FERNÃO LOPES
Pouco se conhece de seguro sobre a vida de Fernão Lopes; deve ter nascido entre 1378 e 1383, na altura em que Portugal, como consequência da política externa de D. Fernando e do desenvolvimento da burguesia que não desejava estar por mais tempo sujeita aos nobres, atravessava a crise em que se punha em jogo a sua independência; o cronista devia ser de origem humilde, porque tinha parentes entre os mesteirais ou operários de Lisboa, e pelo conhecimento profundo que mostra da psicologia popular, o que não é, de facto, argumento muito sólido; há nele também uma intensa simpatia pelas possibilidades da «arraia miúda»; é uma simpatia que não o leva a ocultar os defeitos e as explosões de brutalidade, mas faz, no entanto, que tudo compreendamos como o resultado do estado social das classes populares e das circunstâncias de momento. Num documento de 1418 aparece Fernão Lopes como guarda-mor da Torre do Tombo, onde se guardavam as escrituras do reino; no ano seguinte é notário e talvez secretário particular de D. João I; em 1422 exerce este último cargo junto do Infante D. Fernando; em 1434, já no reinado de D. Duarte, recebe o encargo de escrever a história geral do reino, para o que foi necessário fazer viagens pelo país, em busca de documentos de cartórios e de pessoas que ainda soubessem dos factos a narrar; não sabemos hoje se Fernão Lopes se desempenhou inteiramente da incumbência real, porque apenas nos restam em seu nome a Crónica de D. Pedro I, a Crónica de D. Fernando e a Crónica de D. João I (primeira e segunda parte); existem, nos textos autênticos de Fernão Lopes, várias referências a outras crónicas de reis da primeira dinastia, mas não parecem fornecer bases seguras de prova; a Crónica do Condestabre, que corre anónima, foi também atribuída a Fernão Lopes, mas talvez sem grande razão; em 1454, estando o cronista, segundo o dizer do documento, já muito velho e fraco, mandou D. Afonso V que se lhe desse a reforma e o substituísse Gomes Fanes de Azarara; a última notícia que temos de Fernão Lopes é de 3 de Julho de 1459: teria talvez falecido pouco depois. Os trabalhos de Fernão Lopes constituem um dos escritos históricos mais vivos, mais pitorescos, mais coloridos, mais dramáticos, que existem em qualquer literatura ; colocando-se facilmente acima de Lopez de Ayala, o cronista castelhano, e de Froissart, o cronista francês, Fernão Lopes dá-nos perfeito exemplo do historiador que sabe ver no passado um trecho de vida e o anima com toda a sua experiência dos homens, todo o seu sentido psicológico, todo o seu entusiasmo pelo que narra, ao mesmo tempo que uma inteligência penetrante, uma grande imparcialidade, um saber que não é erudição, um fundo de ironia popular tornam mais reais as suas páginas e moderam o que podia haver de excessivo sentimento; através de toda a sua obra, Fernão Lopes aparece-nos como uma das mais equilibradas personalidades que tem existido em Portugal e, portanto, como uma das mais capazes de compreender um momento da nacionalidade que tem exactamente como característica um justo equilíbrio de qualidades de inteligência e de acção: há em tudo a mesma nota de saúde, de segurança na marcha, de energia de expansão, de simplicidade nos objectivos, de domínio dos meios; o guerreiro, o burguês e o escritor, com forças de criação e com perfeito entendimento dos homens e das coisas, no mundo se apoiam, dele partem para o enriquecer e melhorar. Sob o ponto de vista artístico, e tomando a palavra num sentido restrito, há que acentuar primeiro a perfeita ordem da narrativa, a harmonia do plano que liga entre si todos os quadros, a técnica que permite entrelaçar os vários episódios, nem os fragmentando demais para que o interesse se não perca, nem deixando que as narrativas se alonguem a ponto de se quebrar a ligação no tempo; quanto ao estilo, raros souberam como Fernão Lopes mantê-lo uno, adaptando-o ao mesmo tempo às diferentes situações, e poucos seriam igualmente capazes de, elevando a linguagem popular a categoria literária, não terem caído no fácil pitoresco dos modismos. Em face das crónicas de Fernão Lopes, quer atendamos ao fundo, quer à forma, lamenta-se que o Renascimento tenha cortado, com regime e literatura estrangeira, o que estava sendo em Portugal uma criação cheia de originalidade e perfeitamente de acordo com o espírito do nosso povo; uma comparação com a obra de João de Barros é bem interessante: as Décadas, pelas empresas que narram e pelo estilo que se emprega, mostram até que ponto fora o divórcio entre os dirigentes e o país; a unidade do tempo de Fernão Lopes quebrara-se e, pelo menos, para muitos séculos.
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