1ª Parte – Capítulo II
O sonho de uma noite é por vezes tão real na madrugada chuvosa que daria um daqueles quadros surrealistas o seu relato. Gravar não é preciso, iria sobrecarregar o disco rígido com memória já tão pesada. Só aumentando os RAM. Mas o tempo agora é de repouso, há que digerir e arrumar os ficheiros.
O gorgolejar da gasolina a entornar pelo funil largo – escoando de um garrafão guardado há meses ad hoc – ainda ressoa nas minhas noites, o sangue ainda circula mais quente e os músculos ainda traem a firmeza das mãos. O abraço longo e cheio de lágrimas à Sofia, a mulher leal que connosco partilhara os anos da criação dos filhos e as também últimas recomendações: os muitos envelopes selados com a direcção da aldeia natal, escreva, vá dando notícias… venha ao menos ver a casa… se venho eles matam-me, senhor, tenho de fugir, ir no mato…!
Já a caminho do aeroporto, deixadas as ruas largas de moradias abandonadas, algumas marcadas já de guerra com furos de balas nas paredes, jardins sem dono, queimados pelo longo cacimbo que mal chegara ao fim, a obstrução súbita da viagem por homens de fato camuflado, armados de G-3. Olhos baços e ensanguentados no rosto escuro, adiante a metralhadora feita braço a ordenar a saída do carro, o remexer na mala traseira, o terror estampado nos rostos das crianças afundadas no banco de trás, os próprios movimentos mecânicos, de reacção contida, o ar sem entrar nos pulmões, parado o sangue, muda a voz, o agora, o sempre, o nunca mais…
A palidez veio em seguida, esgotadas as forças, já com o carro estacionado a esmo, entre tantos outros no meio do capim circundante ao exterior da aerogare, antes de retirar os trinta e cinco quilos a que cada um tinha direito ao entrar no avião. De toda uma vida, trinta e cinco quilos. De quê? Agasalhos para o Inverno europeu, os livros de cabeceira, os discos da mocidade, o tractor do garoto, o chorão da filha, as pratas herdadas, os álbuns das fotos, das crianças, dos meus cinco anos de tropa, da minha infância... o que é mais importante? O que vai ser importante? Que futuro? Que força vai ser necessária para o equilíbrio de todos nós?
O aeroporto é um mar de gente. O chão de cimento coberto de caixas, malas, grades, colchões, crianças dormindo, pessoas estiradas, novos, velhos, doentes, sãos, todos cansados, despenteados, desordenados, desnorteados, refugiados vindos de Malange, fugidos à guerra. Outros encheram já os hospitais, as escolas primárias, o liceu Norton de Matos, a industrial Sarmento Rodrigues, a preparatória Gentil Martins. Alguns tiveram tempo de trazer os seus animais, pássaros, gatos, cães enormes em caixotes pregados, prontos a embarcar. Embarcar? Não sei. O nosso voo seria dentro de poucos minutos.
Finalmente a caminho para a entrada do avião da ponte aérea, horas mais tarde, a mulher à frente com o pequeno mais novo pela mão, na outra o saco, seguíamos
Eu segui depois, encontrámo-nos no aeroporto em Lisboa, cada um a trocar cinco contos de réis em dinheiro da metrópole. As crianças não tinham direito sequer a esses valores.
(segue)
2 comentários:
Impressionante, o relato. Fico suspensa nas tuas palavras, esperando o resto.
beijo*
Estas memórias são um tesouro!
Beijinho.
P. S. Isto com umas fotos de época ficava um mimo...
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