1ª Parte – Capítulo IV
Quatro portas de madeira se abriam para o exterior da loja, nas duas paredes perpendiculares que ficavam fora do balcão. Grossas trancas de madeira as protegiam por dentro e quantas vezes, tarde da noite, eu ia, pequenito, de candeeiro na mão, alumiar o caminho para meu pai trancar as portas. Habitualmente só duas se abriam, uma do lado poente, outra do lado do rio, ficando aí outra sempre fechada. Só o cacimbo, com o sol ardente, sem chuva, trazia a força necessária para que todas as portas estivessem abertas desde a madrugada.
Era o tempo do milho. Grãos amarelinhos, macios ao tacto, aquecidos, deslizantes. Nos anos de abundância, o movimento era de tal ordem que não havia tempo de guardar o cereal que chegava às arrobas em quindas enormes trazidas à cabeça das mulheres ou em sacas em cima de um tronco enorme bifurcado, puxado por bois. Eram então colocadas tábuas de madeira a barrar a porta de entrada do armazém até meia altura e tudo era despejado directamente para o chão batido. Lá para Junho, Julho, já o milho aparecia à altura das tábuas e nós aguardávamos, ansiosos, o fim de tarde para a brincadeira no monte de grãos frescos, com a euforia própria da idade que nos deixava o corpo e cabelo cobertos de escamas.
Mas o que mais gostava era de acordar de manhã ao som da cantilena dos serventes na faina do tratamento do cereal. De quando em quando uma gargalhada vibrante, acompanhada de outras mais, de risos em coro: as graças de meu pai por entre a faina. Era sinal de vida, de alegria, de bulício, lugares novos para jogar às escondidas com a irmã, com os amigos que sempre trazíamos em tempo de férias.
Havia um trabalho de equipa. A duna de milho descia da porta de comunicação entre a loja e o armazém, que tinha o tapume de madeira, até à grande porta dos fundos que dava para norte, também para o rio lá
Eu era fascinado pela conversa em surdina misturada com o barulho da máquina, os sons que não decifrava mas que me foram familiares desde que me lembro de mim. Havia sempre quem lhe facultasse uma daquelas agulhas enormes escuras para tentar coser também uma saca e uma mão amiga guiando a minha. Por pouco tempo embora, que era o tempo dos pássaros, de aprontar a fisga, de ir ver dos ninhos.
A culpa veio depois, no tempo da primeira comunhão, na capela do Colégio das Madres, na espera pela primeira confissão com a pergunta à minha irmã: também tenho de dizer que costumo matar passarinhos?
(segue)
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