1ª Parte – Capítulo I
A relva lisa e fresca, cortada rente, dava pouco refúgio para os insectos que uma arvéloa clara e fusiforme procurava para seu repasto. O dia estava claro e frio, a neblina da manhã mal disfarçava ainda o orvalho da noite e o velho, quase velho de corpo, quase jovem de espírito, olhava-a através dos quadrados da janela ovalada da clínica, reparando na inusitada presença daquela ave em reino de pardais. Desde que chegara de África, há quase trinta anos, fora a pouco e pouco perdendo a lembrança dos nomes dos pássaros da sua infância que povoavam os quintais de Angola: anduas, sacanjuères, catuituis, bicos-de-lacre, peitos-celeste, bigodes, andorinhas e morcegos ao entardecer. Mas o que recordava agora era que seu pai de adopção dizia que aqui também havia andorinhas. Que fugiam no Inverno do frio inóspito do hemisfério norte, para o lugar donde soprava o Suão que lhes dava alento, mas chegavam em todas as primaveras, mal acordavam os campos em pétalas rasteiras guardando nelas a cor do sol, mal brotavam dos ramos secos das árvores as primeiras flores, a prometer o fragrância, o deleite das primeiras frutas de Maio. Voltando às andorinhas, ele mal as via, salvo uma ou outra, aqui e além. Quando construíra a sua casa, tinha pensado em não deixar que elas lhe povoassem os beirais e que iria impedi-las logo aos primeiros indícios de construção dos ninhos, mas... qual quê, nem uma única se tinha dignado tentar a sorte. Melhor para si. Já lá iam primaveras, outros tantos verões e invernos, tinha até esquecido a inútil preocupação.
Com a idade, a reforma à porta, os filhos longe, iniciando caminhos, sentido inteiramente cumprido o lema paterno de dar-lhes em educação e instrução sempre algo mais do que havia recebido, esperava a chamada final, ao lado da companheira de sonhos e desesperos, de credos e vida. Que fosse breve para ambos, de preferência sem sofrimento. Afinal a vida não os tinha poupado, que os poupasse a morte.
Pelo interfone, uma voz chamou pelo seu nome e ele interrompeu os pensamentos, descendo à terra. Pôs os pés no chão: voltou a escutar o burburinho dos lamentos e queixumes das dores de cada um, as conversas sobre exames feitos, o recitar nomes de medicamentos já conhecidos e experimentados, as conversas íntimas. Bateu de leve à porta e entrou no quarto pequeno onde apenas cabia uma secretária, atrás um pequeno armário, o médico sentado que mal o olhou, apenas respondendo à saudação e apontando a cadeira
Ele só queria aliviar um pouco aquelas noites de invernia, em que os ossos mordiam devagarinho e espantavam Morfeu; e bem precisava de entregar-se naqueles braços para esquecer, só para esquecer. Depressão deveria ser o que sentia, realmente. Tanta coisa para fazer no mundo, coisas bonitas, coisas boas, coisas úteis, um espírito por vezes tão lúcido que doía. Só que o físico não acompanhava, que tristeza o corpo envelhecer... Quem sabe, um dia ainda voltava à sua terra.
– Hades dizer à tua mãe que nã te corte o cabelo tã curto...
– Parece uma cria abandonada, desses ciganos dum raio...
– Não amandes a bola ao chão, criatura!
Escutar o português da terra de seus pais, o linguajar que corresponde ao comum dos mortais afinal, despertava-lhe sensações estranhas que não conseguia coligir. Como arrumar dentro de si, a um tempo orgulho e humildade, desprezo e solicitude, mágoa e bem-aventurança?
O tempo dele passara. Tinha cumprido a vida. Era a hora de dar lugar aos novos, como dizia seu pai, o único pai que conhecera e amara. Tarde soube que não era o biopai, mas que interessava? Os valores, a referência, fora ele, o seu padrinho de baptismo que o aceitara como filho, aos sete meses de idade. Sentia agora as suas mãos enormes, de palma aberta a apertar a sua cabecita – que idade teria? – levantando-o por detrás enquanto cantava: tin...tin...tin...telhão!
