Numa data em que é evidente a
crise de mais de um Estado, designadamente na área ocidental, e particularmente
no Norte do Globo onde residiu durante séculos a hegemonia global, no sentido
de evoluírem para a categoria de Estados
Exíguos, isto é, com relação deficitária entre as suas capacidades e
objectivos, parece-nos do maior interesse e actualidade meditar sobre a relação
entre a Nação e o Estado, que apenas em 1918 foram
proclamados como realidades que devem coincidir.
Tendo por segura a ideia de
que a identidade da Nação Portuguesa, é uma das mais antigas, senão a mais
antiga europeia, as Cortes de Coimbra, reunidas entre 3 de Março e 10 de Abril
de 1385, também podem entender-se como consagrando, em vésperas de uma guerra
longa com Castela, a união entre a Nação
e o Estado querido pela primeira,
entendido aqui o Estado como o enquadramento institucional da governança
soberana.
Esta união entre a Nação e o
Estado, no sentido que viria a ser afirmado nos lembrados 18 Pontos de Willson
em 1918, foi quebrada pela Dinastia dos Habsburgos Espanhóis, que governaram
Portugal entre 1580-1640, com violação das leis do Reino, pelo uso das armas e
da corrupção, dando origem à consolidação do mito do Sebastianismo, que alimentou a vontade de regressar a uma dinastia
também nacional, o que é lembrado e celebrado por esta Sociedade Histórica da
Independência de Portugal no 1.º de Dezembro de cada ano, no Palácio que
abrigou os Conjurados. O facto que historicamente marca esta alteração gravosa
do estatuto do Reino de Portugal é sempre identificado com a Batalha de
Alcácer-Quibir, travada em 14 de Agosto de 1578, onde morreu talvez metade dos
efectivos do exército português, foram aprisionados milhares de combatentes
incluindo os representantes da nobreza mais destacada; na base do desastre,
além da inexperiência e impetuosidade do jovem Rei, que diz respeito à condução
das operações, a situação de o Estado
exíguo ficou demonstrada, e a primeira questão importante que as
circunstâncias evidenciaram foi a de preservação da identidade nacional, ponto de apoio para a resistência ao
infortúnio e recuperação de um Estado nacional.
Não deixaram de existir
motivações menores, quer para acompanhar os riscos da Restauração, quer para
evitar os riscos consequentes do levantamento, quer para reivindicar o êxito seguro
da conspiração e revolta, mas o que interessa e releva é a determinação com que
“sábado, primeiro de Dezembro de 1641, dia memorável para as idades futuras, a
nobreza da Cidade de Lisboa, para remédio da ruína em que se via, e ao Reino
todo, aclamou por Rei o Duque de Bragança Dom João, príncipe benigníssimo, magnânimo,
fortíssimo, piedoso, prudente, nos trabalhos incansável, no governo atento, no
amor da república cuidadoso, do seu acrescentamento ardentíssimo, e vigilante,
legítimo sucessor do Império Lusitano”. [1]
A crítica contemporânea,
apoiada nos adiantamentos da ciência política, na mudança de perspectivas, e no
progresso da metodologia e fontes da história, separa a definição, como que
mitológica, do evento, das realidades dominantes na área das legitimidades
jurídicas da época, na distância de então entre o princípio tardio da exigente
coincidência entre Nação e Estado e as vigências do legitimismo.
