A Águia, órgão do Movimento da Renascença Portuguesa, foi uma das mais importantes revistas do início do século XX em Portugal. No século XXI, a Nova Águia, órgão do MIL: Movimento Internacional Lusófono, tem sido cada vez mais reconhecida como "a única revista portuguesa de qualidade que, sem se envergonhar nem pedir desculpa, continua a reflectir sobre o pensamento português". 
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Contactos: novaaguia@gmail.com ; 967044286. 

Donde vimos, para onde vamos...

Donde vimos, para onde vamos...
Ângelo Alves, in "A Corrente Idealistico-gnóstica do pensamento português contemporâneo".

Manuel Ferreira Patrício, in "A Vida como Projecto. Na senda de Ortega e Gasset".

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domingo, 17 de agosto de 2008

Cadernos de Agostinho da Silva (excertos)


VOLTAIRE, DIÁLOGOS FILOSÓFICOS (IV)

DIÁLOGO TRADUZIDO DO INGLÊS: PÉRICLES, UM GREGO MODERNO, UM RUSSO

PÉRICLES
[1] — Tenho algumas perguntas a fazer­-vos: Minos[2] disse-me que éreis grego.
O GREGO—Minos disse-vos a verdade; eu era o muito humilde escravo da Sublime Porta
[3].
PÉRICLES — Que é isso de escravo? Um grego es­cravo!
O GREGO — Acaso um grego pode ser outra coisa?
O RUSSO — Ele tem razão: grego e escravo é a mesma coisa.
PÉRICLES — Justos céus! Como lamento os meus pobres compatriotas!
GREGO — Não são tão lamentáveis como vós julgais; por mim, estava muito contente com a minha situação: cultivava uma leira de terra que o Pachá da Romélia tivera a bondade de me dar; era por isso que pagava tributo a Sua Alteza.
PÉRICLES — Um tributo! Que palavra estranha na boca dum grego. Mas dizei-me: em que consistia esse humilhante estigma de servidão?
O GREGO — Em abandonar uma parte do fruto do meu trabalho, o mais velho dos meus filhos e as mais belas das minhas filhas.
PÉRICLES — Covarde! Então entregáveis à escrava­tura vossos próprios filhos? Quem viu jamais os con­temporâneos de Milcíades, de Aristides, de Temísto­cles...
[4].
O GREGO — Eis aí uns nomes que nunca ouvi pronunciar na minha vida. Esses homens eram «bos­tangis», «capigi-bachis», ou pachás de três rabos?
PÉRICLES (para o russo) — Que são esses títulos ridículos e bárbaros, cujo som me escorcha os ouvi­dos? Estou, sem dúvida, a dirigir-me a algum gros­seiro beócio ou a um espartano imbecil. (Para o grego) —Já ouvistes naturalmente falar de Péricles?
O GREGO — De Péricles? Não, nada... Ora es­perai... Não é o nome de um famoso ermitão?
PÉRICLES — Que é isso de ermitão? Era a perso­nagem mais elevada do Estado?
O GREGO — Ora! São pessoas que não têm nada que ver com o Estado, nem o Estado que ver com elas.
PÉRICLES — Como se tornou então famoso esse er­mitão? Fez como eu? Travou batalhas e fez conquis­tas para a sua pátria? Erigiu grandes monumentos aos deuses? Fundou estabelecimentos úteis ao público? Protegeu as artes, encorajou o mérito?
O GREGO — Não, o homem de que estou a falar não sabia nem ler nem escrever; habitava numa cabana onde vivia de raízes. A primeira coisa que fazia, todas as manhãs, era rasgar os ombros à chicotada: oferecia a Deus as suas flagelações, as suas vigílias, os seus jejuns e a sua ignorância.
PÉRICLES — Julgais que a reputação desse frade pode igualar a minha?
O GREGO — Certamente; todos os gregos veneram a sua memória tanto como a de qualquer outro grande homem.
PÉRICLES — O destino! Mas dizei-me: não conti­nua a minha memória a ser venerada em Atenas, nessa cidade onde eu introduzi a magnificência e o bom gosto?
O GREGO — E pergunta a que não sei responder­-vos; eu morava num lugar a que chamam Setines; é uma aldeola miserável; mas, segundo ouvi dizer, foi outrora uma cidade magnífica.
PÉRICLES — Quer dizer: é-vos tão desconhecida a famosa e soberba cidade de Atenas como os nomes de Temístocles e de Péricles; decerto vivíeis nal­gum lugar subterrâneo, numa região ignorada da Grécia.
O RUSSO — Nada disso: morava mesmo em Atenas.
PÉRICLES — O quê? Vivia em Atenas e não me conhece? Nem sabe o nome dessa famosa cidade!
