Donde vimos, para onde vamos...

Ângelo Alves, in "A Corrente Idealistico-gnóstica do pensamento português contemporâneo".

Manuel Ferreira Patrício, in "A Vida como Projecto. Na senda de Ortega e Gasset".
Onde temos ido: Mapiáguio (locais de lançamentos da NOVA ÁGUIA)
segunda-feira, 8 de abril de 2013
quarta-feira, 28 de março de 2012
Faria hoje 202 anos...

Alexandre Herculano, Lisboa, Edição do Autor, 1942, p. 21.
segunda-feira, 28 de março de 2011
Nasceu há 201 anos...
segunda-feira, 13 de setembro de 2010
Homenagem a Alexandre Herculano no próximo número da NOVA ÁGUIA
sexta-feira, 10 de setembro de 2010
1810 – 2010 : 2º CENTENÁRIO DO NASCIMENTO DE ALEXANDRE HERCULANO

DA MEMÓRIA… JOSÉ LANÇA-COELHO
1810 – 2010 : 2º CENTENÁRIO DO NASCIMENTO DE ALEXANDRE HERCULANO
“ Não tem título honorífico, condecoração ou distinção alguma e espera em Deus que nunca as terá.” – Alexandre Herculano, in jornal A Nação de 22 de Setembro de 1877.
“ [Um homem que] tinha o egoísmo da sua honestidade, da sua virtude.” – Ariosto da Silva.
“ (…) algumas leiras próprias, umas botas grosseiras e um chapéu de Braga [ é tudo o que preciso para ser feliz).” – Alexandre Herculano em confissão ao seu amigo Almeida Garrett.
Se quiséssemos definir Alexandre Herculano, cujo segundo centenário do nascimento se comemora no presente ano de 2010, as frases transcritas acima, cumpririam bem essa finalidade, pois nelas se encontra tudo o que o Homem, de quem iremos de seguida traçar o perfil, desejava para si.
O cidadão Alexandre Herculano de Carvalho e Araújo, nasceu em Lisboa, no Pátio do Gil, Rua de S. Bento, a 28 de Março de 1810, filho de Maria do Carmo de São Boaventura e de Teodoro Cândido de Araújo, recebedor da Junta dos Juros.
Estuda Humanidades nas aulas dos padres dos oratorianos dos Congregados de São Filipe Néri preparando-se para ingressar na Universidade, o que não sucede devido a cegueira contraída pelo pai, facto que empurra este último para a aposentação no ano de 1827.
Alexandre Herculano vê-se então forçado a seguir um curso prático de Comércio, onde estuda Diplomática (Paleografia) na Torre do Tombo e línguas, francês, inglês e alemão.
Entre 1827-1828 manifesta-se já a sua vocação literária, lendo autores românticos, nomeadamente, os alemães Schiller (1759-1805), Burger e Klopstock (1724-1803), e os franceses Lamennais (1782-1854), Casimir Delavigne (1793-1843), Chateaubriand (1768-1848), Lamartine (1790-1869) e Vigny (1797-1863), escrevendo poesia, travando conhecimento com poetas da estatura dum António Feliciano de Castilho (1800-1875) cuja tertúlia frequenta, bem como a Marquesa de Alorna (1750-1839), que homenageará, em 1844, num artigo publicado em O Panorama, onde a consagra como a «Madame de Stael (1766-1817) portuguesa».
As suas convicções liberais obrigam-no, no ano de 1831, a exilar-se, devido a ter participado na conspiração de 21 de Agosto, - revolta do regimento de Cavalaria 4, em Lisboa -, contra o regime absolutista de D. Miguel (1802-1866). O seu périplo começa por Inglaterra, primeiro em Plymouth, depois em cidades de província como, Stone House e Devonport, deslocando-se depois para França, Normandia (Granville), Bretanha (Rennes, cuja biblioteca Herculano frequenta de manhã à noite).
No ano seguinte, 1832, vamos encontrá-lo na ilha Terceira, Açores, onde se junta, como soldado raso, ao contingente liberal organizado por D. Pedro (1798-1834) que vem desembarcar no Mindelo, cercando o Porto, em cuja biblioteca pública trabalha, primeiro, sem descurar as suas obrigações militares, e, depois, em 1833, como segundo-bibliotecário, para além de colaborar no Repositório Literário (1834-1835).
1836 é o ano da Revolução de Setembro, que leva à abolição da «Carta Constitucional», jurada por Herculano, e a consequente reposição da «Constituição de 1822», o que determina que o escritor, fazendo alarde da dignidade que sempre caracterizou a sua existência, se demita do seu cargo e rume a Lisboa, onde publica com extremo êxito A Voz do Profeta (1ª série, 1836; 2ª série, 1837), onde se nota a influência de Lamennais (1782-1854), e que adquire o estatuto de um panfleto político contra a «Revolução Setembrista».
Actuando como jornalista, funda a revista literária O Panorama (1837), órgão de difusão do primeiro romantismo português e de divulgação dos diversos romantismos europeus, ao mesmo tempo que, dirige o Diário do Governo.
