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A Água é a Seiva da Serra
Tomai, e bebei! Este é o sangue de Portugal, o sangue da eterna nova Lusitânia! A Nossa Seiva de Sempre.
«Mas o Verbo divino, ao condensar-se
Em pobre corpo humano,
Não encarnou de todo, e nele vive.
Por mais que eu fale de outras pessoas, de viagens, das árvores (...) em última análise, o assunto da minha conversa sou eu próprio.
(...) o seu [do Homem] destino é interpretar e definir o Indefinido, talhar o informe, concluir, em outro plano, o mundo esboçado neste:
Concluir a imperfeita Criação
Que Deus iniciou.
A poesia espontânea só obedece ao ritmo da sua expansão natural. É instintiva. Despreza os modelos consagrados, porque ela contém a virtude de criar as leis que a regulam. É como as seivas das árvores, que trazem, no seio, quando afloram nas ramagens, o desenho futuro das folhas e das flores.
(...) a Dor, síntese do Amor e da Morte, é a própria essência da Poesia lusitana. As lágrimas duma Pátria caem sempre no coração dos seus poetas, para que eles as redimam nos seus cantos. Todo o canto é redentor. (...)
Eram tudo memórias... Sim... tudo é lembrança para o amor que deseja oculta a incerteza do futuro na certeza do que passou (...).
Há palavras que são estrelas. (...)
In principio erat verbum... e o Verbo é a Saudade. (...)
As cousas e os seres vivem mais na nossa memória que diante dos nossos olhos. Existir não é pensar: é ser lembrado. E para ser lembrado, é preciso amar. Só o amor cria a substância imperecível em que a nossa imagem se desenha.
D. Sebastião é o Desejado e o Encoberto ou antes o desejo encoberto da alma pátria, essa nuvem indecisa (...) o autor de D. Sebastião é o Povo, o poeta do Cancioneiro. O autor do D. Quixote é um homem. (...)
D. Sebastião é uma vaga existência divinizada e absorta no seu remoto encantamento. A sua acção pessoal não é presente, como no D. Quixote, mas futura, porque ele há-de vir numa incerta manhã de nevoeiro, e a esperança é o áureo fulgor da sua coroa...
D. Quixote é. D. Sebastião há-de ser. (...)
O português é indeciso e inquieto, como as nuvens em que as suas montanhas se continuam e as ondas em que as suas campinas se prolongam... É uma tendência do Passado para o Futuro, uma ansiedade sobre o Além, uma ave sentimental nas garras da Tentação, descrevendo um voo incerto e doloroso. (...) Alma que foge de ser corpo, insatisfeita e perdida numa existência vaga, sem limites. Tem um fundo de feminina ternura. A sua sombra é de mulher no pressentimento de um filho esperado em vão. É uma lembrança que chora, grávida de misteriosas esperanças: a eterna promessa de uma dádiva, um eterno crepúsculo amanhecente...
O Verbo, feito homem, espera a hora do seu regresso a Portugal...
Não regressou ainda, mas já sabemos o que ele sente, pensa e quer.
A alma portuguesa tinha de encarnar num ser individual e transcendente, a fim de encontrar o instrumento da sua actividade patriótica e religiosa.
Foi por isso que D. Sebastião, aplaudido por Camões, caminhou, aureolado de sonho, para a morte. E foi por isso também que se criou a Lenda, que é mãe de personagens vivos e não de simples e isolados sentimentos.
- A serpente que outrora se enroscou
Na árvore do Paraíso, seduzindo
Nossos Primeiros Pais.
Nem Hércules, nem o Anjo Gabriel,
Nem S. Jorge puderam destruí-la.
Foi ela que traçou, na escuridão,
Com a ponta da cauda traiçoeira,
As órbitas dos mundos.
Era a cobra o sinal do seu Império
A cobra e o riso eterno dos seus lábios:
Riso que anima as plantas e as estrelas
E que percorre o corpo humano - e é sangue!
Aqui, no Inferno, neste sítio lúgubre,
As almas das criaturas são imagens
Vivas de corpos mortos e desfeitos,
(...)
A criatura expia o velho crime
De se ter entregado às mãos da Morte,
Havendo sido dada à luz da Vida.
Eis o crime sem fim, primordial...
Aqui, no País do Drama, nossos Pais
Desde a noite dos tempos têm vivido
A vida demoníaca e nocturna...
Quem de nada se lembra nada espera.
Aqui, no País da Sombra,
Da Saudade da Vida, as criaturas
Sofrem a dor da sua imperfeição...
... e até parece
Haver turvado a misteriosa fonte
da Luz originária...
Mas a alma ressuscitará sem prejuízo do corpo. Há entre ele e ela um mal-entendido, que necessita de findar.
Cada alma tem seu medo...
O seu segredo
Que Deus lhe disse, ao nascer,
Para ela o não dizer...
É a Palavra misteriosa
Que faria eterna luz,
Na escuridão da Natura.
Mas nem a disse Jesus,
Nem Sibila fabulosa...
E só baixinho murmura,
Ou na lágrima primeira
Ou derradeira...
