, de tanto uso, se abriu na página desejada. Recostou-se, compondo os cabelos em desalinho, e leu em voz alta:
«É como uma barca que te vai conduzir pela vida porque você sabe quem é.»
Sentia um verdadeiro fascínio pelos rituais indígenas, as culturas ancestrais, a certeza ingénua do lugar de cada indivíduo, a ligação à comunidade. Seriam, talvez, mais felizes, mais próximos da natureza e seguros dos valores por que se conduziam.
Perdida nas tradições dos Guarani, retomou o diário. Acrescentou uma última linha, siglas ilegíveis de uma só palavra. Justificou o último cadeado, com uma voz rouca e grave:
Tenho que ter um nome que só eu conheça. O que me revela e desnuda não pode ser pronunciado, ou ganharão o poder de me dominar.
Agora podia prosseguir viagem. Sem mapa nem bússola, fez-se à estrada à procura de lugar nenhum.

(O Construtor de Gaiolas)


Costumo olhar a rua debruçado no parapeito. Olho para o velho sentado imóvel na cadeira. Ele sempre está olhando pelas grades do portão. Eu nunca sei se ele olha as coisas que passam ou as coisas que já passaram. Os velhos têm essa vantagem sobre nós, quando a vida está entediante, eles vivem a emoção de causos de trinta anos atrás. Observo também os pássaros, eles nem sempre batem as asas e voam. Algumas vezes tropeçam atrapalhados com suas duas pernas. Ciscando no chão feito gente besta. Meu vô contava que as aves eram seres endemoninhados, por isso, tinham sido castigados com pernas que não serviam pra nada. Eu acreditei por muito tempo nisso. Mas, hoje eu me pergunto: “Por que Deus lhes daria asas então?” Meu avô responderia que não foi Deus.

_ Você é irritante!
_ Você tá louca?! Eu só pedi um café e você me vem com quatro pedras na mão.
_ O problema é esse, você pede, pede, pede, o tempo todo só pedindo.
_ Tudo bem, não te peço mais nada.
_ Vai ser mesmo muito engraçado. O que vai fazer? Vai mandar em vez de pedir?
_ Quem sabe não é uma boa solução.
_ Você fica ainda mais insuportável irônico.
_ Desculpa meu amor, na verdade eu nem sei porque a gente tá brigando.
_ Deve ser porque eu gosto de reclamar de barriga cheia, não é isso que você vive repetindo?
_ Não digo mais, pronto! Não falo mais nada, tá bom assim?
_ Olha bem pra minha cara e me diz: qual é a semelhança entre mim e seus pássaros?
_ Até onde eu saiba nenhuma, existe alguma?
_ Pois eu te digo qual é a semelhança: é a gaiola.
_ Ataque de feminismo agora? Você quer dizer, então, que eu sou um carrasco e estou te prendendo??? Desculpa, não estou vendo gaiola nenhuma.
_ Não, quero dizer apenas que me sinto presa. Depois de todos esses anos...Você sempre construindo todas essas gaiolas, sempre num silêncio sepulcral, de repente só enxergo grades ao redor de mim.
_ E o que pretende fazer?
_ Não sei ainda.
_ Você está querendo fugir agora? Até mesmo os pássaros se acostumam com as grades, ninguém é livre, eu não sou livre, seria ridículo ser.
_ Nem por isso eles deixam de se debater dentro das gaiolas.
_ Pára de me apavorar, o que vai fazer? Você sempre soube e até achava graça porque eu era o construtor de gaiolas.
_ Com o tempo as piadas perdem a graça. Talvez eu faça como seus pássaros, passe a vida me debatendo, até perder todas as asas, até esquecer da minha condição de pássaro e passe os dias olhando pelos vãos das grades como uma condenada.
_ Eu não posso fazer nada, se a condição dos pássaros é voar, a minha, é cortar-lhes as asas. Afinal, você sempre soube, como já disse, eu sou um simples construtor de gaiolas, essa é a minha triste condição. É o que Deus espera de mim, que eu atrofie as asas que Ele, sem pensar, criou.

