
Para ler:
http://filosofia-extravagante.blogspot.com/2009/10/anotacoes-pessoais-32.html
Se te incomoda ouvir falar da elevação no império posso antes mostrar-te o jardim, e o constrangimento que o jardineiro impõe às ervas. E adivinho já o teu fastio: vais dizer-me que te aborrecem os caminhos programados do Palácio, a disposição geométrica das rosas, a igualitária decapitação das sebes; vais dizer-me que está cheio de tabuletas com proibições e que os teus pés descalços dançam melhor no prado das fadas. E como posso eu não te dar razão? Não tenho culpa do cansaço e da frieza dos príncipes. Ah, mas não é ao jardim deles que te quero levar: não perco tempo a propor-te bailes de máscaras.
Por isso te mostro o jardim, e por ele entendo o que nos espera se deixarmos para trás o Palácio e as ruas arrogantes dos mercadores e generais: aqui a horta humilde que abastece os mercados, mais além a floresta dos lobos, no meio dela o teu prado das fadas; deste lado a montanha coberta de carvalhos e faias, por ali o caminho que conduz ao mar. Em qualquer lugar tu situas-te: apetece-te a solitária companhia das dunas e sabes que cortas à esquerda a seguir ao moinho de água; mas se tens saudades da roda das fadas sabes que tens primeiro que atravessar a encosta dos abetos. E se te perdes na noite de Outono sabes em que direcção vai a lua nascer.
Ainda sentes o constrangimento? Na verdade, os carvalhos não progrediram além da linha da areia, aqui no prado das fadas não ocorreu ao hortelão plantar as suas cebolas. Olha para estes ramos despidos: não é ainda o tempo das maçãs. Em vão procurarias aqui a orquídea dos trópicos, e elas enchem no entanto a orgulhosa estufa dos príncipes. É essa a duríssima lei do jardineiro maior. E, vês? Não recorreu para isso a tabuletas nem a cães de guarda.
Mas as dunas, dirás tu que as dunas hão-de um dia ser morada de lobos e que o hortelão só ganharia se de manhã encontrasse orquídeas em vez de cebolas e que acabas de reparar que então há direcções onde nunca vemos a lua nascer? As dunas, dirás tu que lhes falta a liberdade de ser tudo, dirás que é injusto as fadas elegerem o prado verde para dançar e que serias mais feliz se a partir do moinho de água pudesses escolher qualquer caminho e todos descessem ao mar? Aí, onde irias quando ansiasses pela solidão? Onde, quando o teu coração quisesse dançar?
Entendes porque te afastei dos caminhos geométricos do Palácio? Não há neles sequer a sombra de um jardim, e por isso todos eles vão dar à varanda dos príncipes cansados. E para os construir foi preciso derrubar a cabana e a fonte, e por isso aqueles guardas carrancudos que te ficaram na memória como guardiães do império. Impostores. Não te esqueças de que essa história foi escrita para agradar aos generais, foi paga pelos mercadores que dependem do luxo dos príncipes. Mas tu escapavas-lhes de noite, e saltavas a muralha para brincar com as crias do lobo.
Na verdade, a tua liberdade é constrangimento das ervas: se elas se dispersarem, não terás um prado para dançar. E o teu constrangimento é a liberdade das árvores: que será delas se derrubares quem se interpõe entre ti e o mar? Mas ambos se fundam no jardim, que a tudo situa em hierarquia e poema.
E em ti, quem eu quero fundar é o jardineiro.
Crente é pouco sê-te Deus
E para o nada que é tudo
Inventa caminhos teus.
…
Se Ele é o que dizes
Ele nada pode ser
E se nada, livre está
Para ser o que quiser.
...
Se Deus quisesse ocupar
Lugar a si mesmo igual
Preenchia todo o nada
E o deixava tal e qual.
...
Do que é o Espírito Santo
Só diga quem ficar mudo
Que palavra há que me leve
Áquele nada que é tudo.
...
Oxalá por saber tanto
Me apeteça ficar mudo
Só então vendo sem ver
Aquele nada que é tudo.
Agostinho da Silva
Ao Renato e ao Klatuu, novamente...
1. No fundo, entender o que será o império de que Portugal pode aspirar ser a proposta - de que nos vale a pena aspirar a ser palavra de início - é entender a diferença entre um espaço definido pelo uso da língua portuguesa e um corpo constituído como uma língua portuguesa.
2. Uma língua é um sistema de comunicação, e por isso uma conversa é simultaneamente comunicação de diferenças e enriquecimento de identidade própria. Não pressupõe o conhecimento recíproco dos falantes: ele gera-se no seu uso e pelo seu uso. Não anula as diferenças; mas a enunciação da diferença gera a compreensão que a ilumina. Não é apropriável por ninguém, mas apropriada para todos. A língua é uma hierarquia sem dominação, uma verdade sem ciúme, uma beleza sem artifício: no mundo da linguagem, que é o da irresistível elevação das coisas ao poema, somos desde sempre senhores entre pares. Porque a sua riqueza não sabe excluir, admite o paradoxo maior que é o da aristocracia de iguais. A língua não cala o estrangeiro: tradu-lo. E ao traduzi-lo convida-o. Na língua, o silêncio também tem lugar.
