E porque devem os médicos ser tratados de maneira diferente dos nossos professores, muitos dos quais não tem vida familiar normal por causa das colocações a que estão sujeitos?
Donde vimos, para onde vamos...

Ângelo Alves, in "A Corrente Idealistico-gnóstica do pensamento português contemporâneo".

Manuel Ferreira Patrício, in "A Vida como Projecto. Na senda de Ortega e Gasset".
Onde temos ido: Mapiáguio (locais de lançamentos da NOVA ÁGUIA)
sábado, 23 de agosto de 2008
Os médicos em Portugal são uma casta privilegiada?
E porque devem os médicos ser tratados de maneira diferente dos nossos professores, muitos dos quais não tem vida familiar normal por causa das colocações a que estão sujeitos?
quarta-feira, 9 de julho de 2008
A TERRA DO FIM
Dedicado ao Renato Epifânio

Ó necrópoles, citânias: terras... e
As pátrias que se escondem nelas.
Terras sem a pata em cima mais
O lume nas alturas a crepitar nas lajes,
Nas águas santas que cantam e fluem
Na raiz antiga de povos indomáveis.
Os castros, as casas para ler na pedra,
O grito valente do falcão peregrino.
Ó Lima, ó Limaia, ó Lethes!
Canta, canta agora o que é eterno:
Os castelos nas arribas, as torres de sino,
Os homens de rostos férreos e limpos,
A vozearia do vento nocturno, o raio,
As terras livres para o cão e o cavalo!
Os homens mudaram-se, a noite ficou.
Por isso canta, bardo canta, abre o peito e
Glorifica o ventre materno do chão!
A única pátria é o sangue, a memória,
A tua palavra forte que fala do sangue.
Lord of Erewhon
terça-feira, 1 de julho de 2008
O MANSO
O gado não conhece os dias da semana, e o milho quer ser regado. Oh manso… chega-te p’ra lá, o cabanão inda vai alto… Enche o gamelo de palha seca e fica a ver o boi com orgulho de pai que soube criar um filho. Não há animal assim nos arredores, e cobridor… há-de render bom dinheiro!
Monta o carro de madeira, ajeita o chapéu na testa molhada pelo suor que já nem sente, ohoooo Manso, fiuuu, anda, omessa, mexe-te…
domingo, 29 de junho de 2008
Postal

A teus pés, as teias de emaranhados desenhos. Recortes imprecisos impressos. A sangue, sim a sangue que fura o linho que tanto coses. Mulher que penduras na linha, o pão dos famintos. Um ponto uma flor vazia refeita. Um ponto numa mulher já feita. Na alvura do tecido tocada, as mãos lesadas pelo útero. Gasto que de sóis levantes se acabam. Viúvas que se cosem entre ambas no gemido carpido ao vazio. Viúvas de rosetas que se formam na vista turva. Viúvas da fome passada. Melodias bradadas na doença. Amarela. Virulenta. Amarela. Purulenta. E vieram eles, com a sua alvura. Eles, corsários de grinaldas enlameadas. E no engano do conto do ponto, levaram-nas. A vós, mulheres de mãos precisas. Escravas, escravas, da arte caseada pela pobreza.
Nota: No texto são mencionados alguns pontos de bordado Madeira, para além dos referidos: caseados, viúvas, e rosetas, existem também: as bordaduras em grinalda, filas de ilhós, garanitos, estrelas e cavacas. São estes pontos os que mais caracterizam este árduo trabalho.
1 in "Memórias do Funchal - O Bilhete-Postal Ilustrado até à Primeira Metade do Século XX" de José Manuel Merlim Mendes.
quarta-feira, 25 de junho de 2008
LOBA
Em tempos há muito idos, ela tinha sido uma menina bonita como muitas. Quis a má sorte e a falta de saber que um porco lhe tivesse comido a mão com que estendia algo para o bicho comer...
Cresceu sem ter o privilégio de casar, ajudou a criar os filhos dos outros, ouviu os amores e desamores das outras, cresceu amarga e depressa a sua cara de menina sorridente se transformou na face engelhada com que havia de morrer...
Nunca ninguém se perguntou se ela desejava algo, para todos era evidente que ela trazia o sinal do mal e que quanto a isso só o sinal da cruz faz algum efeito. Chamaram-lhe preguiçosa e ladra, uma mulher daquelas não podia ser nada de bom...
Com o tempo e com a maldade ganhou o nome de Ti Loba, tão predadora as pessoas a achavam... Deve de ter sido num dia cinzento em que apenas o peso do céu se reflectia na água. Atirou-se para a ribeira quando esta estava cheia das chuvas no sítio do Pé de Negro e foi lá que a encontraram a boiar já sem vida.
O Padre foi piedoso, disse que fora um acidente, foi enterrada em terreno abençoado mas o medo que sentiam dela em vida só veio a intensificar-se com a sua morte...
Contam-se histórias da possessão de uma bela jovem, contam-se histórias de exorcismos e de Padres e familiares em pânico, dizem que ela voltou em forma de cão, espera-se que ainda volte para se vingar das boas pessoas suas vítimas e seus descendentes...
A última vez que estive no Poço do Pé de Negro, no meio das silvas que mal deixam vislumbrar o grande espelho de água não consegui sentir o mal. Senti a tristeza do abandono e a culpa dos que fazem o sinal da cruz quando por ali passam...
Acho que a Ti Loba nunca vai voltar, por mais que isso fosse confortável para os vivos. É que há oportunidades que só se têm uma vez...
aestranha
quarta-feira, 18 de junho de 2008
BARQUINHO DE PAPEL