Por vezes as saudades incendiavam-no. Como aquele cheiro de queimada que lhe enchia as narinas e o chamava para a caçada. Como o capim que ardia nas margens do rio quieto e traiçoeiro no ardor do cacimbo africano. Como o sol torrava o corpo na ilha quando pescava sobre as rochas e o empurrava a mergulhar nas vagas. Como as lágrimas doíam no morno escondido das pálpebras. Não fora a mulher e a dependência da reforma miserável que o esperava aqui, já teria regressado.
Regressar é sempre uma palavra difícil. Longa e difícil. Talvez depois, quando acabasse de vez o encantamento de ainda sentir a vida, fosse mais fácil o regresso. Não praticava qualquer religião, e morrer seria apenas repousar, nada mais do que isso. Repouso pressupõe bem-estar, tranquilidade, regresso ao limbo, o que no imaginário de cada um corresponde à imersão no líquido amniótico materno. O seu limbo seria a terra onde nascera. Por outro lado, sessenta anos é só pouco mais de metade da vida, neste início de século. Só que a globalização do planeta entregou ao novo milénio o vírus do vil metal, que outros antes citaram sem conhecerem a enormidade dessa vileza.
É preciso a morte para se dar sentido à vida e morrem poucos, poucos nascendo, devendo nascer e morrer muitos. Esta inversão que o Homem provoca é o cancro do planeta, ele é a célula a abater. Neste final de milénio ocorre-lhe lembrar o desejo atávico do ser humano de encontrar qualquer elixir maravilhoso que o faça viver para sempre. Não é que já vão surgindo, nas séries de ficção científica que proliferam na televisão, situações em que seres humanos, mareantes eternos do cosmos, aspiram à suprema ventura de deixar de existir? Que bom pensar na educação do terceiro milénio com uma amplitude a ultrapassar as questões obsessivas actuais dos jovens e da sexualidade, avançar sem medo nem tabus para a certeza da mortalidade, preparando ao longo da vida essa última fase de vivência, com respeito, com amor, com liberdade até de decidir consciente e serenamente a sua interrupção, se for esse o caso, conferindo a dignidade devida a todo o ser humano.
Com a prescrição do médico na mão, chegou finalmente a sua vez no balcão de atendimento para aposição de carimbos e selos.
– Você tem que substituir este cartão, ou não sabe disso?
Sabia, realmente, só que não tinha tido ainda oportunidade e não lhe parecera tão urgente. Falou firme, mas com delicadeza:
– Se não visse inconveniente, eu tratava disso hoje, uma vez que estou aqui...
– Vocêses são todos iguais. Nunca têm tempo, depois a gente aqui é que temos que estar sempre prontos!
Era uma mulher jovem ainda, de rosto macilento, ruga funda entre os sobrolhos, cabelo escorrido
O ar da rua provocou-lhe um arrepio no corpo. Entrou no carro e rumou à policlínica para marcar os exames. Preparou-se para nova espera.
(segue)
7 comentários:
Se te aparecer um histérico iluminado a berrar que isto é sub-literatura... diz-lhe que depois do Teixeira de Pascoaes continuou a haver literatura portuguesa.
Beijinhos, amiga.
P. S. Li o teu mail, e muito te agradeço os conselhos sábios - se ainda não te respondi foi só por estar demasiado furioso para me conseguir concentrar.
Relato triste mas tão verdadeiro também.
E que remonta para as "câmaras de gaz" da alma em que tantas almas vivem.
Fico à espera dos próximos capítulos:)
Beijinho.
Olá Jawaa
Fantástico o que acabei de ler!
Grande abraço
Beijinho
Olha, o amigo Rui! ;)
Vamos ter mais belas fotos.
Abraço!
Quando me referi às "câmaras de gás da alma" não me estava a referir ao protagonista da história.
Relendo agora o que escrevi, vejo que posso não ter sido clara.
Referia-me àqueles que lidam com as pessoas como se elas fossem números, sem identidade ou dignidade próprias.
belo texto neo-realista.
bjs.
fico, com muito interesse, à espera dos próximos capítulos.
um abraço, jawwa
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