3. A diferença entre nação e império - se preferirem, a diferença entre o nacionalismo e projecto imperial português - é a diferença que vai entre afirmar que tudo o que seja dito em português é valioso e bom, e afirmar que tudo o que é valioso e bom pode ser dito em português. A nação não pode traduzir, porque é um espaço e não uma língua: as suas fronteiras são fechadas à importação de mercadorias e à importação de conceitos, sob pena de dissolução. Já o império não pode deixar de traduzir, porque sendo um corpo linguístico e não um espaço não tem fechadas as suas fronteiras cognitivas.
4. A inconsciência desta distinção perturbou a análise de quase todos os intelectuais do séc. XIX e inícios do séc. XX (notabilissima por isso a excepção de Pessoa), isto é, os intelectuais que viveram o apogeu dos nacionalismos, e que confundiam império com as falsíssimas caricaturas dos neo-impérios francês e prussiano: atribuíram à vitalidade nacional a capacidade de integrar, superando-as, as novidades e as transformações estrangeiras, quando na verdade essa integração correspondeu sempre - exemplarmente no período português das Descobertas - a uma fase em que a nação pariu um império como um espaço bárbaro pode parir uma língua.
5. Agora, passado o tempo das nações fechadas por força da irresistível transformação mundial a que chamamos globalização, o risco já não é o de confundir nação com império, mas o império com a neutralização dos mundos; isto é, o de não perceber não só que a globalização não é indutora mas o obstáculo maior ao império, mas também que o império é a única forma de devolver identidade (e, por isso, diferença) aos seres humanos globalizados, rebaixados a consumidores ou, no melhor caso, a computantropos. E que por isso o império - e as cumplicidades locais que o constituem - são a forma superior de resistência à ilimitada voracidade dos mercados.
6. Ao contrário da nação, o império não está encarcerado no seu espaço físico e no seu tempo histórico, mas estrutura o mundo no seu próprio espaço-tempo complexo: a língua e o império são sempre uma plataforma entre mundos. E como a mesma língua admite diferentes discursos, o império admite diversas realidades locais: culturas tradicionais e tribos pós-urbanas, crenças espirituais e hábitos de vida. Todo o império é heterogéneo e heterónimo.
7. Assim, à semelhança da língua há-de ser o império ou não vale a pena falar. Ele forja-se em nós, na nossa relação com o mundo-que-somos, com os mundos-diversos que as coisas nos dão. Não brota de um programa político, mas de uma linguagem de programação. Não depende da vontade de poder, mas da verdade a exprimir. Não é reaccionário nem futurista, porque passado e futuro são modos de enunciação. Há-de ser um mundo dito, e não um mundo ditado.
Caros, com pena de não ter mais tempo agora:
1. O assunto foi tomando, por assim dizer, a forma de uma estrela de David, de duplo triângulo: num plano, a tríade Vieira - Pessoa - Agostinho; num outro, a tríade Portugal - Europa - Lusofonia. Se quisermos, de um lado a idealização (Império, para manter a palavra) e, do outro, a realização (CPLP como caminho e, em pano de fundo, a globalização planetária). Curiosamente, cada vez mais claramente parece estarmos a falar de coisas completamente diferentes (foi a minha primeira reacção ao ler a "provocação" do Arnaldo); julgo que não estamos, e que nos falta no mapa um 7.º ponto, que não é vértice mas centro da estrela... Lá iremos ao andar da conversa, acho.
2. O que o Renato diz de Vieira, Pessoa e Agostinho é crucial, e merece análise mais funda: por agora, só dizer que o Agostinho está claríssimo, mas que, no Pessoa, a questão do "jogo literário" (precisamente por causa da sua possível confusão com qualquer "jogo interior") tem muito que se lhe diga, para não envolver uma petição de princípio: a de dar por demonstrado precisamente aquilo que em última análise toda a tradição de pensamento "esotérico-religiosa" (em amplíssimo sentido) repudia, e que é a ideia "moderna" de que o acto solitário, por si, não transforma o mundo (incluo neste "acto solitário" tudo o que vai da oração judeo-cristã à prática alquímica ou mágica).
3. Quanto à análise da situação actual, subscrevo quase inteiramente o que disse o Klatuu (o "quase" vem do ponto 2 e nasce só de ser eu, ao contrário, o maior céptico relativamente à minha racionalidade...). O ponto mais importante a meu ver vem trazido pelo Renato, e está nos pontos 4 (de ambos) sobre "europa das pátrias" e "europa imperial".
4. Da europa imperial há que excluir liminarmente a Inglaterra e o seu actual herdeiro americano, como tão perfeitamente compreendeu De Gaulle: o império destes não é império europeu mas império marítimo, e a vocação destes há-de ser sempre a de cercar e neutralizar a hipótese de um império continental (que na actual circunstância só pode ser russo-europeu).
5. De passagem, não penso que Portugal tenha sido alguma vez um império marítimo, ao contrário do que nos ensinam a pensar: marítimas eram, no tempo das nossas Descobertas, as potências com quem conflituámos (Veneza, Inglaterra, Holanda), e por isso a elas se deve a parte "material" da modernidade: o capitalismo na sua forma financeira, por exemplo. Mas à medida que Portugal se expandia (e expandia-se aprendendo, pois foi preciso re-conhecer primeiro o mundo a descobrir) procurou sempre uma plataforma continental em que ganhasse o fôlego de território que nesta faixa da europa lhe faltava, sendo a Índia e o Brasil as sucessivas hipóteses de centrar o império: através da expansão marítima, Portugal buscava penetrar na terra.
(a continuar)