A Águia, órgão do Movimento da Renascença Portuguesa, foi uma das mais importantes revistas do início do século XX em Portugal. No século XXI, a Nova Águia, órgão do MIL: Movimento Internacional Lusófono, tem sido cada vez mais reconhecida como "a única revista portuguesa de qualidade que, sem se envergonhar nem pedir desculpa, continua a reflectir sobre o pensamento português". 
Sede Editorial: Zéfiro - Edições e Actividades Culturais, Apartado 21 (2711-953 Sintra). 
Sede Institucional: MIL - Movimento Internacional Lusófono, Palácio da Independência, Largo de São Domingos, nº 11 (1150-320 Lisboa). 
Contactos: novaaguia@gmail.com ; 967044286. 

Donde vimos, para onde vamos...

Donde vimos, para onde vamos...
Ângelo Alves, in "A Corrente Idealistico-gnóstica do pensamento português contemporâneo".

Manuel Ferreira Patrício, in "A Vida como Projecto. Na senda de Ortega e Gasset".

Onde temos ido: Mapiáguio (locais de lançamentos da NOVA ÁGUIA)

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quarta-feira, 25 de junho de 2008

INTANGÍVEL

"B. Os velhos são hoje considerados pelos outros como problemas para a medicina, são transferidos para qualquer casa de saúde ou para qualquer hospital geriátrico...

A. Porque necessitam de cuidados, não podem tratar-se a si próprios.

B. Não, porque não podem fazer nada. Hoje, nos Estados Unidos, os velhos são refugos humanos e, naturalmente, comportam-se como tal. Existem outras sociedades em que as responsabilidades aumentam com a idade, onde aquilo a que hoje chamam gaguez senil é considerado digno de atenção, onde os jovens aprendem com a experiência dos seus antepassados...

A. ...temos os historiadores para isso.

B. E que fazem os historiadores? Obtêm subsídios para urdirem histórias orais, ou seja, histórias relatadas por aqueles que sobreviveram aos acontecimentos decorridos ao longo do tempo. Seria melhor ouvir estas narrações directamente, sem o filtro de um intelectual interposto entre as fontes e os que aprendem."


Paul Feyerabend, Diálogo sobre o método, Lisboa, Editorial Presença, 1991, p.15



O Avô era um assíduo contador de histórias. Recordo os serões em volta das brasas, no rude inverno transmontano. Derretia-nos na boca o açúcar dos “Rebuçados da Régua”. Havia sempre “Rebuçados da Régua” nos seus bolsos… Não nos cansávamos de ouvir (pela enésima vez) aqueles relatos cheios de personagens fantásticas, de feitos ora engraçados, ora grandiosos. Vô, conte a do Pires… A do Pires não, Vô, conte antes a da Espingarda dos Sete Tiros!... A figura central daqueles serões era o Avô. Não as crianças, não os adultos, mas o Velho. As suas histórias, sabiamo-las de cor, mas nunca perdíamos a oportunidade de o ouvir contá-las. Faziam e fazem parte do património familiar. Património intangível mas precioso.


Africa loses a library when an old man dies.

Amadou Hampaté-Bâ

segunda-feira, 16 de junho de 2008

MÁGOAS


Eu nunca tinha lido o Diário XII de Miguel Torga quando a barca de Caronte levou esse homem grande da língua portuguesa, que pagou o seu óbolo deixando à eternidade dos homens a sua obra. Doeu-me quando o seu olhar, reconhecidamente duro e inflexível, há mais de quarenta anos varreu os espaços que eu conheci: «Escrevo diante da paisagem feia para que abri os olhos... embondeiros disformes, edemaciados, monstruosos... mamoeiros esgrouviados, sintéticos, de testículos ao pescoço...» O deserto, «um mundo seco, estéril, asséptico... um mundo onde nenhum poema de esperança teria sentido...»

Como é possível que alguém tivesse pousado os olhos no meu mundo de menina, no mundo de sonho de muitos que nem lá nasceram, e pudesse sentir essa repulsa, essa rejeição instantânea a uma natureza que apenas peca por ser diferente das penedias rudes e também estéreis da região transmontana? Miguel Torga olhou com os olhos da alma, com o corpo dorido de um Portugal esvaído por mor de uma terra estranha, como os sogros olham um intruso que entrou na família mas não tem o seu sangue.

Como Camus sentiu na sua alma a terra que o criou – «J’ai mal à l’Algérie comme d’autres ont mal au poumon» – também a mim me dói Angola. E os meus sentidos obrigam desde logo a trocar na ortografia o e pelo i ao escrever imbondeiro, porque a grafia com e o torna logo mais identificado com um olhar que não é o meu; e fazem acudir a textura e o sabor impar da papaia; e obrigam a cerrar os olhos e ter a ilusão de descer a Leba a caminho da imensidão do Namibe e escrever como aos treze anos: Sou filha da negra África / brotada da terra inculta / e sinto que em mim se oculta / o trago que a torna única...

