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1ª Parte – Capítulo III
Que há valores, sabia-o bem. Mas valores, outros valores. Que valores? Valores são sonhos. Sonhos são fantasia, falsidade, logro. Têm uma conotação aliciante, aprazível, porque é algo que se deseja e só se anseia pelo que nos parece bom. Concretizam-se sonhos? Não. Nunca. Um sonho nunca deixa de o ser porque consiste num devaneio, numa ficção, porque é etéreo, porque não existe. Ainda. Quando acontece, acaba. E nunca é idêntico. Só serve para nos guiar e para nos fazer suportar a existência. O sonho é o tempo do devir e o tempo não existe. O tempo, somos nós. O tempo é a vida que passa. A vida não permanece. É. Passa. Flui. Quando se olha para ela, já acabou.
Revisitando a sua terra, cinquenta anos depois de África, seu pai viera mostrar aos filhos a herança dos avós que deixara intacta no final da Primeira Guerra, quando fizera as partilhas antes de abalar para responder à chamada dos irmãos mais velhos. A sua parte ficara à guarda da única irmã que permanecera na terra, já mãe de alguns filhos e doutros mais que viriam; terras de cultivo e olivais, para os ajudar a criar. Mas os pinheiros, ninguém lhes tinha tocado, nunca haviam sido resinados. A confirmação deste facto era-lhe sucessivamente assegurada após as viagens «de graciosa» de familiares. Em Vale de Cerejeira e nos Castanheirinhos, deixara-os já da altura de uma casa, agora, o abraço de um homem não chegaria para os contornar. E abria os braços desvanecido, enquanto acrescentava que, na Metrópole, os pais cortam os pinheiros que recebem de herança para construírem o seu início de vida, e logo plantam novos para que os filhos por sua vez os cortem e replantem de novo. Um corte de pinhal em cada geração, pois. Para os seus, porém, guardara ele orgulhosamente os dos avós: altos, vetustos, incólumes...
Só que a realidade foi diferente, e quando se deparou com ela, a certeza bateu forte. Resinados ano após ano, eventualmente replantados, haviam crescido esguios e frágeis. Cinquenta anos de ausência fora demasiado tempo e aqueles cortes na casca até bem alto, sentiu-os no coração já cansado de muitas labutas. Depois, ver sua irmã extremosa envelhecida, mais do que isso, velha e mirrada, descalça, já sem grande tino, foi outro choque. Aquela menina única que sua mãe não queria no campo, aquela irmã que o embalara e de quem se sentira sempre o irmão preferido, aquela irmã que se encheu de filhos, mais do que poderia manter a sua dignidade de mulher… por isso mergulhara na herança de seu irmão, que outros forçaram a que pensasse não voltar a ver, por isso deixou lancetar a carne dos pinheiros, deixou escorrer deles a seiva que era o sangue do seu menino de outros tempos. Só que ela não o sabia.
Ele também não questionou. Só desejou regressar rapidamente à sua terra, a terra de adopção que escolhera como sua, mas nem teve forças para chegar a casa. Oito dias no «Infante» a olhar as ondas da vida nas madrugadas na proa, o coração quieto ou em intenso pulsar, as cartas escritas com a alma a desfalecer, assim aportou à baía de Luanda. Mas já não conseguiu subir ao planalto.
Quisera viver um último sonho, e mal abriu os olhos, a vida parou.
(segue)
3 comentários:
Continuo, embevecida, a ler estas memórias.
Beijinho.
O modo como cruzas memórias, tempos e lugares nesta prosa exímia faz sombra a muita gente com livros publicados.
Beijinho.
O sonho é o tempo do devir e o tempo não existe.
Brutal. Crú. Soberba lucidez.
Muito bom, como se esperava. Fico à espera de ler mais.
Beijo*
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