Mas do ponto de vista da
identidade nacional, e do que isso significa e crescentemente importa na
conjuntura que vivemos nesta entrada do terceiro milénio, é que a História de Portugal Restaurado, escrita
pelo Conde da Ericeira D. Luís de Meneses, a persistente doutrinação do Padre
Vieira, o sobrevivente sebastianismo a adaptar-se a cada época, é finalmente,
(Ramos, 2010) o facto de que “no ambiente nacionalista da viragem para o século
XX, não só se ampliou o interesse pelo estudo do acontecimento, como o mesmo
foi elevado ao estatuto de uma das datas essenciais da afirmação da identidade
nacional”. As dificuldades da mobilização militar, as dificuldades financeiras,
a designação das chefias militares competentes, e os condicionamentos adversos
da circunstância internacional, não impediriam que a mais longa guerra em que Portugal esteve
envolvido, de 1640 a
1668, vencesse os Habsburgos, recuperasse o império com perdas limitadas,
recuperando igualmente o lugar independente na cena internacional. Como lembrou
D. Manuel Clemente, em 1810 o Estado estava falido e foi necessário refundar o
Estado, em 1910 o Estado estava falido e foi necessário refundar o Estado, em
2010 o Estado está em circunstância de desastre, e, com base na identidade, é
necessário de novo reconciliar a Nação com o Estado, com base no espírito que
vive nesta instituição. As evidências não parecem discutíveis.
Na dificílima circunstância em
que se encontra Portugal, amarrado à séria circunstância do globalismo sem
regras, começa a ganhar enorme relevo o facto de ter sido negociado um acordo
internacional de auxilio financeiro, com regras severas e vigilantes atentos, e
tudo parece remetido para futuriveis incertos pelos debates que antecedem
necessariamente as eleições.
Não se trata apenas de ter um
povo para governar, dentro de um território limitado e excessivamente
abandonado, com escassos recursos próprios a dinamizar, e leis da Republica a
observar, também acresce nesta data um compromisso internacional que estrutura
o limite da criatividade sem regras que a soberania usou demasiadas vezes, ao
longo da história e para além das capacidades e das leis.
O debate sobre as personalidades,
e sobretudo envolvendo as ambições incompatíveis dos interlocutores, ultrapassa
facilmente a capacidade de o eleitorado finalmente ver a realidade que
permanece para além do que se consegue ouvir. Disse o Padre Vieira, no Sermão
para o dia de S. Bartolomeu, que “não há coisa mais difícil, que eleger um
homem outro homem”, porque “com a paixão, ou ainda sem ela, nenhum homem
conhece o outro”, e o alarido em que frequentemente se transformam os debates e
comentários não contribuem para vencer esta barreira. Do que se trata é do
futuro, se possível aceitável, porque do passado todos conhecem o suficiente
pelos efeitos que atingem a terra e as gentes, situação que não melhora com
reinterpretações e voz forte.
Voltando ao Padre Vieira, e
agora ao Sermão da Quarta Feira da Quaresma do ano de 1669, parece apropriado
lembrar este texto: “Estais Cegos. Ministros da República, da Justiça, da
Guerra, do Estado, do Mar, da Terra, vedes as obrigações, que se descarregam
sobre o vosso cuidado, vedes o povo, que carrega sobre as vossas consciências,
vedes as desatenções do governo, vedes os enredos, vedes as dilações, vedes os
subornos, vedes os respeitos, vedes as potências dos grandes, e as vexações dos
pequenos, vedes as lágrimas dos pobres, os clamores, e gemidos de todos? Ou os
vedes, ou os não vedes. Se o vedes, como o não remediais? E se não remediais,
como os vedes? Estais cegos”.
O Padre não viveu os tempos em
que os meios de comunicação consentissem que o Estado Espectáculo, em todas as
suas vertentes da soberania, sem distinguir entre detenção do poder e oposição,
se tornou no modelo mais cultivado, de modo que nem o eleitorado, não fora
medir as circunstâncias pelos efeitos que sofre, não conseguiria ver, ao menos
parte da realidade, pela cortina de palavras que tem de ouvir. De algum modo, a
própria Europa no seu todo, tendo por alarme algumas anunciadas reacções não
efectivadas contra o auxilio a Portugal, designadamente da Finlândia, da
Alemanha, ou da Inglaterra, está a por em causa a percepção da debilidade
colectiva em que se encontra perante o resto do mundo, supondo que o regresso
aos atomismos dos interesses próprios de cada país não atinge gravemente a
debilidade colectiva de um agregado que, com as suas guerras interiores,
destruiu o império que tinha sobre o que chamou “resto do mundo”, que é onde se
encontram as matérias primas, as energias não renováveis, e até os suplementos
da alimentação que não produz.
