«Quando os Escoceses se reúnem para celebrar a sua identidade nacional, fazem-no de formas ancoradas na tradição. Os homens vestem o kilt, cada clã usa o tartan com as suas cores próprias e as cerimónias são acompanhadas pela música das gaitas-de-foles. Através destes símbolos, demonstram que se mantêm fiéis aos rituais de antanho, cujas origens são antiquíssimas.
Só que isso não é verdade. Como é o caso com muitos símbolos da identidade escocesa, todas estas coisas são de criação recente. O kilt curto parece ter sido inventado por um industrial inglês do Lancashire, Thomas Rawlinson, no início do século XVIII. Decidiu alterar o vestuário que as gentes das terras altas então usavam para lhes facilitar a vida como trabalhadores.
Os kilts foram um produto da Revolução Industrial. Com eles, não se pretendia honrar uma tradição; a ideia era absolutamente contrária: permitir que as gentes das terras altas abandonassem o vestuário de couro para poderem trabalhar nas fábricas. O kilt não começou por ser o traje nacional da Escócia. Os habitantes das terras baixas, que constituem a maioria dos Escoceses, consideravam que os das montanhas se vestiam de uma forma bárbara, que muitos olhavam com desprezo. E quanto aos tartans agora usados, muitos deles foram elaborados, em pleno período vitoriano, por alfaiates empreendedores, que correctamente viram neles uma boa fonte de negócios.
Muitas das coisas que consideramos tradicionais, alicerçadas na neblina dos tempos, não passam, na verdade, de produtos do último par de séculos, e por vezes são ainda mais recentes. O caso do kilt dos Escoceses consta de uma obra célebre dos historiadores Eric Hobsbawm e Terence Ranger, The Invention of Tradition.»
Anthony Giddens, O Mundo na Era da Globalização
Ao longo da história da Civilização Ocidental quase nunca os políticos foram o ápice da cultura dos povos. Nem em nenhuma outra civilização, diga-se, mas tem-lhes sido confiada a condução concreta dos destinos da Humanidade. Os seus conluios raramente foram com o saber, mas profusamente com a religião e todas as formas de manipulação das consciências.
O maior apelo que se pode fazer à identidade de um povo é invocar a sua Tradição – ter o domínio dos mecanismos que permitem a sua difusão e permanência nas memórias colectivas sempre foi uma das maiores tentações, quer da Esquerda quer da Direita.
O desmoronamento dos impérios do Antigo Regime foi substituindo a hipostasiação expansionista de identidades nacionais (todas assentes na crença em mitosofias predestinativas) por ideologias internacionalistas, radicadas numa igualdade de todos os homens escorada no velho conceito universal, helénico, de Homem. Este conceito sempre foi uma ideologia mutável e, com o fim do modelo genérico da sociedade oitocentista, o Homem deixou de estar enraizado no conceito de Nação – como o estava para Aristóteles – e passou a ser a mais abstracta das ideias… neste Homem cabem: o Indonésio e o Guineense, o Espanhol e o Americano, mas não há Indonésios nem Guineenses nem Espanhóis, há Austronésios e Papuas, Manjacos, Papéis, Fulas, Flupes, Galegos, Andaluzes, Catalães, Bascos, Castelhanos, etc, e Americanos não existem, nem sequer para os próprios Ameríndios do continente americano, existem é Sioux, Borórós e muitos outros (só a percepção da eficácia política de um termo, os faz afirmarem-se Americanos).
Esta ideia-armazém universal de Homem rapidamente se tornou na grande disputa das ideologias que emergiram em luta nos princípios do séc. XX, na batalha acérrima de determinar o futuro da Humanidade num século que se adivinhava fértil de mudanças, políticas, tecnológicas, culturais e sociais. Mais do que o Alemão ou o Russo, o Novo Homem seria um Nacional-Socialista ou um Comunista – mas, mesmo as ideologias futuristas, não podiam ignorar de todo a Tradição que pretendiam reconstruir e, por isso, se reivindicaram de um património mítico, sempre mais ou menos religioso: o Ariano, o Proletário – remetendo para identidades imaginárias, há muito construtoras de narrativas imemoriais, em que inúmeros povos se têm revisto, numa cumplicidade com guerreiros vitoriosos de fábula e pobres de espírito ávidos do Paraíso.
A utopia comunitária europeia não deixa, ainda assim, de renovadamente se alimentar do mesmo sustento litúrgico: a Cristandade, a Herança Helénica ou o Espaço do Império Romano – não é por acaso que, depois da Turquia, já há quem fale em Marrocos como futuro membro da Comunidade Europeia e, quem sabe, daqui a 100 anos todas as nações mediterrânicas estarão integradas nessa coligação económica e política.
Tal como nas convulsões da primeira metade do séc. XX, neste novo século, muito mais rápido, assistimos quer ao anúncio da morte do Estado-Nação – de que a Comunidade Europeia e a Globalização são os grandes obreiros – quer ao recuperar de velhos mitos nacionais, ou internacionais; só a noção identitária é mutante, consoante se reivindica o espaço rácico de um Povo-Nação ou espaços transnacionais, sejam rácicos, igualmente, religiosos, culturais, económicos ou políticos, sendo o Capitalismo e a Democracia os estandartes do Ocidente e os seus exércitos a supremacia tecnológica e o monopólio dos media e de todas as formas de comunicação, a que se acresce o imenso poderio da sua propaganda cultural e a eficácia dos seus intelectuais, incansáveis na escritura de inventadas narrativas sapienciais, com ambição hegemónica a primados.