Di-la o primeiro vagido
E o derradeiro gemido...
Emana um fumo d'alma o crepitar do lume...
O incêndio duma flor dá a cinza do perfume...
A luz envolve a chama e a chama envolve a lenha...
Sensível musgo cobre uma insensível penha,
E sobre o musgo paira o aroma espiritual...
Mistério... Num aroma a pedra é imaterial!
E todavia são a mesma vida pura
O claro aroma, o verde musgo, a penha dura!...
A terra é a mãe da Alma, a terra deu à luz
O perfume da flor e a alma de Jesus!...
No Poeta comovido há a loucura do vento;
A nuvem é um delírio, a água um sentimento...
A fonte que através dum areal se perde,
As suas margens vai vestindo de cor verde,
Lançando nessa terra estéril, ressequida,
Num beijo sempiterno, a semente da Vida...
Todos os robles dão, ardendo, a mesma luz...
Um tronco sobre um lar é um Cristo numa cruz!
E é calor que agasalha e facho que alumia
O que é em Cristo amor, piedade, harmonia...
E tudo o que é no poeta emoção e delírio
É luz no sol, canto nas aves, cor no lírio!...
E tudo o que é em nós Bondade é num rochedo
Viçoso musgo e santa sombra no arvoredo!...
E, enquanto dou a um pobre um bocado de pão,
O sol enche a luz o saco da amplidão!
E, qual Samaritana, a nuvem religiosa
Dá de beber a toda a terra sequiosa...
E enquanto eu sou a morte, ó velho e frio inverno,
Perante o sol - Jesus, és um Lázaro eterno...
E as verdes ervas são versículos sagrados
Que os ribeiros e o sol escrevem sobre os prados...
E uma pedra contém a história verdadeira
Do Génesis, da Luz e da Mulher primeira!...
E a mais estéril terra ainda recorda e chora
O tempo em que beijou teus lábios d'oiro, aurora.
Pela primeira vez, ardente de paixão!...
E nos olhos da terra ainda fulgura a imagem
Através da penumbra infinda do Mistério,
Até desabrochar num coração etéreo!
Há nos olhos da terra a imagem desse olhar
Que a saudade transforma, às vezes, em luar...
Deus disse à luz do sol o segredo da Vida.
Desvendemos a Luz amada e preferida!...
Vejamos a razão suprema da existência
E o que ela tem d'amor, de espírito e de essência,
O que nela é real, eterno e inconfundível...
Que o nosso olhar penetre o mundo do invisível,
Os páramos do Sonho, a amplidão da Quimera,
Onde já se descobre a etérea Primavera, (...)
A nova Criação que está para surgir
Do caos do Amanhã, do beijo do Porvir!...
E a nova Vida, numa onda a resplende,
Aflora à superfície ideal do novo ser.
Um novo Apolo vai tocar a nova Lira...
E na água que se bebe e no ar que se respira,
Nas nuvens onde dorme a clara luz dos céus,
Palpita um novo amor, murmura um novo Deus...
Vemos Deus pelos olhos da Saudade
Quero viver a Vida na Morte; beijá-las num só beijo...
E vejo erguer-se o rio cristalino,
Transfigurado em sonho, em nevoeiro,
E faz-se eterno espírito divino
Aquele corpo de água prisioneiro.
Ó láctea emanação! Ó névoa densa!
Ó água aberta em asa! Ó água escura!
Água dos fundos pégos no ar suspensa.
Vestida como um Anjo, de brancura.»
Teixeira de Pascoaes, Cânticos, O Homem Universal, Os Poetas Lusíadas, Regresso ao Paraíso, Terra Proibida, Para a Luz, Verbo Escuro, A Arte de Ser Português
8 comentários:
O Porquê da inclusão da Música Brasileira neste artigo:
«(...) como Agostinho da Silva diz algures, Alcácer-Quibir foi a sorte do Brasil, e, como não se cansou de repetir, o Brasil é o melhor de Portugal (menos conhecido do que o célebre “o brasileiro é o português à solta”). Nesse Brasil intocado pela modernidade que foi encontrar em pleno século XX na selva amazónica, Agostinho da Silva entendeu reencontrar o Portugal primevo e valioso, aquele que, depois de ensinar ao mundo que todo o mundo é apenas um arquipélago, poderia agora, enfim, ensinar uma unidade espiritual bem diferente da segmentação da vida e da separação das esferas da cultura próprias da modernidade.»
Não conta comigo pra beber a seiva de Pascoaes, moça.
Oh e a seiva lá preocupada com isso. Que a Fonte não deixa de deitar Água por ninguém dela beber.
Seiva se preocupa e lhe preocupa?
Ela é o que Ocupa. Aquilo que o Homem se esqueceu de fazer, de ocupar o seu Corpo...
(... estar Vivo.)
In principio erat verbum... e o Verbo é a Saudade. (...)
(...) é que agora já é carne onde habita a saudade.
Mas só quem ama sabe a dor da poesia sem doer...
Que é saudade.
μακάριοι οἱ πτωχοὶ τῶ πνεύματι
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