Dois anos depois, 1839, o segundo marido da rainha portuguesa D. Maria II (1819-1853), D. Fernando de Saxe-Coburgo Gotha (1816-1885), nomeia Herculano bibliotecário-mor das Bibliotecas Reais da Ajuda e das Necessidades. Influenciado por historiadores como Guizot (1787-1874) e Thierry dedica-se a uma exaustiva pesquisa documental que culminará, em 1842, na publicação das Cartas sobre a História de Portugal na Revista Universal Lisbonense. Este primeiro ensaio originará o volume inicial da sua História de Portugal 1846, que provocará uma violenta polémica com as autoridades clericais, ao negar o aparecimento de Jesus Cristo a D. Afonso Henriques (1109-1185), antes da batalha de Ourique, além da negação de outras lendas de cariz religioso, e que determinará a produção dos famosos opúsculos Eu e o Clero, e, Solemnia Verba, ambos de 1850.
A sua História de Portugal publicada entre 1846 e 1853, abrange o período compreendido entre a fundação da nacionalidade e a representação dos municípios nas Cortes, no reinado de D. Afonso III (1210-1279).
Não nos adiantemos, e voltemos a 1840, para registar a eleição de Herculano como deputado pelo Partido Cartista, cargo que apenas exercerá durante um ano, pois abandona o Parlamento desiludido com a não implementação do seu projecto sobre ensino popular.
Em 1846, Herculano é eleito sócio da Academia Real das Ciências de Lisboa, instituição de que chegará a ser vice-presidente em 1855. O prestígio do historiador português não cessa de crescer e, assim, tornar-se-á membro da Academia de Turim (1850) e da Academia de História de Madrid (1851).
Em 1850, opondo-se à ditadura de Costa Cabral (1803-1889), Alexandre Herculano assina um documento em que denuncia a “lei da rolha” no respeitante à liberdade de imprensa. No ano seguinte, dá-se a queda de Cabral, com a consequente Regeneração do marechal Saldanha (1790-1876), e Herculano funda o jornal O País. Dois anos depois, é a vez do aparecimento de um outro órgão de comunicação, também fundado por Herculano, O Português, onde se opõe às ideias do governo de Fontes Pereira de Melo (1819-1887) e Rodrigo da Fonseca Magalhães (1787-1858).
Meia dúzia de anos depois, 1856, Herculano e outros apaniguados políticos fundam o Partido Progressista Histórico e, no ano seguinte, o historiador ataca com violência a Concordata com a Santa Sé. Entre 1860 e 1865 participa na redacção do 1º Código Civil Português, e propõe o casamento civil ao religioso, provocando nova acesa polémica com o clero, que se encontra coligida na obra de 1866, Estudos sobre o Casamento Civil.
Fatigado com estas polémicas e desiludido com a vida política, no ano seguinte, retira-se para uma quinta em Vale de Lobos, Azóia, concelho de Santarém, comprada com o dinheiro recebido com a venda dos seus livros. Após o casamento com o grande amor da sua vida, Maria Hermínia Meira, ambos vão viver para o meio da Natureza. Desde cedo, Herculano que, adorava fazer jardinagem, dedica-se então, com grande satisfação à agricultura, em especial à produção de azeite, o melhor do país de acordo com testemunho da época que, comercializa, com a marca «Herculano».
No seu amado retiro, Herculano não abandona a investigação histórica – continuando a trabalhar nos Portugalie Monumenta Histórica, publica o 1º volume dos Opúsculos (1872) –, nem as polémicas em que é ‘obrigado’ a intervir – a famigerada proibição das «Conferências do Casino» -, bem como a correspondência com os vultos literários e políticos seus contemporâneos.
Relativamente à obra literária de Alexandre Herculano, comecemos por analisar a sua poesia, género que foi também o primeiro a que se dedicou, limitada ao período da sua juventude, ao contrário do seu amigo Almeida Garrett (1799-1854), exprimindo um nacionalismo que fundamenta o seu conceito de realismo. Aliás, já que falámos em Garrett, este é o momento ideal para afirmar, sem qualquer dúvida, que, Herculano e Garrett são os introdutores do Romantismo em Portugal.
A narrativa dramática caracteriza quase toda a obra poética de Alexandre Herculano, o que o empurra para a grandiloquência a que são alheios o conteúdo conceptual bem como a originalidade de imagens.
Outra importante característica da poética de Herculano é a oposição entre o campo e a cidade, merecendo-lhe o primeiro, os maiores elogios e, o segundo, as críticas mais negativas. Esta dualidade de carácter moralista encontramo-la, também, na prosa, embora aqui, ela surja com uma notável originalidade no respeitante à adjectivação, como se pode constatar na obra, Eurico, o Presbítero, 1844, com a qual Herculano funda o romance histórico português, seguindo as pegadas do escocês Walter Scott (1771-1832), a que se seguirão dentro do mesmo género literário, O Monge de Cister, 1848; Lendas e Narrativas, 1851; o Bobo, 1843.
Para além da enorme e rigorosa pesquisa histórica, Herculano denota uma consciência romântica, que terá em Antero de Quental o seu expoente máximo.
São as seguintes, as obras principais de Alexandre Herculano:
POESIA:
A Voz do Profeta, 1836; A Harpa do Crente, 1838; Poesias, 1850.
FICÇÃO:
Eurico, o Presbítero, romance, 1844; O Monge de Cister, romance, 1848; Lendas e Narrativas, 1851; O Bobo, romance, 1878; O Pároco da Aldeia, O Galego, novelas, 1973.
HISTÓRIA:
História de Portugal, 1846-1853; História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal, 1854-1859.
TEXTOS DIVERSOS:
Estudos sobre o Casamento Civil, 1866; Opúsculos, 1873-1876.
