Maria Eduarda Fagundes
Uberaba, 27/08/08
Maria Eduarda Fagundes
Uberaba, 27/08/08
- Olhem o mar, disse o velho, mas olhem com olhos marinheiros já que é de Portugal que falo quando vos digo olhem o mar ("Georges!", não é? "Georges! Anda ver meu país de marinheiros / o meu país das naus..."). Às vezes esquecemos, tantas vezes vem o engano: de engano e de esquecimento parece que o mundo se fez, mas marinheiros não têm tempo para se enganar: olhem com olhos marinheiros para o mar que Portugal cumpriu.
- O mar, disse o estudante de azul, então também tu falas do mar; e também eu tantas vezes mas tantas vezes estou na falésia ou na duna ou na praia a olhar, a perder-me. Imensidão, encantamento líquido do mar. É esta a alma dos Portugueses.
- "O mar sem fim é português", disse o estudante de verde, e lembrou-se de outros versos do Pessoa e disse baixinho: Portugal é feito de mar.
- Nada disso, disse o velho, e essa é a armadilha maior: cautela com o mar, é o que o marinheiro vos diz. O marinheiro não ficava na falésia ou na duna, à praia só iam as viúvas e as noivas com os corações rasgados: "máraios partam o mar!" Portugal foi o domador do mar, e o mar era o Adversário. O Pessoa disse Deus ao mar o abismo deu, mas devias saber que ele às vezes diz a verdade e às vezes o seu exactíssimo contrário... Deus o mar ao Abismo deu.
- Estás velho e já não queres sonhar, disse o estudante de azul, e o estudante de verde disse isso que dizes, como pode ser? Não somos nós a bruma, a névoa atlântica de não ter fim? Não é essa a fonte e a consumação?
- Somos sim, disse o velho e disse: somos a névoa e a bruma mas isso é porque estamos ainda sem nada ser. Não te lembras? "Pescador da barca bela / inda é tempo, foge dela / foge dela / Oh! Pescador!" Encantamento da sereia, podridão da Atlântida, sofreguidão abissal de Sirius, são estas as histórias do mar, é isto o que nos prendeu. Povos do império do mar, é isto o que nos quer desde sempre barrar. Olhem o mar com olhos de marinheiro: o barco. Olhem o corvo santo que o leme conduz. Olhem Sagres, promontorium sacrum: sagrada a terra que fere o mar.
- Confundes-me, disse o estudante de verde, e o estudante de azul disse: Perturbas-me.
- Sim, disse o velho, e sorriu: abro-vos os olhos para a serpente do mar. No timbre de Portugal a Serpe Alada: e o mundo não sabe de batalha maior.
tinham lugar. Aconselhou-me a gozar a viagem, a observar a beleza que o Oceano tem para oferecer a quem se dá ao prazer de contemplar.
Concordei em absoluto, fui olhando para a paisagem e vislumbrei a beleza frágil de uma gorgónia, ondeando os braços na corrente, sem pressas vai recolhendo aquilo que a corrente lhe trás, vai crescendo à medida que as gerações se sucedem, ganhando cores e complexidades cada vez mais belas.
Continuamos a descer, sinto-me invadido por uma paz serena, mas há algo mais. À medida que o computador vai indicando uma profundidade maior, vai aumentando uma sensação de melancolia, penso que se trata do aumento da pressão e da diminuição da temperatura e da luz. Mas não é só isso.
De facto já tinha mergulhado mais fundo e nunca me tinha sentido assim, de repente vejo uma forma. Pergunto o que é ao bodião, este responde-me que não sabe ao certo, mas que é algo que veio do meu mundo.
Aproximo-me e confirmo que aquelas formas só podem ter sido produzidas pela mão do homem, parece uma ancora. Sim, talvez seja uma ancora, mas lá atrás vejo superfícies planas, demasiado planas.
Chegamos ao River Gurara, diz-me o bodião.
É isso estou num naufrágio.De repente vejo uma sombra na balustrada, sinto um arrepio e presto uma singela homenagem aos que
Não há nada de mais profundo que mergulhar num naufrágio, mais do que em outra qualquer catástrofe aqui os sentimentos ficam mais incrustados como se fossem fantasmas, testemunhos indeléveis da angustia e bravura, da morte e salvação.
Não naufraguem no Lado Escuro da Lua!
Longe, onde o rio encontra o mar,
Sentei-me hoje, sob o sol poente,
Com um sorriso infantil e crente,
A ouvir lendas de um lobo do mar.
Mais do que os quadros emocionantes
Que com as suas palavras descrevia,
Eram outras, mil histórias que eu ouvia
Nas suas rugas e nos olhos cintilantes...
Agora está velho. Os barcos partem sem ele.
Mas mantém dignamente o ar altivo e forte,
Duma proa a desafiar as águas, a sorte.
E quando, alto, as vagas se fizeram ouvir,
Foi entre soluços que conseguiu falar:
«Ouves o mar? Está a chamar-me...»
Rebenta a espuma pelos corpos nos calhaus deixados, despoletam essências de caminhantes sentidos. Estende-se mais um corpo na praia. De pés voltados para o início do infinito.
Que afunda. Vai Volta Leva. Afunda o corpo que em ti ruma. Salga a pele de lágrimas que em ti se prostra.
No horizonte longitudinal, um abismo de corpos que se dão, deram, darão. No horizonte uma mancha empapada. Podre. Dão-se os corpos à espuma que se abate na pele do tempo. Dão-se os corpos vorazes de vida. Paralogismo brilhante da sina. Dão-se os corpos vagos de essência. Olhos baços de espadas manchadas, que ao passar no cimo das cápsulas povoaram as costas das praias talhadas.
De essências libertas murmurantes, foram ocupadas as raízes vinculadas na origem. Um e outro, apenas mais um pouco, rebento, ramagem, folhagem. E no fim a pedra. Em círculo natural perfeito de água que isola, aprisiona e sufoca. Ama-seca de essências encontradas na encruzilhada do pensamento. Volta a flor ao centro circular em cinco pétalas deixadas: Norte, Sul, Este, Oeste e no centro: Esperança. Mais um corpo que ao calcar os calhaus se deita.