À tarde os pombos devoram as migalhas da cidade. Ao acordar ainda sinto o cheiro de suas fezes. Durante o dia ela sempre repetia um trecho daquela canção do Elvis: “como podemos ser felizes com tantas suspeitas em nossas mentes?”. Antes dela partir, um pássaro negro, de canto triste, às vezes, pousava no peitoril da janela, outras vezes, ciscava solitário no chão.
Marta era minha mulher. Até o dia em que ela fugiu com o Circo ( as mulheres são mesmo excêntricas). Alguns dizem que se apaixonou pelo equilibrista. Talvez seja verdade, ela adorava os pássaros soltos e sem asas (aquelas aves domesticadas que fogem das gaiolas e por ironia, sempre acabam devorados pelos gatos).
Na manhã de sua partida, encontrei um pombo morto na escada. Era um aviso. Certas noites, sonho com pombos ensangüentados por toda a casa.
Sinto saudades, ela falava tanto de prisão, no entanto, nunca percebeu que sua libertada era paga com o meu cárcere. Faz muito tempo que não a vejo. Um palhaço, passa por aqui e me dá notícias vagas e duvidosas. Ele disse que hoje Marta se apresenta como a Mulher Barbada. Não devo ter reparado quando se deu essa mudança, logo ela que vivia olhando no espelho. Penso que tenha sido alguma anomalia provocada pelo convívio com as aves (o pássaro negro mesmo depois de sua partida, cisca no peitoril da janela feito um sambista louco e triste. Tem dias que acho que cortará as próprias asas, para que possa cair sossegado em cima da morte).
Muitas noites eu penso em suicídio, outras fico acordado observando o sono leve dos pássaros, desde que ela se foi eu gosto muito mais dos pássaros. Antes não, mas agora enxergo a semelhança que ela tanto falava. As asas me lembram a ansiedade que ela sentia em voar. Seu canto, suas penas espalhadas nos cantos da gaiola. E o pássaro negro sempre pousado no peitoril implorando piedade. Seu olho cego mergulhado em tristeza. Ela se foi, mas algo ficou (agora entendo os pêlos pelo banheiro), talvez o barbeador que compartilhávamos. A lâmina está enferrujando. Eu nunca consegui tirá-lo da beira da pia. Todos os dias eu olho para ele, eu tenho a esperança que, num momento de lucidez, ela deixe o Circo e volte pra casa. Entretanto, o barbeador nunca se move, a não ser hoje de manhã, ao entrar no banheiro, eu não o vira, olhei para o chão, lá estava ele, caído e intacto. Na torneira uma barata triunfante levantava suas antenas compridas e asquerosas.
Foi difícil, mas hoje levantei, lavei a cara, fiz a barba e tomei uma decisão: irei até o Circo. Essa decisão é ridícula, eu sei, detesto essa alegria tonta e debochada sob a lona. Porém, os tolos precisam pagar por seus erros, então, irei e acabou, nada fará com que mude de idéia. A tarde toda eu escutei Blackbird dos Beatles. Eu não esperava a chuva, todavia ela veio. Eu sempre achei que havia uma relação entre os cantos dos pássaros e a parada da chuva, deve existir alguma semelhança
entre as aves e o arco-íris. Assim como há uma certa semelhança entre Deus e o Diabo. Depois do canto de hoje, nunca mais enxergarei as tempestades, sinto isso. A chuva não fez com que desistisse dos meus planos.
Fui até o Circo e só a lembrança do cheiro da lona me causa náuseas. Ela estava lá, não linda, mas necessária, ela ignorou minha presença, me tratou como um simples público pagante. Eu a perdôo, o ódio é próprio dos fracos. Eu só não podia me deixar intimidar, afinal, os tolos precisam pagar por seus erros. Olhei para o equilibrista e ele não pareceu menos louco do que eu, talvez a altura lhe proporcione uma importância que não tenha. Me aproximei, o vermelho do nariz do palhaço tomou conta de mim: “ah, ah, ah, o equilibrista se equilibra nas barbas da mulher, ah, ah, ah...”
A única coisa que me recordo é da barba comprida e macia e da faca brotando de sua barriga, não, não fui eu, eu juro, ela brotava como uma planta que desvirgina a terra (ou como um pássaro que atravessa os vãos da gaiola desvairado).
Agora, das grades da janela onde me encontro, apenas vejo grandes cipestres azuis...Trago no bolso uma foto de meu avô (ele também construía gaiolas). Ele tinha olhos pequenos como os dos passarinhos e como eles se assustava facilmente. Bastavam alguns passos mais fortes e ele se armava com a espingarda, embora, nunca houvesse balas dentro dela. Meu vô era um sonhador.
Quanto a mim, ainda construo gaiolas, mas não crio mais pássaros. Tudo que voa, pode de repente criar asas.