E também a nova vaga dos que
crescem de poder e não diminuem a memória de submissões passadas. A política
não tem a gratidão como uma das suas virtudes fundamentais, mas a solidariedade
de um espaço que decaiu de poder, e que pretende não apenas salvaguardar o que
ainda tem, mas progredir, se possível, no equilíbrio mundial, é com base nos
interesses, que moveram a sabedoria dos fundadores, que tem de basear decisões
bem definidas para salvaguardar não apenas o espaço europeu, mas de facto o
espaço ocidental. Os ditos de espírito, ou falta dele, podem aliviar tensões
individuais, mas não resolvem problemas. Precisamos sobretudo de vozes que
ajudem a ver a realidade, que promovam as solidariedades cívicas, que tenham o
bem comum como paradigma. Com isto preservam as diferenças.
Quando, em 1890, a humilhação do
Ultimato feito pela Inglaterra, colocando um ponto final na ambição excessiva
do Mapa Cor de Rosa, as manifestações patrióticas que tiveram expressão no
apelo à vontade nacional com A Portuguesa
de Alfredo Keil e Henrique Lopes de Mendonça, mas também de desânimo expresso
com o Finis Patriae de Junqueiro, não
foi o regime político o valor a salvar, não foi o declínio desse regime o
inspirador, tratou-se da identidade nacional, do seu paradigma apoiado como
sempre em realidades e mitos, mas proclamado, ou com esperança e projecto, ou
com desânimo e lamentos, de facto animando finalmente a constituição do
Terceiro Império, o africano, que terminaria, acompanhando o fim do Império
Euromundista em que participava, em 1974.
Neste ano, parece-me oportuno
referenciar, relembrando D. Manuel Clemente, esta permanência da identidade nacional como valor directivo
da mobilização das vontades cívicas, não subordinadas à estrutura política como
demonstrou no passado, consolidado progressivamente o princípio de que o
Estado, como estrutura de governança, que na convicção do Lord Acton em regra
precedeu a Nação, é definitivamente um servidor dela, e que deve ser
reformulado sempre que a função o exige.
A esta tendência impulsionada
pelo globalismo, que é um factor externo, acrescenta-se em vários casos, numa das
integrações em regionalismos como o da União Europeia, a evolução do Estado
para Estado Exíguo, isto é, para uma
situação de relação acentuadamente negativa entre os recursos e os objectivos
dessa entidade, já submetida à evolução da soberania renascentista para a
soberania cooperativa que implica transferência de competências para centros de
poder do novo espaço integrador. É nesta situação que se encontra o Estado Português, abrangido com os
parceiros da União nas transferências de competência do Tratado de Lisboa, mas também fortemente atingido pela crise
financeira e económica mundial, sendo objecto da crise de confiança que lavra por toda a União, quer na relação da
sociedade civil com o Poder político,
quer na vida privada em que, ao lado da sociedade
civil, cuja estrutura de solidariedade e confiança, expressa no património imaterial da sua cultura
específica, sofre deteriorações várias, quer na sequência da transformação das
fronteiras geográficas em apontamentos administrativos, quer pelo descontrolo
das migrações, uma realidade não absorvida pelo tecido cultural da sociedade
civil, e que corresponde ao conceito de multidão,
com as implicações de conflitos que se multiplicam em várias grandes cidades
europeias.
Nesta crise, com certamente
raros exemplos passados de referência, a questão do valor fundamental das identidades emergiu entre as inquietações que
interpelam grandes e pequenos Estados.
Nos EUA, a chegada das antigas
minorias ao poder, que inquietou Huntington, foi sublinhada pela proclamação de
Obama quando afirmou – somos todos
americanos –, uma temática que começa a ter réplicas preocupantes dentro da
superpotência sobrante. Mas é o globalismo,
de efeitos colaterais insuficientemente identificados, que obriga a acompanhar
com atenção preocupada, indagações como a levada a cabo por François Jullien,
sobre os conceitos de universal, uniforme e comum, em confronto com realidades a que correspondem os conceitos
de alteridade, heterogéneo, e singular.[2]
É nesta categoria do singular que a questão da identidade dos povos tem um lugar
principal e uma exigência de meditação inadiável.