CORRESPONDÊNCIA:
Cartas, 1911-1914; Cartas Inéditas de Alexandre Herculano, 1944; Cartas de Vale de Lobos, 1980-1981.
quinta-feira, 26 de agosto de 2010
ALEXANDRE HERCULANO E O BRASIL

DA MEMÓRIA… JOSÉ LANÇA COELHO
No ano do 2º centenário do nascimento de Alexandre Herculano (1810-2010) abordemos as ideias que o introdutor do romance histórico em Portugal tinha acerca da grande nação irmã.
Servem-nos de referência dois artigos escritos pelo autor de O Monge de Cister nos dois primeiros números da Revista O Panorama, datados dos anos de 1837 e 1838.
Pioneiro do intercâmbio entre Portugal e o Brasil, Alexandre Herculano abordando esta problemática, escreve o seguinte no primeiro número da Revista Panorama, de 1837:
“Ainda que hoje vasto império, separado de Portugal, forme por si uma nação independente por todos os títulos, não deixam contudo os brasileiros de ser irmãos dos portugueses.”
Explicando a separação entre as duas nações, o autor das Lendas e Narrativas argumenta do seguinte modo:
“Porque uma grande família não pode viver reunida, segue-se, por ventura, daí, que os membros de que ela se componha, sejam entre si estranhos? Se um filho chegado à idade viril, saiu de sob a tutela materna, deverá sua mãe, amaldiçoá-lo por isso? Neste caso está o Brasil, a sua idade viril tinha chegado. Mais rico do que Portugal; com uma civilização sempre progressiva; produzindo génio, e homens extraordinários, era absurdo ou antes impossível que os seus habitantes deixassem de conhecer que Portugal não tinha jus a tratá-los como colonos. A consciência desta verdade, causou a Revolução do Brasil e a revolução era justa. Nós tentámos a sorte das armas porque o orgulho nacional fora ofendido; mas a sorte das armas nos foi contrária e a independência do Brasil foi reconhecida.”
Depois de explicada a separação entre os dois países, Alexandre Herculano não se coíbe de enunciar os caracteres que unem as duas nações irmãs:
“Esses acontecimentos pertencem já à história; os ódios recíprocos estão extintos e os dois povos ligados por laços de sangue, falando a mesma língua, seguindo a mesma fé; habituados a usos e costumes mui semelhantes, nada mais devem ser do que aliados fiéis e amigos sinceros. A razão, a política, e até a religião aconselham estes sentimentos a ambas as nações.”
De seguida, o autor de O Bobo denuncia algumas atitudes nocivas para Portugal:
“O nosso povo não conhece isto inteiramente [as vantagens da aproximação entre os dois países]; ainda não percebe até que ponto a fraternidade com os seus irmãos de além-mar lhe pode ser vantajosa. Afiguram muitas pessoas o Brasil como um país ainda inculto e bárbaro; crêem que a civilização, as artes e os cómodos da vida são apanágio só dos europeus. Erro miserável que cumpre derrubar pelo pé.”
E as atitudes a tomar para combater essas mesmas atitudes:
“Importa fazer saber ao povo a verdade e destruir preocupações vãs que só servem de transviar o espírito público do que lhe pode ser proveitoso. Nós, pela nossa parte trabalharemos nisto com ânimo sincero de ser úteis aos nossos compatriotas; e das pessoas ilustradas do império brasileiro receberemos quaisquer notas ou rectificações, que tiverem a bondade de nos comunicar, sobre o que escrevemos acerca do seu país.”
Alexandre Herculano enuncia então, os sectores de actividade (agricultura, comércio, navegação e indústria) em que a antiga colónia portuguesa se mostra de uma grande fortaleza:
“O Brasil é uma terra de esperanças. As produções quase espontâneas do seu extensíssimo solo, regado por tantos rios caudais que facilitam o trato do comércio, o tornam independente dos outros povos, ao passo que estes dele carecem para muitos objectos que se têm convertido em necessidades da vida. À sombra de boas leis, e se alcançar a tranquilidade interior, aquele império crescerá cada vez mais em navegação e em indústria; assim o horizonte do seu futuro brilhante não é fácil: (difícil) de compreender.”
Como afirmámos atrás, Alexandre Herculano dedicou um segundo artigo à nação irmã, publicado no nº 2 da Revista O Panorama, em 1838, intitulado “População carácter, usos e costumes dos habitantes, produtos”. Assim, começando por caracterizar o povo brasileiro, escreve:
“Se entre eles se considerarem individualmente os homens das raças diferentes e até opostas, de que a Nação é formada, dificultoso empenho será fazer uma ideia apurada do carácter nacional, cujos principais toques são a vivacidade e a agudeza juntas a certa leveza, que nem sempre a reflexão alcança moderar. Têm comummente os brasileiros notável aptidão para o estudo das ciências e das boas letras e é de esperar «que de futuro venham por esta parte a servir de modelo do Novo-Mundo»”.
É de realçar que, muito antes de Stefan Zweig e outros intelectuais que defenderam que o Brasil seria o líder do Novo-Mundo, já Alexandre Herculano entrevia que o país irmão era a nação do futuro, ao mesmo tempo que, chegava ao ponto de caracterizar os comportamentos de alguns habitantes de regiões significativas como, o paulista, o mineiro, o sergipano e o pernambucano.