Para além das imagens de destruição e miséria que nos vão chegando, para além do que se publica sobre o mercado Roque Santeiro, sobre as mansões, os apartamentos de luxo que crescem por entre os musseques dos que em nome da liberdade defraudam todo um povo e espoliam uma terra pródiga, para além das palavras doutas de Miguel Torga, há uma África que foi parte integrante de Portugal, e não sei se é inteiramente justo para as gerações do presente que não seja mostrado o que foram essas províncias portuguesas em África. O bom e o mau, não regateio. Há documentos, e há ainda documentos humanos vivos, mas por pouco tempo, que as gerações morrem.

Também minha mãe foi quase transmontana e levou para longe as únicas recordações que lhe permitiram os seus parcos anos, as festas da Senhora dos Remédios. De meu pai recebi a saudade da sua Bairrada que ele nunca quis rever, mas que fez crescer em mim como se eu fora realmente filha das terras que ele me deixou da herança de seus pais, e em mim cultivou este imenso amor pelo idioma que eu encontrei aqui tão maltratado.

Registo, à laia de conclusão, algumas passagens das memórias que me deixou meu pai, da terra a que entregou a sua vida desde 1920, a que deu tudo, e onde está sepultado: «Lá vi a minha impotência... vi demonstrações de força, de cobardia, de suborno; vi a brutalidade do branco para o preto, a alma vil a descoberto (…) O mal vem de longe. A perseguição sistemática iniciada aos construtores de Angola vem de muitos lustros atrás. Não houve nada que não fizessem para mergulhar isto num caos. Não é com armas nem com leis que se constrói, que se eleva um património. Eleva-se e consolida-se com amor e persistência. As sanguessugas e os esbirros levam a revolta, podem construir pelo terror, mas não conservam. Com o látego as famílias dissolvem-se, não se consolidam. Amar Angola é amar Portugal, amar Portugal nem sempre é amar Angola.»

domingo, 15 de junho de 2008

O VELHO

“...pode dizer-se que um lavrador do nosso Douro ou Trás-os-Montes tem mais saber implícito na sua linguagem que qualquer indivíduo mais ou menos literalizante...”

Leonardo Coimbra*



Com as mãos calejadas e já acentuadamente deformadas pela artrite e pelos anos, o Velho manuseia habilmente a tesoura. A poda já está no fim, e de vez em quando ele olha para trás, contemplando o vinhedo que antes de ser seu foi de seu Pai, e antes deste, de seu Avô. Longe vão os tempos de fome trazida pelo míldio e o oídio, ou pela filoxera. Hoje o vinhedo estende-se, cheio de saúde, garantindo todos os anos boas vindimas. Paciente, o Velho continua a sua tarefa. Cada cana é por ele examinada com atenção para escolher o local exacto onde é desferido o golpe. Atrás de si, as borracheiras, nome dado às canas podadas, alinham-se como um exército vegetal em repouso retemperador de forças para o novo combate que se avizinha. Ano após ano, o ritual é executado com os mesmos gestos. Nem o Velho sabe como faz para determinar quais as canas a serem cortadas, e onde as corta. Aprendeu era ainda um gaiato, assim que trocou os bancos da Escola pelos corredores de terra ladeados pelas parras e cachos perfumados. Aprendeu vendo fazer. Aprendeu porque queria fazer, imitar o seu Pai. Seguia-o enquanto podava, em silêncio, que o seu pai era Homem de poucas falas. Mas absorvia tudo o que via. E assim que a sua mão atingiu o tamanho que lhe permitiu segurar firmemente na tesoura, começou a ajudar. Desde então, não houve um ano que não o fizesse. Agora, tantos anos depois, é com uma mágoa serena que observa estes socalcos. Atrás de si, nunca teve quem andasse. Ninguém aprendeu consigo os gestos, ninguém ao aprender os gestos se apaixonou como ele pela terra. Nem filhos, nem netos irão, um dia, percorrer estes socalcos, cana por cana. Quando a Morte o levar (e, sabe-o bem, não tardará muito, sente-o nos ossos e na alma), o seu amado vinhedo será vendido. Não mais o seu sangue avidará neste chão. Encolhe os ombros e diz, de si para si: “Paciência”. A vinha perdurará. Não sabe bem porquê, mas nesse momento, só isso lhe parece importante.




"O Doiro sublimado. O prodígio de uma paisagem que deixa de o ser à força de se desmedir. Não é um panorama que os olhos contemplam: é um excesso da natureza. Socalcos que são passadas de homens titânicos a subir as encostas, volumes, cores e modulações que nenhum escultor, pintor ou músico podem traduzir, horizontes dilatados para além dos limiares plausíveis da visão. Um universo virginal, como se tivesse acabado de nascer, e já eterno pela harmonia, pela serenidade, pelo silêncio que nem o rio se atreve a quebrar, ora a sumir-se furtivo por detrás dos montes, ora pasmado lá no fundo a reflectir o seu próprio assombro. Um poema geológico. A beleza absoluta."

Miguel Torga**





* excerto de
“Em louvor das maiorias”, in A Tribuna de 13 de Maio de 1920
** in Diário XII

Foto retirada daqui.