__Hamletmaschine, Gottfried Helnwein, 1997
Júlia – Há um sonho, que tenho de tempos a tempos, e de que me recordo neste momento. Tendo trepado até ao cimo dum pilar, vejo-me aí sentada sem qualquer possibilidade de descer; quando baixo os olhos, sinto vertigens, e tenho de voltar para o solo mas não tenho coragem de me atirar; não posso conservar-me ali e estou ansiosa por cair, mas não caio. Contudo, não conheceria a paz, nem conheceria o repouso senão quando estivesse lá em baixo, absolutamente lá em baixo, no chão […].
Para a menina Júlia, as paredes impossíveis do casarão oblíquo, das divisões descomunais aos espartilhos febris da moral católica, sempre foram um pesadelo pendurado em pétalas de lilases.
O mundo é um aborrecimento sobre si mesmo desde o dia em que o inspirou pela primeira vez, vinte e cinco anos antes, já, ainda, à guarda da Velha Morte.
No cimo do monte dourado, onde a vida é um entrançado de inferno em horas de marfim cortante e canoas partidas de, em madrepérola, gargareja o sufoco seguro da protecção parental, no viril abismo oitocentista, que desafia.
Lá em baixo, no chão de terra suada, os abutres farejam os céus: aguardam impacientemente um pedaço de Júlia, de menina, da menina Júlia, as sanguessugas já lhe devoram a alma, ora inquietas com o demasiado lento desabrochar das consequências cardíacas, ora aquietadas pela certeza da inevitabilidade das gotas escarlates, serpenteando imparáveis do ninho de ouro, aos espinhos metálicos da realidade humana.
A menina Júlia sempre gostou de beber cerveja entre copos de vinho. Nunca se importou com os devaneios das gentes da terra, que a delambiam de putéfia, selvagem e provocadora, a indecorosa e ultrajante filha do senhor Conde, que se rebaixa dançando nas noites de S. João com a criadagem, ordenando aos homens de pés rotos e enegrecidos que lhe beijem os seus de prata.
A sede indomável do seu espírito em luta contra a imagem idealizada da mulher casta e angelical impingida, as múltiplas faces, verdades, desta personagem, são a ponte entre gritantes disparidades de classe que se assumem contraditórias, ainda dentro do seu próprio leito, pela mão de Strindberg: a menina deseja conciliar a sua natureza demoníaca, primordial, com a necessidade de paz e serenidade, libertando-se das amarras da moral puritana da época, saltando definitivamente do pedestal onde sempre se encontrou, directamente para o útero infernal, que ao mesmo tempo receia e deseja morbidamente.
A necessidade de libertação desta personagem, a par com o desejo de poder de quem nada possui de verdadeiramente seu e o desprezo que nutre pelos homens, que seduz para brincar entre as labaredas do desejo que instiga e que posteriormente nega, revelam a intenção de Strindberg em contar e questionar uma sociedade exageradamente estratificada, que esquece as incongruências da natureza humana, os abismos e a complexidade da pessoa por trás da persona, construída sobre placas de desejos, sentimentos, sensações, instintos e impulsos recalcados e que se vai reciclando, reinventando e repetindo sobre estes mesmos recalques, ignorante das consequências desta mesma castração do Homem, no Homem.
A terra degolada em horas desesperadas de sacro sacrifício fazem calos no Ser, e ainda que não pela raiz, a esperança é cortada pelo tronco, como quando se corta uma árvore muito antiga e alta.
Deseja dançar com os pés dentro de sapatos finos e luzidios, deixar a condição de criado e alcançar o ouro do cume da montanha.
Strindberg enlaça duas personagens que se encontram irremediavelmente desencontradas, não apenas por representarem classes distintas, mas pela sede que os move, os levar para campos opostos. No entanto, encontram-se a meio caminho, entre a queda e a subida, pelo amor cruel, cru e limpo que lhes arranha a carne e o espírito.
Neste amor real, espelhado de igual para igual, cada um pretende superar o outro, ultrapassá-lo para que seja o próprio a decidir se pretende ou não voltar atrás para salvar este sentimento ou fugir, para sentir que possui esse poder ou o controlo da relação, para conquistar o papel de herói na peça, o herói das dissertações de Nietzsche e que Strindberg relembrou.
O mordomo degola o canário da menina Júlia.
Os relógios param e espetam os ponteiros nos dois corações desencontrados, consequências mútuas, anulam-se.
A menina Júlia mendiga pelas ruas vertiginosas o desassossego da sua própria contradição.
Um casarão oblíquo com paredes impossíveis, divisões descomunais, espartilhos febris, pesadelos que emolduram pétalas de lilases, será sempre insuficiente o peso do sonho sobre os pilares da desgraça?
O mundo é um aborrecimento sobre si mesmo desde o dia em que o inspirou pela primeira vez, vinte e cinco anos antes, já, ainda, à guarda da Velha Morte.
Paradoxos de mundos que se cosem em realidades urbanas, rotativas, cíclicas, realidade?
Menina Júlia, para onde foram as tuas mãos de mármore escarlate?
O mordomo João regressa à nula aquiescência caseira, da rotina de canários degolados.
Quem era o mordomo João entre as incontáveis meninas Júlia?
Onde estariam as meninas Júlia num espaço-tempo sem uma noite de S. João?
4 comentários:
As meninas devem voltar logo para casa assim que o feiticeiro dos elfos começa a saltar fogueiras... :)
Beijinho.
Demais essa narrativa!
Beijos.*_*
Irra, que agora os morceguitos são supersónicos! :) Levei mais quase dez anos para me sentir satisfeito com a minha escrita, para aí no final dos vinte, e comecei a escrever a sério aos dezassete. A tua escrita está definida, pouco mais te posso dar, a não ser ouvir-te. Agora é leres, leres muito, leres tudo o que é importante (falo do que sentes que tem relação com o teu universo e não das merdices que pedem para ler na faculdade), e depois seres exigente, tornares-te cada vez melhor leitora de ti mesma, imparcial. Não há grandes escritores que não sejam bons leitores de si mesmos.
Este texto é assombroso, não apenas pela qualidade da escrita, mas pela maturidade da mesma, pela leitura que fazes, pelo modo como te transpões (OK, há a experiência do palco, vestir personagens, etc, mas é mais), é o entendimento dos abismos da alma e do coração, e da falsidade do mundo e do tremendo poder do desejo, não o cego, não o que apenas deseja, mas aquele que deseja com pregnância política, o que é um sopro de fogo e luz que derruba a hipocrisia, as leis sociais (todas feitas para enjaular o desejo) e se ergue com um clamor heróico de justiça e liberdade. Não há grandeza na literatura se esta não for como um incêndio.
Dark kiss, Sally the Kid.
P. S. O feiticeiro dos elfos transforma-se no fogo.
Isto é TALENTO puro e duro:)
Depois das palavras do Lord que mais há a dizer?!
Beijinho.
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