Saliente-se que Herculano baseava os seus juízos no livro do bispo de Pernambuco, Azeredo Coutinho, intitulado Ensaio Económico sobre o Comércio de Portugal e suas Colónias, e onde se combate a tese de Montesquieu em que o filósofo francês defende a falta de habilidade e de carácter dos povos de países quentes.
Alexandre Herculano defende os brasileiros, salientando a não existência de racismo no Brasil, quando escreve:
“(…) em nenhuma região do Novo-Mundo são mais bem tratados os pretos; e cumpre notar que as distinções que nascem da cor da pele são no Brasil menos sensíveis do que em qualquer outra parte.”
O conhecimento do autor da História de Portugal acerca do Brasil é de tal modo específico que, termina o artigo que vimos referindo, enunciando as várias produções do subsolo brasileiro:
“ (…) pedreiras de granito nas vizinhanças do Rio de Janeiro; pedreiras de pedra calcárea, de pedra de afiar e de amolar, de lousa, de amianto; pedreiras de mármore no distrito de Sabará; pedras preciosas em Minas Gerais e outras partes do Brasil [mas] tem menos valor que as da Índia Oriental. Platina na Serra de Mendanha; chumbo no Rio de S. Francisco, zinco em Tocayos.”
Relativamente ao ferro, Herculano seguindo as informações do Barão de Eschwege, escreve:
“(…) o ferro é tanto em Minas que teria sido suficiente para abastecer todo o mundo, sem que nunca ali se esgotassem as minas dele.”
Antes de terminar o artigo, Herculano refere sumariamente as espécies vegetais com características medicinais e as que servem para construções:
“(…) é grande a abundância de madeiras para navios, transportes e construções de todo o género”
ao mesmo tempo que, cita a importância da pecuária,
“cria-se naquela região maravilhosa [Pernambuco] grande cópia de gado, sendo o vacum tanto que se matam centenas de bois só para lhes aproveitar o couro”
e da pesca:
“Pelos mares e rios do Brasil vivem cardumes de peixes e as pescarias da Nação podem chegar a grande apuro.”
A finalizar, diremos que, Alexandre Herculano ao escrever estes dois artigos sobre o Brasil, revela uma agudeza de espírito e uma capacidade de previsão, que apenas é exclusivo dos grandes génios. Pensamos assim, que esta é a melhor homenagem que podemos fazer ao Homem, ao Intelectual e ao Historiador, na passagem do segundo centenário do seu nascimento.
sábado, 21 de agosto de 2010
ANTERO E JUNQUEIRO FALAM DE HERCULANO

DA MEMÓRIA... JOSÉ LANÇA-COELHO
No ano do 2º centenário do nascimento (1810-2010) de Alexandre Herculano (Lisboa, 28 de Março de 1810-Vale de Lobos, Santarém, 13 de Setembro de 1877), ouçamos o testemunho de dois intelectuais seus contemporâneos.
Comecemos pelo “Santo Antero”, termo com que Eça de Queirós (Póvoa do Varzim, 25 de Novembro de 1845-Paris, 16 de Agosto de 1900) designava o autor das Causas da Decadência dos Povos Peninsulares nos Últimos Três Séculos, e vejamos o que Antero de Quental (Ponta Delgada, 18 de Abril de 1842- id., 11 de Setembro de 1891) diz sobre a morte do introdutor do romance histórico em Portugal –“é mais do que um luto para a literatura, é um verdadeiro luto nacional” – servindo-nos de um artigo que Antero escreveu no nº2 da revista “Os Dois Mundos”, de 30-9-1877, publicada em Paris, entre 1877 e 1881, por Salomão Sáragga, que esteve ligado às célebres “Conferências do Casino”
Mais adiante, Antero afirma que Herculano é o último representante duma ilustre geração em quem “o forte génio português reverdeceu ainda neste século com uma seiva tardia”, sendo o autor da História de Portugal, “um grande homem (…) representante do génio da sua nação.”
Quanto à estatura ética do autor de Lendas e Narrativas, Antero de Quental escreve: “Na fisionomia moral de Alexandre Herculano, há certas linhas que fazem lembrar o perfil enérgico e simples dos heróis típicos da nacionalidade portuguesa. Pertencia a essa grande linhagem, que acabou com ele – e o seu século, admirando-o, considerava-o todavia com um certo espanto ininteligente, como se sentisse vagamente que aquele homem pertencia a um mundo extinto, um mundo cujo altivo sentir já ninguém compreendia.”
O chefe espiritual da “Geração Nova” continua a traçar-nos o retrato de Herculano, relacionando-o com o período histórico em que ambos viveram: “Não nos cabe a nós ser juízes entre um grande homem e uma época, que tantos aclamam gloriosa, enquanto outros persistem em tê-la por mesquinha. A história (…) dará talvez razão, ao mesmo tempo, à época, que não podia ser maior nem melhor do que as circunstâncias a fizeram, e ao homem nobre e sincero, cuja altiva integridade repugnava invencivelmente a que pactuasse com o abaixamento moral dos contemporâneos, embora tal abaixamento lhe parecesse providencial, preferindo a atitude isolada e austera do protesto e as más vontades que ela provoca nos caracteres vulgares, à influência e dominação alcançada pela conivência com as paixões, os desvarios e os vícios da época.” (sublinhado nosso)
Antero termina a apreciação a Herculano com esta frase que podemos considerar sublime: “Há glórias mais brilhantes e ruidosas: nenhuma pode haver mais pura.”