Márcia Barbieri

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

DIÁRIO DE MOEMA, I

Maria Rego, Figueira de Castelo Rodrigo, 2007


2006, 16 de Março.

Este é o momento zero. Sufoco com a primeira golfada de ar, como um veneno a que preciso de me habituar. A capa uterina, do mundo onde cresci, nada mais tem para me oferecer. Não me perguntaram se queria nascer. Revoltaram-se quando decidi renascer. Da primeira vez, fui amparada, por mãos que me embalaram; agora, aconchego-me na minha jangada de quatro rodas e faço dela o meu berço de mulher.


~Ü£w^’€>


Sentia um verdadeiro prazer em conduzir. Percorrer estradas e caminhos, sem outro rumo que o chamamento da paisagem. Gostava das rectas ladeadas de árvores, dos campos cobertos de flores silvestres, da cor da terra lavrada, das casas perdidas em nenhures. Dos casebres abandonados, das esculturas dos penedos, das árvores que não morrem de pé.
Tinha sido uma boa compra aquela autocaravana, mesmo em segunda mão estava em óptimo estado. Ainda tinha regateado o preço, mas a verdade é que não conseguiria nenhuma mais em conta. Já andava cansada de procurar uma casa rolante, tinha pressa de partir e não estava interessada em luxos. Desde que não deixasse entrar água e o motor estivesse em bom estado, era quanto bastava. O espaço não era problema, precisava de pouco, umas mudas de roupa prática, objectos de higiene, a máquina fotográfica, o velho macaco de peluche, uns livros e – o mais importante – o seu diário. Claro, não podia dispensar a sua caneta preferida. Não prescindia dela, detestava esferográficas, eram impessoais, sem história, não conheciam o seu traço próprio.
Da berma da estrada sorria-lhe uma papoila. Acreditava, desde que se lembrava de si própria, na linguagem da natureza, na forma como estas frágeis flores anunciam algo de mágico. A Primavera chegou, as papoilas sabem esperar o momento certo e só o anunciam a pessoas especiais.
Encostou à berma e espreguiçou-se. A altura chegara. Sabia o que tinha de fazer.

