A Águia, órgão do Movimento da Renascença Portuguesa, foi uma das mais importantes revistas do início do século XX em Portugal. No século XXI, a Nova Águia, órgão do MIL: Movimento Internacional Lusófono, tem sido cada vez mais reconhecida como "a única revista portuguesa de qualidade que, sem se envergonhar nem pedir desculpa, continua a reflectir sobre o pensamento português". 
Sede Editorial: Zéfiro - Edições e Actividades Culturais, Apartado 21 (2711-953 Sintra). 
Sede Institucional: MIL - Movimento Internacional Lusófono, Palácio da Independência, Largo de São Domingos, nº 11 (1150-320 Lisboa). 
Contactos: novaaguia@gmail.com ; 967044286. 

Donde vimos, para onde vamos...

Donde vimos, para onde vamos...
Ângelo Alves, in "A Corrente Idealistico-gnóstica do pensamento português contemporâneo".

Manuel Ferreira Patrício, in "A Vida como Projecto. Na senda de Ortega e Gasset".

Onde temos ido: Mapiáguio (locais de lançamentos da NOVA ÁGUIA)

Albufeira, Alcáçovas, Alcochete, Alcoutim, Alhos Vedros, Aljezur, Aljustrel, Allariz (Galiza), Almada, Almodôvar, Alverca, Amadora, Amarante, Angra do Heroísmo, Arraiolos, Assomada (Cabo Verde), Aveiro, Azeitão, Baía (Brasil), Bairro Português de Malaca (Malásia), Barcelos, Batalha, Beja, Belmonte, Belo Horizonte (Brasil), Bissau (Guiné), Bombarral, Braga, Bragança, Brasília (Brasil), Cacém, Caldas da Rainha, Caneças, Campinas (Brasil), Carnide, Cascais, Castro Marim, Castro Verde, Chaves, Cidade Velha (Cabo Verde), Coimbra, Coruche, Díli (Timor), Elvas, Ericeira, Espinho, Estremoz, Évora, Faial, Famalicão, Faro, Felgueiras, Figueira da Foz, Freixo de Espada à Cinta, Fortaleza (Brasil), Guarda, Guimarães, Idanha-a-Nova, João Pessoa (Brasil), Juiz de Fora (Brasil), Lagoa, Lagos, Leiria, Lisboa, Loulé, Loures, Luanda (Angola), Mafra, Mangualde, Marco de Canavezes, Mem Martins, Messines, Mindelo (Cabo Verde), Mira, Mirandela, Montargil, Montijo, Murtosa, Nazaré, Nova Iorque (EUA), Odivelas, Oeiras, Olhão, Ourense (Galiza), Ovar, Pangim (Goa), Pinhel, Pisa (Itália), Ponte de Sor, Pontevedra (Galiza), Portalegre, Portimão, Porto, Praia (Cabo Verde), Queluz, Recife (Brasil), Redondo, Régua, Rio de Janeiro (Brasil), Rio Maior, Sabugal, Sacavém, Sagres, Santarém, Santiago de Compostela (Galiza), São Brás de Alportel, São João da Madeira, São João d’El Rei (Brasil), São Paulo (Brasil), Seixal, Sesimbra, Setúbal, Silves, Sintra, Tavira, Teresina (Brasil), Tomar, Torres Novas, Torres Vedras, Trofa, Turim (Itália), Viana do Castelo, Vigo (Galiza), Vila do Bispo, Vila Meã, Vila Nova de Cerveira, Vila Nova de Foz Côa, Vila Nova de São Bento, Vila Real, Vila Real de Santo António e Vila Viçosa.
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sábado, 4 de outubro de 2008

Cadernos de Agostinho da Silva (excertos)