Notemos de seguida, como o anti-clerical Guerra Junqueiro (Freixo de Espada à Cinta, 15 de Setembro de 1850-Lisboa, 7 de Julho de 1923) no popular Novo Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro para 1883, define o carácter de Herculano e, como essa mesma maneira de encarar a vida o conduz ao estado que Camões (Lisboa?, c. 1531-id. 10 de Junho de 1580) contempla na frase, “aqueles que por obras valorosas se vão da lei da morte libertando”:
“Alexandre Herculano é uma dessas figuras esculturais que, antes de desaparecerem em pó, reaparecem em bronze. Ainda vivo, nos últimos anos, adquirira na penumbra heróica do seu isolamento, como que a imobilidade sagrada de uma estátua. Desde o dia em que, velho leão ensanguentado, se retirou de uma luta sem tréguas que durara quarenta anos, para se ir esconder na benigna e pacificante tranquilidade da natureza, desde esse dia em que para quase todos começa o esquecimento, começou para Alexandre Herculano a projecção gloriosa do seu génio – a imortalidade.”
quinta-feira, 19 de agosto de 2010
TESTEMUNHOS DE EÇA E GARRETT SOBRE ALEXANDRE HERCULANO

DA MEMÓRIA… JOSÉ LANÇA-COELHO
Tendo como pano de fundo o 2º Centenário do nascimento de Alexandre Herculano (1810-2010), julgamos importante divulgar as opiniões dos seus contemporâneos a seu respeito.
Comecemos, então, por Eça de Queirós (Póvoa do Varzim, 25 de Novembro de 1845-Paris, 16 de Agosto de 1900). Para além de duas passagens, uma em As Farpas, que escreveu de início em parceria com Ramalho Ortigão (Porto, 24 de Outubro de 1836-Lisboa, 27 de Setembro de 1915), e outra na novela Alves & Cª, o nosso cônsul em Paris, dedica-lhe um trecho no seu livro Os Maias.
João da Ega, alter-ego de Eça, explicando a Afonso da Maia, o motivo pelo qual não deseja publicar livros, diz: «Não vale a pena sr. Afonso da Maia. Neste país, no meio desta prodigiosa imbecilidade nacional, o homem de senso e de gosto deve limitar-se a plantar com cuidado os seus legumes. Olhe o Herculano…».
O velho Afonso, também ele um ‘Herculano’, que se desterrou na Beira, abandonando a vida política activa, depois dum exílio em Inglaterra, responde ironicamente que, nem isso, Ega fazia.
Por seu turno, o neto de Afonso, e colega de Ega, Carlos da Maia reforça a ideia ‘vegetariana’ defendida pelo amigo, afirmando: «A única coisa a fazer em Portugal é plantar legumes, enquanto não há uma revolução que faça subir à superfície alguns dos elementos originais, fortes, vivos, que isto ainda encerra lá no fundo.» E se não encerrar absolutamente nada, Carlos, alvitra que nos demitamos do país e «passemos a ser uma fértil e estúpida província espanhola, e plantemos mais legumes».
O irónico diálogo transcrito, encerra os desejos e as frustrações da geração do próprio Eça, equiparando-a aos revolucionários de 1820, aos vencedores de 1834 e ainda aos intelectuais de 1851, diante da tarefa fundamental de «regenerar» um país tiranizado nas suas mais diversas vertentes.
Alexandre Herculano diante desta hérculea tarefa, ensaiara uma reforma cultural, partindo da investigação das fontes historiográficas, combatendo os mitos, - como o exemplo paradigmático do aparecimento de Jesus Cristo a D. Afonso Henriques (Guimarães ou Viseu, 1109?-Coimbra, 6 de Dezembro de 1185) antes da batalha de Ourique, o que lhe valeu graves e profundas diatribes com a igreja Católica -, porém, sem o sucesso esperado, refugiara-se em Vale de Lobos, escrevendo e produzindo azeite.
E a geração de Eça, a de 70, a dos conferencistas do Casino amordaçados pelo marquês de Ávila (8 de Março de 1806-3 de Maio de 1881), que tinham feito? «Os Vencidos da Vida», como os próprios se autointitulavam, tinham simplesmente desistido! Jantavam no hotel Bragança, falavam, fumavam charutos, alguns formavam governo ou emprestavam os seus nomes aos ministérios do rei D. Carlos (Lisboa, 28 de Setembro de 1863-id., 1 de Fevereiro de 1908) e, nem sequer, plantavam legumes!
E já que continuamos na flora vegetal, ouçamos o que diz o companheiro de exílio em França e Inglaterra de Herculano, Almeida Garrett (Porto, 4 de Fevereiro de 1799-Lisboa, 9 de Dezembro de 1854), que desenganado da vida política, não da Regeneração, mas do Cabralismo, escreve nas suas Viagens na Minha Terra (1846): «Plantai batatas, ó geração do vapor e do pó de pedra; macadamizai estradas; fazei caminhos de ferro, construí passarolas de Ícaro (…). Andai, ganha-pães, andai; reduzi tudo a cifras (…), comprai, vendei, agiotai.»
Por seu turno, Alexandre Herculano garante em 29 de Outubro de 1851, portanto já durante a Regeneração, em artigo não assinado saído em «O País», jornal fundado pelo historiador, que a nossa «história política é uma série de desconchavos, de torpezas, de inépcias, de incoerências indesculpáveis, ligadas contudo por um pensamento constante, o de se enriquecerem os chefes de partido! (…). Hoje achá-los-eis progressistas, amanhã reaccionários; hoje conservadores, amanhã reformadores; olhai porém com atenção e encontrá-los-eis sempre nulos”.
