1ª Parte – Capítulo VII
Demorou pouco, porém o suficiente para começar a sentir-se incomodado fisicamente. Logo o assistente, de jeito afável e solícito, o ajudou a levantar para regressar ao cubículo onde tinha deixado a sua roupa. Esperou ainda algum tempo e logo a seguir o outro exame, menos confrangedor.
Já na recepção, foi informado de que os resultados da ecografia e da TAC só estariam prontos na semana seguinte. Teria ainda de vir em jejum retirar sangue para análises diversas. Outra coisa que o constrangia, sem compreender como não tinham ainda inventado uma forma menos mórbida de fazer essa extracção. Claro que é uma questão de somenos, sangue é vida, deveria ser olhado naturalmente, mas não era o único – sabia-o – para quem a visão do líquido pastoso e vermelho fervilha no cérebro mais no sentido da morte. Depois era sempre uma agulha enorme, uma seringa amplíssima, só de pensar naquele instrumento a perfurar a pele provocava-lhe arrepios, quando não lhe dava a volta ao estômago.
Amanhã não podia ser, era dia de reuniões; logo a primeira, reunião geral às nove, nunca se sabe a que horas termina, nem pensar, talvez no dia a seguir. Anotou as datas na sua agenda de trabalho.
Entrou no carro e, distraidamente, ligou o rádio. Pensou aproveitar e passar no supermercado, há sempre alguma coisa a comprar, mas a música que ouvia agradou-lhe e resolveu escolher o caminho mais longo para chegar a casa, conduzindo brandamente. Felizmente havia já boa música portuguesa. Alguns grupos dedicavam-se à pesquisa e recriação de dizeres e cantares de antanho e o resultado era admirável. Não sabia os nomes nem se preocupava em identificá-los; aquela voz feminina era vibrante e de timbre melodioso a sobressair dos sons de cordas e tímbalos bem cadenciados. Era leigo na matéria, mas sabia ouvir com a alma.
Continuou em direcção a casa, deixando as compras para outra altura. Queria mesmo não pensar em nada, ser capaz de parar o rio dos pensamentos que lhe povoavam as entranhas. Tinha trabalho a fazer para a escola, que o Verão chegava ao termo e a preparação do novo ano lectivo já começara. Organizava um guia do professor, tentando colmatar algumas falhas que se repetiam ano após ano com o desconhecimento das normas da instituição pelos novos professores que sempre chegavam; calendarizava as semanas e dias de cada período, reunia materiais e programas para as planificações habituais, preparava já os testes de diagnóstico. Este ano não entrava na comissão de horários, sentia-se demasiado cansado para conseguir a concentração necessária para essa tarefa. Lá ia o tempo em que, com verdadeiro afã, preparava a chegada dos novos elementos vindos de outras escolas. Um piquenique na Serra, na Fonte Mariana, nos Olhos d’Água, almoço num restaurante, raras vezes. A seguir, um passeio pelos lugares à volta, donde provinham as crianças normalmente mais carenciadas, que necessitavam de maior apoio, quer a nível pedagógico, quer económico, e nem sempre bem referenciado. Havia que estar atento e o conhecimento dos locais de origem das crianças pelos professores e, principalmente, pelos directores de turma, era fundamental na detecção de falhas nas crianças. Quantas tinham de levantar-se de madrugada para apanhar o autocarro e estar a horas do primeiro tempo na escola, muitas vezes sem pequeno-almoço tomado, sonolentas de uma noite mal dormida, mal aquecida, sem a higiene devida.