Tinha ido ao Bairro. (Por “Bairro” entendo eu, desde miúda, a “Casa do Bairro”, propriedade de uma minha tia avó muito querida).
Que tem muito que contar…”
– Mas, sabes, se queres descobrir Novos Mundos, não devias ir só com uma nau. Devias levar várias. Assim… como uma armada, sabes o que é?
segunda-feira, 16 de junho de 2008
MÁGOAS

Eu nunca tinha lido o Diário XII de Miguel Torga quando a barca de Caronte levou esse homem grande da língua portuguesa, que pagou o seu óbolo deixando à eternidade dos homens a sua obra. Doeu-me quando o seu olhar, reconhecidamente duro e inflexível, há mais de quarenta anos varreu os espaços que eu conheci: «Escrevo diante da paisagem feia para que abri os olhos... embondeiros disformes, edemaciados, monstruosos... mamoeiros esgrouviados, sintéticos, de testículos ao pescoço...» O deserto, «um mundo seco, estéril, asséptico... um mundo onde nenhum poema de esperança teria sentido...»
Como é possível que alguém tivesse pousado os olhos no meu mundo de menina, no mundo de sonho de muitos que nem lá nasceram, e pudesse sentir essa repulsa, essa rejeição instantânea a uma natureza que apenas peca por ser diferente das penedias rudes e também estéreis da região transmontana? Miguel Torga olhou com os olhos da alma, com o corpo dorido de um Portugal esvaído por mor de uma terra estranha, como os sogros olham um intruso que entrou na família mas não tem o seu sangue.
Como Camus sentiu na sua alma a terra que o criou – «J’ai mal à l’Algérie comme d’autres ont mal au poumon» – também a mim me dói Angola. E os meus sentidos obrigam desde logo a trocar na ortografia o e pelo i ao escrever imbondeiro, porque a grafia com e o torna logo mais identificado com um olhar que não é o meu; e fazem acudir a textura e o sabor impar da papaia; e obrigam a cerrar os olhos e ter a ilusão de descer a Leba a caminho da imensidão do Namibe e escrever como aos treze anos: Sou filha da negra África / brotada da terra inculta / e sinto que em mim se oculta / o trago que a torna única...
Para além das imagens de destruição e miséria que nos vão chegando, para além do que se publica sobre o mercado Roque Santeiro, sobre as mansões, os apartamentos de luxo que crescem por entre os musseques dos que em nome da liberdade defraudam todo um povo e espoliam uma terra pródiga, para além das palavras doutas de Miguel Torga, há uma África que foi parte integrante de Portugal, e não sei se é inteiramente justo para as gerações do presente que não seja mostrado o que foram essas províncias portuguesas em África. O bom e o mau, não regateio. Há documentos, e há ainda documentos humanos vivos, mas por pouco tempo, que as gerações morrem.
Também minha mãe foi quase transmontana e levou para longe as únicas recordações que lhe permitiram os seus parcos anos, as festas da Senhora dos Remédios. De meu pai recebi a saudade da sua Bairrada que ele nunca quis rever, mas que fez crescer em mim como se eu fora realmente filha das terras que ele me deixou da herança de seus pais, e em mim cultivou este imenso amor pelo idioma que eu encontrei aqui tão maltratado.
Registo, à laia de conclusão, algumas passagens das memórias que me deixou meu pai, da terra a que entregou a sua vida desde
domingo, 15 de junho de 2008
O VELHO
“...pode dizer-se que um lavrador do nosso Douro ou Trás-os-Montes tem mais saber implícito na sua linguagem que qualquer indivíduo mais ou menos literalizante...”
Leonardo Coimbra*

"O Doiro sublimado. O prodígio de uma paisagem que deixa de o ser à força de se desmedir. Não é um panorama que os olhos contemplam: é um excesso da natureza. Socalcos que são passadas de homens titânicos a subir as encostas, volumes, cores e modulações que nenhum escultor, pintor ou músico podem traduzir, horizontes dilatados para além dos limiares plausíveis da visão. Um universo virginal, como se tivesse acabado de nascer, e já eterno pela harmonia, pela serenidade, pelo silêncio que nem o rio se atreve a quebrar, ora a sumir-se furtivo por detrás dos montes, ora pasmado lá no fundo a reflectir o seu próprio assombro. Um poema geológico. A beleza absoluta."
* excerto de “Em louvor das maiorias”, in A Tribuna de 13 de Maio de 1920
** in Diário XII
Foto retirada daqui.