A diferença das diversas propostas não têm como chão outro solo senão o património cultural específico de cada povo. Há motivo histórico para que na Alemanha ressurjam velhas ideologias fundamentadas na Raça, alguns Alemães ainda se podem gabar de ser um grupo rácico; foram de todos os Europeus um dos povos que menos se misturou e dispersou fora do seu espaço territorial, ao contrário dos seus primos nórdicos, que fundaram cidades na Rússia, na Península Ibérica e foram os primeiros Europeus a desembarcar nas costas americanas. Se compararmos a história dos Alemães – que formam um dos mais jovens estados modernos – com a dos Portugueses, percebemos perfeitamente porque em Portugal regulamos a nacionalidade pelo jus solis e na Alemanha a filtram pelo jus sanguis. Embora Portugal tenha encolhido muito, principalmente de espírito, é Português quem nasça em território nacional e, no meu entender, esse território deveria ser, não apenas um avião, um navio ou uma Embaixada, mas todos os territórios que já estiveram sob administração dos Portugueses – se um natural de Goa chegar a este país invocando um direito de nacionalidade portuguesa… eu dar-lha-ia de imediato.
Portugal foi devassado por todo o séc. XX por tentativas ideológicas de lhe inventar uma Tradição, ao sabor de desígnios políticos obscuros. Somos um dos mais antigos e estáveis Povos-Nação europeus, mas nunca fomos uma Raça, e sempre uma saudável mistura de gentes, vindas dos quatro cantos do mundo. Portugal é um Povo-Terra desde os temores mais remotos da Antiguidade acerca da Finis Terrae, o fim do mundo antigo a Ocidente. Portugal é uma Arca de Chão, para onde têm confluído sucessivas vagas de almas em busca de uma Pátria e inúmeros indivíduos que perderam a sua e, aqui, nesta Terra de Esperança, vieram erguer uma Pátria de Pátrias. Esta é a antiquíssima e primordial Tradição dos Portugueses e o sangue da Alma de Portugal.
Dom Afonso Henriques, um Borgonhês de ascendência, inaugurou esta utopia excelsa e o Infante Dom Henrique, um mestiço ibero-britânico, deu a esse sonho uma marca na História… chama-se Civilização Portuguesa.
Sou um Transnacionalista e, como tal, a minha Pátria não está prisioneira de linhas imaginárias num mapa, que partem as terras… e todos os Homens são Portugueses… basta-lhes, para isso, quererem sê-lo e virem até este Fim do Mundo para erguer a sua Casa.
Klatuu Niktos
12 comentários:
E como de melhor não sou capaz limito-me a repetir estas palavras:
«Portugal é uma Arca de Chão, para onde têm confluído sucessivas vagas de almas em busca de uma Pátria e inúmeros indivíduos que perderam a sua e, aqui, nesta Terra de Esperança, vieram erguer uma Pátria de Pátrias.»
Um abraço
Achei o texto bem informativo e aprendi bastante com ele. Nem me surpreendo mais com a versatilidade de teus registros, entretanto, terei que pesquisar o que vem a ser Transnacionalista.
beijinho.
22 de Junho de
Fantástico ensaio. Totalmente de acordo. Até porque, como o Giddens também afirma,
A tradição não é totalmente estática, porque tem de ser reinventada por cada nova geração à medida que esta assume a herança cultural daquelas que a precederam.
A. Giddens, As Consequências da Modernidade
Cada nova geração de Portugueses somos todos os que habitamos/amamos este Chão.
Beijo*
Nem mais!
Abraço.
Belíssima lição de História, de cultura e de civilização.
Todo o texto é relevante, mas atrevo-me a realçar dois excertos:
"Ao longo da história da Civilização Ocidental quase nunca os políticos foram o ápice da cultura dos povos. Nem em nenhuma outra civilização, diga-se, mas tem-lhes sido confiada a condução concreta dos destinos da Humanidade. Os seus conluios raramente foram com o saber, mas profusamente com a religião e todas as formas de manipulação das consciências."
Sempre assim foi, provavelmente sempre assim será...daí a enorme consideração que tenho pelos políticos:)
O outro é o que já foi salientado pela Anabela.
"Uma Pátria de Pátrias" - expressão lindíssima.
Beijos
Há um passo nos Lusíadas em que o Gama diz, julgo que ao Rei de Melinde, "os portugueses somos do Ocidente / imos buscando as terras do Oriente"; sempre achei que o Camões não identificava um "país", mas uma categoria de ocidentais.
Sim, todos podem vir até este Fim de Terra e cumprir o que neles haja de português; e pelo mesmo motivo nenhum pedaço de terra nos é inteiramente estrangeiro. A Alemanha pode conquistar a Terra, mas não a transformará numa Germânia.
(citei de memória, os versos podem não ser exactamente como os escrevi)
Bia, começa por ler Gilberto Freyre e Agostinho da Silva...
O Transnacionalismo, enquando ideologia estritamente política, está ainda em construção. Tenho dado os meus contributos. Depois te explicarei melhor.
Beijinho. E muda essa foto, me faz pensar em coisas tristes.
P. S. Não podes errar, porque acertas, Casimiro.
Obrigado a todos. Beijos e abraços!
"todos os Homens são Portugueses… basta-lhes, para isso, quererem sê-lo e virem até este Fim do Mundo para erguer a sua Casa."
Que coisa linda...
Beijinho, Mestre.
PS: Sim, eu sou uma horrorosa e limitei-me a citar uma frase em vez de falar da -imensa- riqueza deste ensaio.
Mas eu sou assim mesmo, quu queres?! :P
E a rolinha? :/
Meu amigo, esta torrente de palavras enche a alma de qualquer Português que se preze, bem hajas por isso.
Eu não sei bem se Portugal encolheu de espírito, eu penso que é urgente dar-lhe cultura. Educação e cultura a sério.
Um abraço
O meu "meistre" salvou a rolinha!!!
*atira-se ao pescoço de "meistre" e enche-o de beijos*
(risos)
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