A paragem do Corvo




Na rota das caravelas e dos galeões que iam e vinham das Colônias Americanas e das Índias, carregados de prata, ouro, especiarias e mercadorias do velho mundo, ficava o local conhecido pelos navegantes e piratas como a “Paragem do Corvo”. Rochedo íngreme, emergido abruptamente no Atlântico Norte, onde as correntezas marinhas e os Ventos do Ocidente geram uma mudança de direção das águas, ao largo, para a Terceira e Continente, assinalado nos portulanos do século XIV, era ponto de aguada e refresco para aqueles que ficavam no mar por muitos meses na arte da pesca e da cabotagem e, para os piratas, área de espreita para pilhagem das ricas presas. A Ilha do Corvo, a mais ocidental e longínqua do arquipélago açoriano, pelas dificuldades de acesso e sobrevivência foi, nos primeiros séculos de ocupação, quase esquecida e marginalizada pelo reino. A dificuldade de acesso, a pobreza e escassez do solo, os impostos desmedidos dos donatários e da Coroa, os caprichos da natureza, a falta de defesa eficiente, fizeram destes ilhéus homens que se adaptaram às circunstâncias, que não se importavam muito com as retardadas ou madrastas decisões do governo. Quando não podiam se proteger ou estavam em desvantagem, barganhavam com inimigo, e quando não tinham o que comer, emigravam com ou sem a permissão das autoridades, geralmente como clandestinos, nos barcos que ali aportavam. Naqueles primeiros tempos, a vida corria envolta em mistério, povoada de lendas, naufrágios e encontros com piratas. O que não chegava pela via legal, a do governo, chegava pela ilegal, com o comercio com a pirataria e a recolha dos destroços das embarcações sinistradas. Nas invasões da ilha, quando não se tinha lugar para esconder ou nada para oferecer, o medo era ser morto ou seqüestrado pelos mafomas, para depois ser vendido no mercado do oriente como escravo, ou para ser resgatado pelos reis cristãos, quando para isso se tinha dinheiro. O recurso foi, como disse Drummond: “ser um pigmeu nas muralhas de Tiro”, procurar inverter a situação. Fazer como se fazia nas costas das ilhas da Bretanha francesa ou na Cornualha inglesa, na escuridão da noite acender tochas nas regiões costeiras, atrair o inimigo para o desconhecido... O mar, às vezes tão traiçoeiro, era quase sempre um aliado. Para se chegar ao porto das Casas era preciso conhecer aquelas águas para não ser tragado. Na fúria das tempestades, quando poderosas ondas escuras se levantavam em altas e ameaçadoras muralhas de espuma e, raivosamente, se atiravam contra as rochas num ruído ensurdecedor e profundo, barcos eram arremessados contra a costa, espalhando as cargas preciosas, engolindo com avidez gentes e cascos. Mais tarde, depois que tudo amainava, vinha a clamaria. Um imenso espelho turquesa se dilatava e, como dádiva, oferecia os restos do seu banquete, àqueles ilhéus que, assustados, os aproveitavam. Com a madeira recolhida casas se levantavam, mobília se completava. Gêneros e utensílios enriqueciam os desprovidos lares ilhéus. Era a pilhagem da desgraça alheia, feita sem culpa. Era a oferta do mar aos cativos do rochedo. Conta-se que, dentre os não poucos naufrágios que ali ocorreram, em dezembro de 1770, uma nau vinda do México, afundou na costa da ilha com cerca de 200 pessoas a bordo e uma grande caixa de ferro, repleta de ouro e pedras preciosas. Os habitantes chamaram o barco de: “A nau dos Quintos”. Em 1654, também nestas águas corvinas, naufragou o galeão português, vindo do Maranhão, com o padre Antonio Vieira e outros passageiros. Salvou-os um navio pirata, que rondava pela paragem. Deixou-os em outra ilha, a da Graciosa, para que seguissem viagem. Acontecimentos fantásticos de desespero, loucura e antropofagia em alto mar, desaparecimento de tripulações, revoltas e batalhas, ficaram esquecidos na história do Corvo, quando os piratas e os corsários de antigamente se foram com o tempo.


Maria Eduarda Fagundes

Uberaba, 27/08/08

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

FAKE PLASTIC TREES


Quando, Lídia, vier o nosso outono
Com o inverno que há nele, reservemos
Um pensamento, não para a futura
Primavera que é de outrem,
Nem para o estio de quem somos mortos
Senão para o que fica do que passa
O amarelo atual que as folhas vivem
E as torna diferentes.


REIS, Ricardo, Odes.


Apenas porque era manhã levantou. “Já não consigo mais tocá-la, porque não existe mais em mim aquela abstração necessária ao amor, ou à poesia”. Pensou, não necessariamente com essas palavras. Pela fresta da janela, a luz dominical entrava muito educada, mas sem pedir licença. O que era verdade no meio daquilo tudo? Existir? Mas o que vem a ser existir e esta vida tão monótona e cotidiana diante do universo?
Ela já estava acordada, mas mantinha os olhos fechados. “Parece um bebê”. Ele pensou porque ela dormia toda encolhida. Levantou a mão com desejo de tocá-la, nos cabelos principalmente, mas recuou. Era como se um lutador de boxe, Mike Tyson talvez com seus dezenove anos, o segurasse pelo pulso.
Procurou os chinelos sob a cama. Estavam perdidos... lá... no fundo... Teve que entrar embaixo da mobília para pegá-los. O azulejo era frio no seu peito. Mármore. Todo o processo o irritou. Precisava mesmo era de umas férias na Jamaica, isso sim!
No banheiro, puxou, mirou, disparou. Errou outra vez. Ela se irritaria novamente. Fazê o que, né? Como conseguiam encher um dia inteiro de discussões? Escovou os dentes.Eles não eram mais brancos. Nicotina demais. O tempo todo. Voltou para a cozinha. Encheu a chaleira de água e colocou no fogo. Tirou o revolver da capa e pôs no som pra tocar. I´m only sleeping. Abriu a porta e acendeu um cigarro. Da cama ela fingiu uma tosse. Aqui na cozinha ele não se irritou. Continuou apenas sorvendo a fumaça e observando as falsas rosas de plástico que cresciam no canteiro lá fora.
Se não eram vivas, tampouco morreriam.



O pianista boxeador é Daniel Lopes.