1ª Parte – Capítulo VIII
– Ai...uuu...é! Ai...uuu...é!
Eu brincava na vala sobre as raízes da tangerineira que lhe serviam de ponte e onde atava moinhos de cana que rodavam com a corrente. A mesma que atravessava o quintal entrando pelo tanque de lavar a roupa, onde o musgo prendia avencas que se espelhavam vaidosas à sombra da roseira de molhos de flores cremes, pequenas e olorosas, passava pela goiabeira ao lado e corria até bem ao fundo da horta, por entre as laranjeiras, esgueirando-se depois sob o muro até à lagoa grande lá em baixo.
A vala continha tesouros sem preço, nas noites ressoando o croá-croá dos sapos de goela inchada, os fios de gelatina pintalgados e esguios, longos, longos, presos nas beiras e ondeando coleantes na correnteza alegre. Os girinos escuros chegados logo depois dando à cauda, escorriam por entre os nossos dedos que em vão os queriam reter, ocupando horas infindas dos nossos dias.
A algazarra era imensa lá fora e eu trepei ao muro de adobe no fundo do quintal para mais depressa saber o que se passava. Corri um pouco ao longo do mesmo, esbarrei entretanto esfolando-me nas pernas e braços, mas segui em frente, sacudindo de mim a terra.
– Patrão matou jacaré. Vem, menino. Anda ver!
– Mentira… – mas continuei a correr.
Era certo que meu pai tinha saído a seguir ao almoço, fora dar uma volta pela fazenda à caça, decerto descera até ao rio e eu nem sequer o tinha ouvido chegar.
– É... é…! Verdade, menino!
Realmente a carrinha estava parada em frente ao portão grande, ajoujada com o peso do animal de que eu só conseguia ver a cauda pendurada. Cheguei arquejante junto ao círculo onde se juntavam todos: cozinheiro, lavadeira, criados, serventes, pastores, mulheres, garotos. Os mais pequenos escondiam-se agarrados aos panos das mães, assustados; as mulheres juntavam as mãos junto ao rosto como quem reza ou tapavam a boca com uma das mãos, segurando no outro braço o filho de colo; os homens comentavam:
– O’ngando inê...ê...êne!
– Haaca!
– Hum...hu. Avôiô...ô...!
Meu pai sorria, satisfeito, a língua a brincar com o capim seco na boca, de botas altas, enlameadas, rosto afogueado, cabelo colado à testa. Tinha chovido muito nos últimos dias e o rio transbordava, via-se de casa. Havia um tipo de veados que meu pai caçava – chissóvio – que habitavam os capinzais da beira-rio e raramente apareciam, saindo apenas durante as cheias, quando o nível das águas os forçava, e por isso meu pai descera. A sua carne era muito macia, de gosto agradável, e a pele de tom castanho-dourado, com leves riscas brancas no dorso, era sempre aproveitada: depois de salgada e seca ao sol, bem esticada, depois raspada com uma pedra para a amaciar, servia então para atapetar os quartos da casa.
Não era todos os dias que aparecia um crocodilo descuidado nas margens das lagoas de águas turvas que ladeavam o rio. Fora um acaso encontrá-lo e acertar-lhe no ponto certo para o imobilizar de imediato para que não pudesse deslizar para a água. Vezes sem conta os vi dentro do rio, boiando como um tronco pequeno onde se distinguiam apenas os olhos, mas atirar-lhes estava fora de questão, nunca poderiam ser retirados. Foi um dia de festa para todos, pois era muito apreciada a carne branca do réptil. Para nós, ficou a recordação de um cheiro pestilento e nauseabundo, que durante três dias empestou tudo
É verdade, tenho de não me esquecer de estender esta ao sol, agora que está calor. É que no Inverno há demasiada humidade e pode encher-se de bolor. Há que preservá-la, afinal veio comigo de Angola num caixote, salgada, para ser curtida numa casa ali à Praça da Figueira, em Lisboa, vai para 40 anos…
Veio, foi, voltou. E aqui está intacta. Desafiando tudo. Enrolando tudo o que sobra das vidas que ficaram, no seu rolo escuro dentro do papel pardo, no armário húmido.
(segue)
3 comentários:
Bom demais!
Beijos.
Este só me faz lembrar a minha infância de Tarzan... Quero hipopótamos! :)
O termo «hipopótamo» resume muito da magia mítica do meu universo de menino - e depois há muitas coisas mais...
Beijinhos, amiga.
nem te atrevas a parar...
:-)
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