Curioso é o facto, de ter sido em casa de Alexandre Herculano que se preparou a revolução que, encabeçada por Saldanha (1790-1876), daria início ao período da História de Portugal conhecido por «Regeneração» (1851 em diante).
Por outro lado, Herculano recusou a pasta do Reino que lhe foi então proposta, vindo algum tempo depois a situar-se mesmo na oposição à sua nova situação política, ao contrário do seu amigo Almeida Garrett que, aceitou a pasta dos Negócios Estrangeiros (1852).
terça-feira, 18 de maio de 2010
sexta-feira, 26 de março de 2010
Comemorações do Bicentenário do Nascimento de Alexandre Herculano
No âmbito das Comemorações do Bicentenário do Nascimento de Alexandre Herculano (1810-2010), a Câmara Municipal de Lisboa organizará, no próximo dia 28 de Março (dia do nascimento de Alexandre Herculano e Dia Nacional dos Centros Históricos), pelas 17.30h, na Sala do Arquivo dos Paços do Concelho, uma palestra intitulada “Alexandre Herculano, Patrono do Municipalismo e dos Centros Históricos Portugueses”, proferida pelo Prof. Doutor Pedro Gomes Barbosa (Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa - Instituto Alexandre Herculano de Estudos Regionais e do Municipalismo).
Programa (28 Março 2010 Sala do Arquivo dos Paços do Concelho):
> Apresentação do Programa Municipal para as Comemorações do Bicentenário do Nascimento de Alexandre Herculano (1810-2010)
> Palestra “Alexandre Herculano, Patrono do Municipalismo e dos Centros Históricos Portugueses”, pelo Prof. Doutor Pedro Gomes Barbosa (Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa – Instituto Alexandre Herculano de Estudos Regionais e do Municipalismo)
> Visita guiada à exposição LISBOA REPUBLICANA – roteiro patrimonial (Galeria de Exposições dos Paços do Concelho)
Agradecemos a divulgação desta iniciativa. Para mais informação ou outros esclarecimentos contactar: Maura Pessoa – tel. (geral) 213 246 290/8
E-mail: maura.pessoa@cm-lisboa.pt
segunda-feira, 24 de agosto de 2009
ALEXANDRE HERCULANO
"Vale de Lobos não foi um refúgio, a tebaida de um proscrito do mundo, mas uma base melhor de combate, porque, não o impedindo de escrever, lhe dava mais fundo conhecimento do povo actual, lhe permitia ensiná-lo na actividade agrícola que sempre olhara como primordial, e o afastava do meio corrompido, inútil e enfraquecedor da capital; Herculano não acredita nem no escol da nação nem na populaça sempre pronta a seguir o político mais hábil em palavras e mais fértil em empregos: mas acredita no povo, na gente tenaz, sóbria, calma, generosa, optimista, cheia de inteligência prática e de bom senso, que formara outrora um país modelar e era capaz, se encontrasse bons chefes, de voltar ao nível de vida dos tempos antigos.
Na quinta adquirida com o produto do seu trabalho e melhorada no cultivo dedicou-se Herculano a fabricar azeite que rapidamente se impôs como o melhor que aparecia no mercado; o homem que recusara as condecorações que se davam aos titulares de fresca data e aos afilhados de ministros, orgulhava-se da medalha que recebera numa exposição agrícola; e, pacientemente, mas sempre com o seu jeito de certa rudeza, ia instruindo os camponeses, dando-lhes o exemplo do seu trabalho, defendendo todo o direito que tinham, e ninguém reconhecia, de se alimentarem, se vestirem, se instruírem como homens; a quem lhe pergunta pelos meios de evitar a emigração, replica que se melhorem as condições do trabalhador português, que feliz na pátria, não precisará de a abandonar. Em 75 escreve novos estudos históricos com os artigos sobre o Feudalismo em Portugal, em que defendia a inexistência do regime na nossa Idade-Média; dois anos depois recebe a visita de D. Pedro, imperador do Brasil, e, na vinda a Lisboa em Setembro, um golpe de frio fez que se declarasse uma pneumonia; ainda voltou a Vale de Lobos, mas nunca mais se levantou: faleceu a 13, à noitinha, depois de ter pedido que lhe abrissem as janelas, para ver pela última vez as suas oliveiras."
In Alexandre Herculano, Lisboa, Edição do Autor, 1942, pp. 21-22.
domingo, 3 de maio de 2009
Maio, ou de como ligar o absoluto
A Marco Túlio Cícero
"(...) Toda a clerezia da Sé estava ali apinhada, e o príncipe, sem dar palavra e com os olhos fitos no chão, parecia envolto em fundo pensar. O silêncio era completo.
Por fim Afonso Henriques ergue o rosto carrancudo e ameaçador e disse:
- Cónegos da Sé de Coimbra, sabeis a que vem aqui o infante de Portugal?
Ninguém respondeu palavra.
- Se não sabeis, dir-vo-lo-ei eu - prosseguiu o príncipe -: vem assistir à eleição do bispo de Coimbra.
- Senhor, bispo havemos. Não cabe aí nova eleição - disse o mais e velho e autorizado dos cónegos que estavam presentes e que era o adaião.
