DOSTOIEVSKY
O tema essencial da vida de Dostoievsky é a desgraça. Com uma ascendência em que se misturavam o melhor e o pior, êxtases de místicos e impulsos de assassinos, mas em que o tom geral era o do desequilíbrio e da doença, nasceu o escritor em Moscovo, e 12 de Outubro de 1821. O pai era médico dos hospitais e logo de início teve Dostoievsky, como ambiente de vida, as converses sobre doentes, a atmosfera lenta e mórbida dos pavilhões, as faces desalentadas e tristes dos internados; em casa, o pai comportava-se como um tirano sombrio, com crises terríveis de mau humor; todo o mundo em volta se conjurava para dar ao pequeno a impressão de que a vida era um fardo trágico, de que a nossa existência se devia passar na resignação ou na revolta, sem lugar para as construções compreensivas e serenas; o colégio, como era natural, não fez mais do que acentuar esta visão da vida e o conflito interior de Dostoievsky entre uma necessidade de expansão em que todas as forças internas lhe pareciam destruir o próprio corpo e uma timidez, um jeito de sofrer, que já o tinham desacostumado de toda a esperança e de toda a alegria; frequentou depois o curso de engenheiros militares de onde veio formado em 1843; mas o contacto com uma juventude egoísta e brutal que só pensava em divertimentos que lhe repugnavam e no diploma que os dispensaria de todo o esforço na vida, contribuiu para marcar melhor a sua visão pessimista do mundo; por outro lado, o pai morrera tragicamente em 1839, e Dostoievsky, que muitas vezes pensara no médico sem grande simpatia, e desejara até a sua morte, considerou-se como tendo contribuído ou como sendo mesmo o principal culpado do assassínio que se cometera; firmou-se-lhe no espírito a ideia de que somos responsáveis por todo o mal que existe sobre a terra, ou porque o pensamento que não apuramos vem finalmente a gerar as tragédias ou porque não fazemos todo o bem que nos seria possível realizar; em qualquer caso, os outros são maus porque não somos, nós, suficientemente bons; somos os culpados de tudo o que sucede e para os outros só deve haver da nossa parte amor e perdão; é evidente que tal ponto de vista não é de inteira lógica e que, se eu tenho as culpas da desgraça dos outros, os outros, porque não sou sozinho no mundo, terão a culpa da minha própria desgraça de ser mau: chegar-se-ia assim a uma culpa de todos e de nenhum; mais tarde Dostoievsky atingiu uma concepção mais coerente e defensável: as suas melhores personagens, as que representam verdadeiramente o seu espírito, já não têm talvez muito a noção da culpa e perdoam, a si próprios como aos outros; a busca e a aceitação do castigo, que tanta vez aparece em Dostoievsky, vem mais dum desejo de sofrer, duma concepção da pena como redentora pela dor do que propriamente da ideia de que haja reais culpas no que se pratica na vida; o pensamento de que os outros são nossas vítimas ou de que, pelo menos, são as vítimas de uma ordem universal que se apresenta implacável, leva-nos a ter pelo nosso semelhante piedade e amor; não ter amor pelos homens, pelos animais e até pelas coisas é o pior de todos os pecados, o único verdadeiramente indesculpável, o que não se percebe, visto que os pecados são todos da mesma natureza; seja como for, Dostoievsky chega, e segundo parece sem grande influência da Igreja, a uma concepção do mundo em que há todos os elementos basilares do cristianismo, pelo menos tal como ele nos aparece na sua evolução histórica: aceitação da ideia de culpa e da ideia de sofrimento redentor, amor imenso de todos os que partilham connosco a desgraça de viver; a mais do que no cristianismo tradicional e coexistindo estranhamente com a noção do pecado, defendeu Dostoiesvsky a ideia do amor por si próprio e, portanto, de perdão pelo que se faz. Olhando em sua roda, via Dostoievsky que, dentre todos os seres que sofrem, um sofre talvez mais do que todos: o camponês russo; apesar