O RUSSO — Há milhares de homens que habitam hoje em Atenas e que o sabem tanto como ele; a ci­dade outrora tão opulenta e tão altiva é hoje uma vilória pobre e imunda chamada Setines.
PÉRICLES — É verdade o que me dizeis?
O RUSSO — É o efeito dos estragos do tempo e das invasões dos bárbaros, mais destruidores ainda do que o tempo.
PÉRICLES — Sei muito bem que os sucessores de Alexandre
[5] subjugaram a Grécia; mas Roma não lhe restituiu a liberdade? Nem ouso perguntar mais: tenho receio de vir a saber que a minha pátria recaiu na servidão.
O RUSSO — Desde esse tempo já mudou muitas vezes de senhor. Durante um certo período, a Grécia partilhou com os romanos o império do mundo, impé­rio que as duas potências juntas não puderam conser­var; mas, para só falarmos da Grécia, sabereis que sofreu sucessivamente o domínio dos franceses, dos venezianos e dos turcos.
PÉRICLES — Essas três nações bárbaras são-me absolutamente desconhecidas.
O RUSSO — Vê-se bem por essas palavras que sois um grego antigo; a vossos olhos, todos os estrangeiros eram bárbaros; nem exceptuáveis os egípcios a quem devíeis as bases de todos os vossos conhecimentos. Reconheço que os turcos, outrora, só sabiam a arte de conquistar e, hoje, apenas a de conservar as suas con­quistas; mas os venezianos e, sobretudo, os franceses igualaram os vossos gregos em numerosos pontos e foram-lhes superiores em muitos outros.
PÉRICLES — Bonito quadro. Mas talvez haja aí um pouco de vaidade. Dizei-me: não sois francês?
O RUSSO —Nem nada que se pareça: sou russo.
PÉRICLES — E fora de dúvida que os habitantes da terra inteira mudaram de nome depois que vivo no Eliseu; ouvi tanto falar de russos como de franceses, venezianos e turcos. No entanto, os conhecimentos que mostrais fazem-me presumir que a vossa nação é muito antiga; anão será um resto desses egípcios de que dizíeis há pouco tão bonitas coisas?
O RUSSO —Não é; só conheço esse povo através dos nossos historiadores; quanto à nossa nação, pro­vém dos citas e dos sarmatas
[6].
PÉRICLES — E possível que um descendente dos sarmatas e dos citas conheça melhor o que era a Gré­cia antiga do que um grego moderno?
O RUSSO — Só há uns cinquenta anos ouvimos falar de egípcios, gregos e sarrnatas; um dos nossos soberanos
[7], que era um homem de génio, concebeu o projecto de banir a ignorância dos seus Estados; e rapidamente se desenvolveram as artes e as ciências, as academias e os espectáculos. Estudamos a história de todos os povos e a nossa história mereceu a atenção dos outros povos.
PÉRICLES — Acho que, para produzir essa espécie de metamorfoses, só é preciso que o príncipe tenha vontade e coragem; mas é mais verdade ainda que perdi o meu tempo: esperava ter tornado o meu nome imortal e vejo que já o esqueceram no meu próprio país.
O RUSSO — Dir-vos-ei, para vos consolar, que é conhecido no meu; e isto não esperáveis, vós, tenho a certeza.PÉRICLES — É certo; no entanto, não posso deixar de ter pena de que Atenas tenha esquecido tudo quanto fiz por ela. Bem, ir-me-ei consolar com Osiris, Minos, Licurgo, Sólon e com todos os legisladores e fundadores de impérios cujas acções e máximas estão, como as minhas, mergulhadas no olvido. Vejo que a ciência é um astro que só pode iluminar de cada vez uma parte do globo, mas que espalha a sua luz sucessivamente sobre cada uma delas. Cai a noite numa nação, no momento em que a aurora rompe noutra.



[1] Político ateniense do séc. V a. C. e um dos homens de Estado que mais tem feito apelo à inteligência e à generosidade dos governados.
[2] Rei lendário de Creta, depois colocado como juiz nos infernos.
[3] O governo turco, que, por essa altura, dominava a Grécia.
[4] Políticos e generais atenienses do séc. V a. C.
[5] Alexandre Magno, rei da Macedónia, depois senhor de um império que englobou a Grécia, o Egipto e grande parte do Próximo Oriente (séc. IV a. C.).
[6] Nomes que davam os gregos aos povos que habitavam regiões que fazem hoje parte da Rússia.
[7] Pedro I, tzar da Rússia, que tentou, por vezes com brutalidade, europeizar o seu país (1672-1725).

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