- Ámen - responderam os outros.
Esse que vós dizeis - bradou o infante cheio de cólera -, esse jamais o será. Tirar-me quis ele o nome de filho de Deus; eu lhe tirarei o nome do seu vigário. Juro que nunca em meus dias porá Dom Bernardo pés em Coimbra: nunca mais da cadeira episcopal ensinará um rebelde a fé das santas escrituras! Elegei outro: eu aprovarei vossa escolha.
- Senhor, bispo havemos. Não cabe aí nova eleição - repetiu o adaião.
- Ámen - responderam os mais.
O furor de Afonso Henriques subiu de ponto com esta resistência.
- Pois bem! - disse ele, com a voz presa na garganta, depois de olhar terrível que lançou pela assembléia, e de alguns momentos de silêncio. - Pois bem! Saí daqui, gente orgulhosa e má! Saí, vos digo eu! Alguém por vós elegerá um bispo...
Os cónegos, fazendo profundas reverências, encaminharam-se para as suas celas, ao longo das arcarias da crasta.
Entre os que ali se achavam, um negro, vestido de hábitos clericais, tinha estado encostado a um dos pilares, observando aquela cena; os seus cabelos revoltos contrastavam pela alvura com a pretidão da tez. Quando o príncipe falava, ele sorria-se e meneava a cabeça, como quem aprovava o dito. Os cónegos começavam a retirar-se, e o negro ia após eles. Afonso Henriques fez-lhe um sinal com a mão. O negro voltou para trás.
- Como hás nome? - perguntou-lhe o príncipe.
- Senhor, hei nome Çoleima.
- És bom clérigo?
- Na companhia não há dois que sejam melhores.
- Bispo serás, Dom Çoleima. Vai tomar teus guisamentos, que hoje me cantarás missa.
O clérigo recuou: naquela face tisnada viu-se uma contracção de susto.
- Missa não vos cantarei eu, senhor - respondeu o negro com voz trémula -, que para tal auto não tenho as ordens requeridas.
- Dom Çoleima, repara bem no que te digo! Sou eu que te mando vás vestir as vestiduras de missa. Escolhe: ou hoje tu subirás os degraus do altar-mor da Sé de Coimbra, ou a cabeça te descerá de cima dos ombros e rolará pelas lájeas deste pavimento.
O clérigo curvou a fronte. (...)"
Alexandre Herculano, O Bispo Negro (1830)
terça-feira, 26 de agosto de 2008
RENASCIMENTO LUSITANO – MODELO (PROSA)

JUNTO AO CHRYSUS
[…]
De repente o grito de «Allah!» retumbou de além do Chrysus: seguiu-se um estridor de poucas frechas, e num instante os atalaias do campo viram alvejar fitas de escuma que se estendiam através do rio para a margem esquerda. Eram os esculcas que o cruzavam a nado, tendo empregado na dianteira dos godos os seus primeiros tiros.
Uma nuvem de setas respondeu ao sibilar das dos esculcas arábes; algumas das fitas de escuma ondearam, derivaram pela corrente e desvaneceram-se no dorso escuro e cintilante das águas. O Chrysus recolhia os primeiros despojos de um terrível combate.
Na principal atalaia dos muçulmanos soou então uma trombeta; centenares delas responderam por todos os ângulos do campo a este convocar para a morte. Os esquadrões uniam-se com a rapidez do relâmpago e, abandonando o recinto das tendas, arrojavam-se para as margens do rio.
Os godos, porém, tinham a vantagem de caminharem ordenados e, por isso, haviam topado com a corrente antes que os seus contrários começassem a atravessar a planície fronteira. As frechas caíam sobre os árabes, que se aproximavam, como saraiva espessa; largas e sólidas jangadas, trazidas em carros puxados por mulas possantes da Lusitânia, baqueavam sobre a água e, desdobrando-se com engenhosa arte, cresciam até entestar com a margem oposta. Então, os melhores cavaleiros godos, curvando-se para diante, com o franquisque erguido, corriam para as pontes, vergadas debaixo do peso dos cavalos e dos homens cobertos de armaduras, e vinham bater em cheio nos corredores árabes, que, no meio das trevas, não podiam esquivar-se aos golpes do ferro inimigo. Já, nas bocas de algumas dessas estradas movediças, os cadáveres amontoados começavam a embargar os passos dos vivos; mas por outras, onde os árabes ainda mal ordenados e menos numerosos não tinham podido resistir ao ímpeto dos godos, golfavam torrentes de guerreiros, que, marchando unidos para uma e outra parte, acometiam de lado os árabes, os quais, feridos pela frente e pelas costas, vacilavam e retrocediam. Debalde a voz retumbante de Táriq sobrelevava por cima dos gritos de furor e de agonia de muçulmanos e cristãos. O número dez vezes maior dos godos tornava impossível a resistência, e a passagem do exército de Roderico para a margem esquerda do Chrysus só Deus a poderia impedir.
[…]
Eurico o Presbítero, Alexandre Herculano, Livraria Bertrand, Lisboa, 1979, pp. 90, 91.