das excelentes qualidades que possui, apesar de se ter guardado da civilização corruptora, o mujique, oprimido por todos, incapaz de se exprimir, é uma alma lamentável e merece que se trabalhe pela sua libertação; é esse desejo duma vida nova para a Rússia, que o leva à conspiração de 48 e, depois duma cena atroz de simulacro de execução, ideada por um tzar humanitário e pedagogo, ao desterro na Sibéria, onde, durante quatro anos, convive com todos aqueles que os grandes da terra consideram réprobos; a opinião de Dostoievsky era completamente diversa e ao contacto dos criminosos mais se enraizou o seu cristianismo; a vida que ambiciona é a do apóstolo e todos os seus melhores livros vão ser mensagens cristãs, vão ser novos sermões da montanha, pregados, não por uma figura ideal, entre árvores e águas, a discípulos atentos, mas por ladrões, por doidos, por prostitutas, nas ruelas e nas mansardas dos bairros pobres, aqueles que a sociedade inutiliza e repele; todo o gosto de domínio é condenado, todo se exalta o ser humilde; sofrer é a grande missão; a melhor recompensa duma vida pura é a ofensa que se recebe e se perdoa. O tema liga-se intimamente ao da excelência do povo russo e ao da missão que ele tem a desempenhar no mundo; para Dostoievsky, o povo russo há-de ser como um Cristo colectivo e há-de ensinar as outras nações, perdidas na soberba e no luxo, a viverem uma vida de espírito; por isso repele todos os que vêem a revolução como puramente material: para ele, a «Ocidentalização» da Rússia é mais um sofrimento, um martírio imposto ao povo; o que interessa é a revolução nas almas: para essa estão preparados os russos, por essa hão-de salvar o mundo. Este sofrimento da Rússia repercute-se em Dostoievsky e em cada desastre da sua vida, nos contínuos desastres da sua vida, desde a morte do pai até aos ataques da doença que o abate finalmente em 1881, vê o escritor o reflexo do que padece o seu povo; mais o ama por isso; a dor e o amor são os dois pólos de todo o pensamento de Dostoievsky, os dois motivos dominantes da sinfonia trágica, sombria, que a sua obra constitui. São dois bons guias para que se conheça a psicologia humana, sobretudo a das camadas sociais que mais têm sentido a dureza de viver; foi porque elas possuíam inteiramente a sua alma que Dostoievsky conseguiu dar-nos, no CRIME E CASTIGO, nos IRMÃOS KARAMAZOV, donde se extraiu o presente caderno, em HUMILHADOS E OFENDIDOS, no IDIOTA, na CASA DOS MORTOS, em muitas das novelas, uma das mais penetrantes visões, senão a mais penetrante, do sofrimento dos homens; e o seu próprio sofrimento, com a morte da primeira mulher, o amor de Paulina, a morte do irmão, os embaraços financeiros, os ataques de epilepsia, dá-lhe a possibilidade, que é essencial num artista, de ter dentro de si mesmo todas as dores, todos os remorsos, toda a luta interior que aparece nas suas personagens, e de a descrever com um realismo, com uma verdade que não são, no entanto, incompatíveis com um ambiente flutuante e fantástico de mau sonho. A impossibilidade, interior e exterior, de uma composição cuidada, o estilo sem preocupações literárias, a própria inferioridade das anedotas sobre que baseiam os seus livros, contribuem para dar aos romances de Dostoievsky uma sinceridade e uma força de convicção que talvez não possua nenhuma outra obra de escritor. O seu pensamento é ilógico e talvez se deva tomar sobretudo como a representação, noutro plano, da sua epilepsia e das suas condições de vida; o seu desprezo, ou as suas impossibilidades, de estética literária são quase completas; mas a obra de Dostoievsky é uma das maiores e das mais fortes que o mundo produziu, pela constância do amor, pela profundidade da tragédia, pela absoluta sinceridade com que este homem examinou a sua alma e, por ela, a alma de todos que na terra vivem e morrem mergulhados na dor.
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