Opiniões Críticas
“Aquilino Ribeiro é um beirão da alta Beira Alta, das comarcas do Paiva – Terras do Demo (como diz um dos seus títulos de livro) – tributárias de uma região mais vasta e historicamente mais profunda – a terra lamecense, fronteira de Trás-os-Montes e das Beiras, do Portugal ameno e fácil dos vales atlânticos e do Portugal Montesinho e duro dos contrafortes continentais.
A obra de Aquilino exprime vigorosamente a condição humana nessas zonas alpestres em que nada é fácil. As aldeias endurecem-se nos seus alicerces seculares, acumulando a experiência do Inverno da neve e do lobo, e do Verão da trovoada e da canícula. O instinto, raiz da vida, dita uma conduta empírica, primária, em que os sentimentos afloram com violência e frescura. (…)
É uma concepção épica da terra e do homem que leva Aquilino à dimensão épica do livro e ao surto épico do estilo. A sua arte de narrar situa-se entre o Decameron e a novela picaresca. Do conto e do romance realistas aproveitará apenas lineamentos, virtuosidades de composição e de estilo. A peripécia envolvente e atmosférica do romance psicológico não é a peripécia de Aquilino, muito mais próximo parente do Flaubert de Salambô, de Eça de Queirós da Relíquia ou do Anatole France de Thaís do que dos romances ingleses.
A sua galeria de tipos, o retomado e sempre novo painel que nos dá da Serra da Estrela e dos vales beirões, a força e fecundidade da sua prosa castiça, que fala portuguesmente de tudo o que é português, impõem-no como um dos nossos maiores escritores e dos mais bem situados nas nossas estantes clássicas, de Gil Vicente e Fernão Lopes a Vieira e Camilo. (1)
“O autor de “Jardim das Tormentas”, de “Terras do Demo”, de “O Derradeiro Fauno”, de “O Malhadinhas”, de “Aventura Maravilhosa”, de “A Via Sinuosa”, de “Quando ao Gavião cai a Pena”, de “Cinco Réis de Gente”, de “S. Banaboião”, do prefácio e da tradução audaciosa de “A Retirada dos Dez Mil”, o animador admirável da “Raposa Salta-Pocinhas” (essa grande personagem da breve galeria da ficção portuguesa que animou de malícia e de incorrigível liberdade a infância de gerações inteiras) não necessita em verdade de homenagens: nunca foi um autor menor que convém engrandecer, nem é um autor que se sobreviva e convenha, pois, dar por vivo ao público desprevenido. O público conhece-o bem, e estima-lhe com justiça as limitações e as qualidades, porque das suas páginas irrompe uma lição de amor pela vida – aquela lição impede “O Malhadinhas” de ser lido sem os olhos rasos da comovida água da aceitação humana. A irreverência salutar do seu estilo e da sua maneira de narrar, o esplendor da presença cósmica do mundo físico nas suas páginas, a articulação encantatória das suas frases e de certas descrições que revelam da pura poesia, tudo isso faz de Aquilino Ribeiro uma simbólica figura de encruzilhada cultural, onde se encontram o primitivismo ruralista, o amor gratuito da erudição livresca, uma certa fascinação cosmopolita, o jogo mais da fantasia que da imaginação, uma liberdade de composição que desconcerta os críticos formalistas, uma subtileza psicológica mais confiada à alusão estilística que à introspecção discursiva, um cepticismo sonhador, um sentimentalismo recatado de homem das serranias, enfim, aquelas características que, de uma maneira ou de outra, e com as mais diversas limitações, propiciaram as obras que há primas da literatura portuguesa.” (2)
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“Era uma vez um beirão que veio para as Letras com uns sentidos limpos, de pilha-ninhos e caçador das brenhas. Veio na altura em que todas as tábuas de valores ideológicos e sociais se desfaziam mais do que se refaziam, de modo que o seu estilo admirável contraiu o jeito de esfumar-se e enfadar-se quando se trata de fazer pensar o próximo. A tese da sua obra é sempre a mesma, e simples: a exaltação do belo animal humano, uno e duplo, homem e mulher, como uma concha bivalve. O estilo dir-se-ia assentar na miúda reticulação das fibras que conjuga um mundo recôndito de coisas vindas das retinas, dos tímpanos, das papilas sensitivas à flor da pele e das mucosas, coisas que não costumam subir, do nível bulbar ou cerebeloso, ao nível da consciência cerebral falante. (…)
Levantam-se muitas objecções ao estilo de Aquilino Ribeiro. Primeiro, que só se pode ler compreensivelmente com o dicionário ao lado. Há, é verdade, nele, a fuga ao termo e ao giro frásico já muito impressos; mas a sinédoque, a perífrase, as estranhezas escusadas só ressaltam como tais dos livros e páginas em que o assunto não prende muito o autor. Com Aquilino at his best a fraseologia e o vocabulário são correntios, falados e quase sempre populares, e, mesmo quando ainda não ouvidos, medimos-lhe bem o alcance se não estivermos divorciados do povo rural.” (3)
(1) NEMÉSIO, Vitorino, Portugal, a Terra e o Homem., Fundação Calouste Gulbenkian, 2ª Edição, Lisboa, 1978, pp.
(2) SENA, Jorge de, Estudos de Literatura Portuguesa – «Em louvor de um Grande Escritor» Edições 70, 1982, p. 198
(3) LOPES, Óscar, Modo de Ler – Crítica e Interpretação Literária, Editorial Inova, Porto, 1972, pp. 317 e 320/21
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