DERRUBADOS OS PORTÕES DA MORTE
[…]
Biddy Early foi uma «sábia» famosa, e a árvore grande de Raheen um ulmeiro majestoso, junto ao qual muitas pravidades e algumas boas graças sucederam a diversas pessoas. Poucos sabem tanta coisa dos «outros» como Mrs. Sheridan, e se alguém a convencesse a revelar os seus conhecimentos e a praticar as curas que com «eles» aprendeu, seria também ela uma «mulher sábia», demandada talvez por peregrinos dos condados vizinhos. É, contudo, muito circunspecta, e foi necessário ganhar a sua confiança para vê-la expandir-se, com algum receio, não obstante, da ira dos «outros», e contar-nos, a mim e a uma amiga, os prodígios que lhes observara. Limitara-se, até aí, a contar-nos histórias que ouvira a terceiros, mas desta vez começou:
«Um dia, viva eu em Cloughauish, afogaram-se dois rapazinhos no rio. Um contava oito anos e o outro onze. E eu saíra pelos campos, enquanto as gentes procuravam os corpos no rio, e vi um homem vir subindo o campo de mãos dadas com os dois rapazinhos e levando-os não sei para onde. E viu o homem que eu me detinha e os observava, e disse: «Tem cuidado, não tentes tirar-mos (pois ele sabia que eu tinha poder para isso), pois tu mesma tens uma filha em casa, e se mos tirares nunca mais a verás a cruzar a porta.» E um dos meninos furtou-se-lhe e deitou a correr na minha direcção, mas pôs-se o outro de gritar-lhe: «Ó Pat, não me deixes sozinho!» Tornou atrás o menino e o homem levou-os consigo. Vi depois outro homem, e muito alto era este, e muito corcovado, que assim me olhava, com a geba mais alta que a cabeça; e trazia com ele dois cães, e vi logo aonde os levava e ao que ia com eles. E quando ouvi dizer que os corpos estavam sendo expostos, acorri à casa onde estavam para mirá-los, e não eram certamente os corpos dos rapazes os que ali jaziam, mas os dois cães que haviam sido postos em seu lugar. Conheci-os por uma espécie de listas que havia neles, quais as que há nas coberturas dos enxergões. E bem sabia eu que os rapazes não podiam estar ali, após ter visto que os levavam. E foi por esses dias que perdi o olho, de algo que lhe sobreveio, e nunca mais me assistiu a vista dele.»
Os «outros» são muitas vezes descritos como envergando roupas às riscas, como é o pêlo dos cães às riscas.
As histórias da gente do campo sobre os homens e as mulheres levados pelos «outros» derramam uma luz claríssima sobre as muitas coisas dos velhos poemas e fábulas celtas e, quando mais histórias forem recolhidas e comparadas, provável é que modifiquemos algumas das nossa teorias sobre a mitologia celta. Os antigos poetas e efabuladores celtas dispuseram de esplêndidos símbolos e analogias, agora defuntos, mas as mesmas coisas sobre que escreveram são as de que os homens e mulheres do campo falam junto à lareira.
[…]
Lady Gregory & W. B. Yeats, 1898
In As Tribos de Danu, Escritos sobre a tradição e a mitologia irlandesa, W. B. Yeats, Usus Editora, Lisboa, 1995, pp. 162, 163. Prefácio, selecção, tradução, notas e glossário de Francisco Luís Perreira.
segunda-feira, 4 de agosto de 2008
Cadernos de Agostinho da Silva (excertos)
A morte de D. Pedro V, em que Herculano pusera todas as esperanças, agravou-lhe a visão pessimista quanto às possibilidades nacionais; como acontecia no campo económico com o livre-cambismo, um patriotismo bem marcado do tempo impedia Herculano de pensar em Portugal como integrado num conjunto onde fosse mais fácil encontrar dirigentes em número necessário; é o que vai corrigir Antero com o seu pensamento socialista e ibérico; mas faltava em Portugal, para que realmente o salvasse de uma ruína iminente, quem juntasse à larga visão de Quental e à inquebrantável energia de Herculano os dotes políticos que nenhum destes possuiu.
Não pensava, porém, em recuar, nem foi desistência nenhum dos seus actos; fez parte da vereação de Belém em 54, reclamou a constituição de Caixas Agrícolas para que se melhorasse a agricultura, e se fizessem escolas, e mesmo depois do conflito na Academia, que o impediu de continuar os Portugaliae Monumenta Historica, em que coligia os textos portugueses medievais, não deixou de se ocupar dos estudos históricos, procurando materiais para o V volume da História de Portugal, nem se desinteressou dos problemas públicos: em 66 defende o casamento civil, mostrando-o dentro das tradições nacionais e das leis eclesiásticas, em 71, quando o julgavam ocupado já de todo com os trabalhos agrícolas, protesta contra o encerramento do Casino, onde Antero e os companheiros realizavam as suas conferências; o seu interesse pela juventude permanecia o mesmo e nenhum desiludido, nenhum céptico radical acredita nas possibilidades dos jovens; Vale de Lobos não foi um refúgio, a tebaida de um proscrito do mundo, mas uma base melhor de combate, porque, não o impedindo de escrever, lhe dava mais fundo conhecimento do povo actual, lhe permitia ensiná-lo na actividade agrícola que sempre olhara como primordial, e o afastava do meio corrompido, inútil e enfraquecedor da capital; Herculano não acredita nem no escol da nação nem na populaça sempre pronta a seguir o político mais hábil em palavras e mais fértil em empregos: mas acredita no povo, na gente tenaz, sóbria, calma, generosa, optimista, cheia de inteligência prática e de bom senso, que formara outrora um país modelar e era capaz, se encontrasse bons chefes, de voltar ao nível de vida dos tempos antigos.