Luís de Barreiros
Tavares: Sei que tem dedicado grande parte da sua
longa carreira à questão complexa da Pedagogia. Inclusive, já li alguns textos
seus sobre este tema. Mas é do conhecimento de todos que se entregou e ainda se
entrega à questão do Pensamento, da Linguagem e da Filosofia. Como conjuga
estas várias dimensões e como é que elas contribuem umas para as outras no
plano, quer académico, quer vivencial, quer dizer, para a vida dos homens em
sociedade e no seu habitar o Mundo?
1. O pensamento, mais precisamente o pensamento filosófico, interessou-me
desde criança. Em minha casa não havia biblioteca, mas os meus pais gostavam visivelmente
de pensar e revelavam capacidade para o fazer. A sua escolaridade reduzia-se ao
ensino primário de então (eu nasci em Setembro de 1938 e entrei na escola
primária em Outubro de 1945). O meu pai concluíra o ensino primário, tal como
julgo que a minha mãe. O meio era pequeno e pobre. Frequentar a escola oficial
já era só por si um privilégio. Devo dizer que foram ambos excelentes alunos: o
meu pai vocacionado para as artes e ofícios, a minha mãe claramente apelada
para o saber de humanidades. A minha mãe deve ter sido naquela vila a criança
mais dotada do seu tempo. Foi-o ao longo de toda a sua vida. Quanto ao meu pai,
aprendeu o ofício de carpinteiro, no qual atingiu para aquele meio
verdadeiramente a excelência. Somos três irmãos e todos pudemos prosseguir
estudos. Eu sou o mais velho. A nossa primeira escola foi a nossa família, que
incluiu a casa dos avós paternos e algo aproveitámos dos avós maternos. O meu interesse
pelo pensamento reflexivo manifestou-se mais claramente em casa dos avós paternos,
a partir das histórias da tradição popular portuguesa que me contavam e que me
fascinavam. Suscitavam-me imensas questões, respondendo à minha exigência pessoal
de racionalidade. Devo dizer, que de racionalidade profunda. Manifestou-se em
mim desde logo a paixão pelas questões das ultimidades. Essa paixão tem-me acompanhado
toda a vida. Comprei o meu primeiro livro aí pelos meus sete ou oito anos.
Comprei-o na escola, no contexto de uma iniciativa do meu professor - que, curiosamente,
era natural da aldeia natal do Pinharanda Gomes, Quadrazais... Foi uma escolha
de certo modo fortuita; as outras crianças foram mais céleres do que eu e escolhi,
perante o que havia ainda disponível, O Livro dos Sonhos. Durante muito tempo
li e consultei esse livro, que era uma espécie de dicionário, ordenado alfabeticamente.
A minha mãe acompanhava-me muitas vezes na leitura e foi sempre uma hermeneuta
empenhada e exigente. Mais tarde, quando pude estudar um pouco o pensamento de
Freud, acabei por verificar que aqueles sonhos eram os que constituíam o saber
do Egipto antigo sobre o assunto. Foi-me útil essa experiência numas provas de
Mestrado que arguí na Universidade do Minho. Foi-me útil sempre. Freud conhecia
aqueles sonhos. O meu avô materno era um leitor apaixonado da Bíblia e
essa circunstância veio a pesar na atenção que veio a ser prestada àquele livro.
A Bíblia deu-me indicações fundamentais para pensar no horizonte das ultimidades.
Aí a meio da minha adolescência, descobri um escritor, um romancista, de pendor
filosófico e argumentativo: Aldous Huxley. Alguns dos seus romances eram por essa
época traduzidos em Portugal e editados por uma importante editora portuguesa, a
Livros do Brasil. O primeiro que li foi Sem Olhos em Gaza (Eyeless in Gazza).
Li com entusiasmo esse romance. Era como se Huxley me provocasse
persistentemente para argumentar filosoficamente, com ele mas sobretudo com os
problemas que os personagens do romance colocavam e as discussões que tinham.
Problemas concretos, vivos, que punham em causa tudo o que eu vivia e pensava.