Voltando à relação actual de
Portugal com a sua circunstância, interna e externa, tudo aponta para o
imperativo de olhar com sentido histórico, cívico, e de futuro, para relação
entre identidade e Estado, numa data em que o Estado dá sinais irrecusáveis de
evolução para Estado Exíguo, com o valor básico da confiança atingido na vida
civil e na relação entre a Nação e o Estado, para assumir que a crise do Estado não é a crise da identidade nacional, que no
passado graves crises do Estado foram resolvidas e ultrapassadas pelo dinamismo
cívico derivado da solidez da identidade
nacional. Seria inteiramente falso e abusivo, e talvez agravante da crise,
imaginar ou sugerir que é a natureza filosófica e jurídica dos regimes que
estas crises inevitavelmente atingem. De facto é a crise do valor da confiança que leva ao apelo
urgente à autenticidade, à exigência
de vozes capazes de elucidar sobre a realidade desafiante e mobilizar para
respostas inovadoras com os sacrifícios indispensáveis. É a própria soberania,
que não pode deixar de evoluir respondendo à mudança imperativa das
circunstâncias mundiais, mas que não é imperativo que nessa evolução perca o
sentido da igualdade na tomada de decisão e a noção da exigência de assegurar a
capacidade de a manter. Recentemente, o professor Jonh Crowley escrevia que
“longe de ser um “repli”, a identidade é, para o melhor e o pior, um avanço.
Para o pior se tomarmos à letra a sua pretensão de ser “naturelle”; para o
melhor se os particularismos puderem ser o ponto de apoio para um universalismo
coerente”.
Voltando aos conceitos de
François Jullien, no globalismo que nos envolveu sem projecto e largamente
construído com efeitos colaterais, o particularismo da identidade nacional não
se confunde nem com as interdependências desses efeitos colaterais, nem com a
uniformidade dos consumismos que resulta da teologia de mercado: a identidade
nacional é um institucionalismo criado pela história, é uma célula irredutível
da marcha para a articulada unidade da governança mundial a construir, e por
isso mesmo a titular da vontade de reorganizar o Estado em crise para o
habilitar a servir a comunidade. Foi o que aconteceu no 1.º de Dezembro de 1640,
uma celebração que não é apenas um exercício de veneração do passado, é um
exercício de inspiração no passado a pensar na responsabilidade cívica de reabrir
o futuro.
No caso português, sem poder
ignorar o processo evolutivo do Brasil, que prudentemente avalia a escolha de
futuros entre os compromissos com o regionalismo sul-americano e a sua própria
afirmação de grande potência, a solidariedade procurada entre os países de
língua portuguesa, na organização que espera mais atenção e desenvolvimento,
que é a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), é uma contribuição
sua. Não apenas para a racionalização do globalismo, e para o património
imaterial de que se ocupa a UNESCO, mas também para o interesse desta Europa, à
procura de objetivo estratégico convictamente partilhado, de governança
finalmente racionalizada, com imaginação criadora e lideranças credíveis. Tudo
para que a Euráfrica não seja apenas um sonho que a realidade semeie de pontos
de interrogação, a que lembranças revitalizadas do passado impeçam de encontrar
respostas construtivas. Na circunstância atual, não é fazendo renascer o
espirito de cidadelas na União que a fraqueza desta encontrará remédio, porque
não poderá dispensar os esforços ordenados para dominar a irracionalidade do
globalismo.
Finalmente, sempre lembrarei
que não se escolhe o país em que se nasce, mas que decidir ficar é um ato
voluntário e de amor. Uma decisão que não se toma a benefício de inventário do
passado, torna-se, com esperança, a benefício do futuro da maneira portuguesa
de estar no mundo.