Deu o sinal horário na Antena 1 e o noticiário abriu com uma série de dislates proferidos pelo Senhor da Ilhas. Sem lhe discutir o conteúdo, mas a forma, e apenas a forma, como educador, aquilo pareceu-lhe mentira; não podia ser verdade o que os seus ouvidos escutavam. Num repente sentiu o vazio da sua profissão, ali pôs em causa todo um percurso de vida. Ser professor não era para ele mera profissão, era entregar-se por inteiro, mostrar-se tal como sentia, como o baobá daquele conto africano que gostava de ler aos seus alunos. Era ensiná-los a viver, a colher, a ser, como o lebrão, alegres e irreverentes e curiosos e espantados e sinceros e doces e carinhosos e caridosos e também perspicazes para conhecer as hienas... ser professor era ser exemplo na hombridade e no carácter, era ser rei. E ser rei era ter sangue vermelho nas veias, era lutar na frente de combate, era ser respeitado porque mais experiente, mais sabedor, mais compreensivo e também humilde para ouvir os outros, mas com força para impor a lei.
Hoje as leis não se cumprem porque as há em excesso e a quantidade reduz a qualidade; depois, perde-se demasiado tempo a escrever sobre elas. Pouco se faz por intuição, por vocação, por amor. Tudo é obrigação, tudo é contabilizado para ser pago. Foi-se o tempo da permuta, da troca de bens, tudo se vende por dinheiro. Mesmo os sacerdotes têm ordenado para dizer missa, que não para encaminhar as almas que os não procuram já. Assim se cumpre o segundo milénio de cristianismo que já não tem lugar porque se perdeu na bruma do progresso que tudo altera, qual a humidade que penetra nos ossos e nas máquinas ali criando a ferrugem que mina e destrói.
Circulava em via de tolerância zero, que ele já desrespeitava com o ponteiro a ultrapassar os noventa, e os carros que vinham atrás passavam e zarpavam, desaparecendo a breve espaço. Nas auto-estradas quem respeita o limite? Ninguém, e ninguém é punido por isso. Passam as motos a velocidades estonteantes, ziguezagueando por entre os carros; passa o ministro, passa porque tem pressa, os guardadores da lei abrem caminho. Passa porque é ministro, passa porque tem trabalho, passa porque tem de chegar a tempo, passa e não respeita a lei. Aprova a lei mas para os outros, que ele está acima das que propõe e aprova. Para os outros.
Accionou o pisca-pisca e saiu da estrada principal, virou no meio de pinheiros e mimosas, um eucaliptal a seguir. Extenso, fundo, quase a lembrar os que davam apoio ao CFB na sua terra, relativamente, claro, mas doía-lhe ver tudo cercado de eucalipto, a minar a terra e os lençóis de água deste país ameno, cobrindo os campos outrora território de pinheiros. Os fogos chegam mais facilmente, trepando das ervas pelos troncos secos e folhosos do eucalipto, cedo atingindo os cumes e logo propagados num ápice. Será que ninguém entendia isto? Governos atrás de governos, de centro direita e de centro esquerda, nenhum tocava no óbvio, era difícil prescindir do reverter de milhões das companhias de celulose.
Um pouco mais e estava em casa. Entrou na garagem vazia, sinal de que estaria só por algum tempo. Sentia-se cansado, muito cansado e soube-lhe bem o silêncio. Subiu as escadas e a cada degrau as têmporas doíam mais forte; a respiração longa e compassada deixava sentir o sangue em sobressalto correndo desvairado dentro de si. Precisava parar, não pensar, não sentir, não ouvir-se. Tomou um ansiolítico com um copo de leite quente e estirou-se no sofá.
(segue)
5 comentários:
Continuo a ler-te com imenso prazer.
Beijinho.
Hoje eu cliquei na etiqueta MEMÓRIAS DO ESQUECIMENTO li os sete capítulos da primeira parte numa tacada só.
Está muito bom mesmo!
Aguardo os próximos.
Beijos.*
Bem hajam pelo vosso apoio e carinho.
Beijinhos
;-)
Gostei muito do texto.
Mas também de que não gostasse nada destes métodos grosseiros, e que além do mais fazem tantos danos, que ainda usam na medicina tecnologica.
Dá só vontade de fugirmos do corpo.
Do nosso sagrado e holistico ser.
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