Vim em continuação a ler outros romances e novelas de Huxley, na atmosfera
empirista e inglesa que era a sua. Por exemplo: Contraponto; O macaco e a essência.
Muitos anos depois, vim a saber pelo António Telmo que o lado empirista do
Huxley era travejado com outros lados, mais congruentes com o meu gosto pelas
ultimidades, que fazem parte do problema fundamental para mim que é o
problema do sentido. Durante quatro anos (1950-1954) eu frequentei o
Seminário Menor de Vila Viçosa, de onde saí por ter reconhecido a falta de
vocação. O apelo das ultimidades, sempre presente e sempre forte, não passava
por ali. Depois d'O Livro dos Sonhos, já depois da saída do Seminário,
eu viera a ler outro livro marcante, A Morgadinha dos Canaviais, do
nosso Júlio Dinis, em que num certo episódio venho a saber da hipótese da
metempsicose. Era de novo o universo dos sonhos que vinha ter comigo. Assim, quando
concluí os exames do antigo 7º Ano do Liceu eu dirigi-me decididamente para o
Curso de Filosofia, na Faculdade de Letras de Lisboa. Mas entretanto eu fizera
o Curso do Magistério Primário na Escola de Évora. No mesmo mês em que ingresso
na Faculdade eu começo a trabalhar como professor do ensino primário na cidade
de Lisboa.
2. A experiência pedagógica com as crianças tornou-se apaixonante para
mim. Afinal, eu amava o mergulho no pensar e fui apanhado pelo amor de ensinar.
Cheguei a casar na minha Escola os dois amores: o amor da filosofia com o amor
da educação. Foi desse casamento que veio a nascer o meu projecto de filosofia
para crianças, que se relaciona com as histórias tradicionais que a minha avó
me contava e nada deve ao projecto do Professor norte-americano Mathew Lipman,
de que só vim a saber no final da década de oitenta. Como já percebeu, tudo
isto que lhe conto tem que ver com o gosto do pensamento e da acção formadora
do ser humano, a que conjugadamente tenho dedicado a minha vida. Fui a partir
de 1967 professor liceal de Filosofia e a partir de 1976 professor de Pedagogia
e Filosofia na Universidade. Esta conjugação levou-me a certa altura a
substituir a ideia de pedagogia pela ideia de antropagogia. Do
que se trata realmente não é, de facto, apenas de educar (ou formar) a criança,
mas o homem, o ser humano na sua integralidade e integridade. Antropagogia é
a ciência disso. Ela inclui, na plenitude da sua unidade, o compreender o homem
e o formá-lo. Kant reduz a certa altura a filosofia a uma única pergunta. Esta:
Que é o Homem? A minha dupla ligação ao pensamento e à acção coloca em
outra pergunta o problema essencial: Como formar o Homem na sua Humanitas? É
a pergunta que define o meu cuidado vital. Ela implica tudo: desde as
principialidades até às ultimidades.
3. Este itinerário compreende ainda as medialidades e as performatividades.
Aprendi, por mim próprio e por grandes mestres - como é o caso de Leonardo
Coimbra, Delfim Santos, José Marinho e José Ortega y Gasset -, que o pensar
filosófico é situado, ou circunstanciado. A fixação pensante na situação
explica muito da minha fidelidade à situação portuguesa e lusófona. Quer
estritamente filosófica, quer mais largamente antropagógica. É essa fidelidade
que explica o combate em que a certa altura me envolvi em prol do que designei
por "Escola Cultural", a partir da Comissão de Reforma do Sistema
Educativo, que integrei oficialmente. No livro Lições de Axiologia Educacional,
à educação cultural dei o nome de educação axiológica, entendendo
a cultura como sistema vivo de valores. É nesta linha teórica que me encontro
com o entendimento brunino da educação como demopedia, ou seja, como demopaideia,
paideia do e para o povo.
4. O meu abraço demopaidêutico, antropagógico e assumidamente filosófico
ao Luís de Barreiros Tavares. Abraço de vida una e diversa. A vida é diversa e
una.