Go­mes Eanes de Azurara

Nada se sabe de seguro acerca de data de nascimento e da naturali­dade de Azurara; é possível que tivesse nascido por 1410 e hesita-se entre a Azurara do Minho e a que fica junto de Mangualde; supõe-se que era filho de um cónego e que a primeira educação não foi muito apurada; foi talvez soldado quando novo, mas parece não se ter notabilizado na guerra; em 1454 foi nomeado sucessor de Fernão Lopes, como guarda das escrituras da Torre do Tombo e decerto como cronista-mor; ao contrário do que sucedeu com Fernão Lopes, Gomes Eanes foi, segundo parece, sôfrego de honrarias e dinheiro; recebeu várias pensões, foi cavaleiro de Cristo e, adoptado como filho per uma peliceira rica, veio a herdar-lhe a fortuna. É provável que Azurara tenha começado os seus trabalhos de escritor traduzindo um romance de cavalaria, mas a obra perdeu-se; o que nos resta dele é constituído pela Crónica de D. João I, terceira parte, visto que as outras duas já tinham sido compostas por Fernão Lopes, pela Crónica dos feitos da Guiné e pelas Cró­nicas de D. Pedro e D. Duarte de Meneses; a Crónica de D. João I quase só narra a tomada de Ceuta e parece que levaram a isto as mesmas razões que fizeram Fernão Lopes suspender a redacção do trabalho: a muitos dos que tinham triunfado com D. João I não convinha que se narrassem as proezas cometidas posteriormente à guerra e que nem sempre eram abonató­rias de honestidade e patriotismo. A Crónica dos feitos da Guiné, composta sobre apontamentos de Afonso de Cerveira, é uma apologia do infante D. Henrique, com falseamento de factos históricos, ocultamento da acção de outras pessoas, por exemplo, do Infante D. Pedro, e passagem demasiado rápida sobre episódios que não convinham à lenda da sua personagem: é o que sucede com o desastre de Tânger e o recontro de Alfarrobeira; a Crónica é, no entanto, valiosa pelas informações que nos dá sobre as navegações dos portugueses no tempo do Infante e sobre a colonização das ilhas atlânticas, mas principalmente porque, mesmo através dos elogios e dos artifícios, se descobre um D. Henrique bastante diferente das imagens vulgares: é menos um navegador do que um guerreiro, menos um iluminado, um sonhador, do que um negociante, menos um homem de ciência do que um prático, atento ao menor risco e aos ganhos seguros de sete por um. As Crónicas dos Me­neses, de que o primeiro foi governador de Ceuta e o segundo morreu em Alcácer Ceguer em defesa de D. Afonso V que se arriscara numa incursão, são úteis para o conhecimento do carácter da acção dos portugueses no norte de África e põem bem a claro o móbil económico de quase todos os empreen­dimentos. Gomes Eanes, que escreve geralmente mal, que narra sem a viva­cidade, o interesse artístico de Pernão Lopes, que a cada passo se deixa arrastar pelo seu gosto da filosofia escolástica, mal compreendida, e da astro­logia, tem sido julgado muito diversamente como historiador; pode, no entanto, dizer-se que é exacto onde o não contraria qualquer interesse da personagem que estuda e onde não há motivo para receios quanto à sua posição; sabe-se mesmo que trabalhou por se documentar bem; nos outros pontos é bastante falível, tendo que se proceder sempre com todo o cuidado quando o temos como único narrador de determinado acontecimento. Go­mes Eanes de Azurara morreu em 1474.

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Cadernos de Agostinho da Silva (excertos)



DIOGO DO COUTO

Diogo do Couto nasceu em Lisboa em 1542 e foi criado no palácio do infante D. Luiz, filho de D. Manuel e pai do Prior do Crato; recebeu a educação habitual na época, tendo sido aluno de latim do P.e Manuel Alvares, autor da Arte ou gramática por onde aprenderam numerosas gerações; foi seu mestre de filosofia Fr. Bartolomeu dos Mártires, dominicano, depois Arcebispo de Braga. Quando morreu o infante, foi Diogo do Couto, como moço de câmara, para os paços reais, dai saindo, em Março de 1559, e seguindo o movimento geral do tempo, para embarcar na frota de Pêro Vaz de Sequeira, que se dirigia para a Índia. Pelo Oriente, entrou em várias campanhas e expedições que não tinham interesse de maior porque passara o grande período dos descobrimentos e conquistas e que eram provocadas quase sempre ou por disputas entre os vários reis indígenas ou pela necessidade de castigar quem não tinha fornecido bastante especiaria aos portugueses ou para se conseguirem, e mesmo se defenderem de concorrentes, novas fontes de mercadorias. Em 1569 voltou para o reino com D. António de Noronha e em Moçambique encontrou, muito pobre, comendo de amigos, Luiz de Camões que, segundo parece, terminara o seu poema e coligia as poesias líricas; obteve passagem para o poeta e chegou a Portugal, na «Santa Clara» em Abril de 1570. Não se demorou mais de um ano e regressou à Índia, com emprego nos armazéns de mantimentos; só em 1595 o rei, nessa altura Felipe II de Espanha, o encarregou de organizar o Arquivo de Goa e de con¬tinuar a crónica da Índia que João de Barros tinha principiado; as dificuldades foram grandes; em primeiro lugar, tinha que trabalhar como guarda-mor, passando certidões a quem precisava de atestar os seus serviços, o que não só lhe fazia perder tempo, como também era mina de conflitos, visto poucos terem grande interesse em que se passasse certidões verdadeiras e não estar Diogo do Couto na disposição de seguir as pisadas dos seus antecessores; em segundo lugar, os organismos burocráticos resistiam quanto podiam a mostrar-lhe documentos para que pudesse escrever a sua história: tais proezas se tinham realizado no Oriente que o melhor seria satisfazer o menos possível a curiosidade de um homem honesto, duro, pouco disposto a descrever os acontecimentos segundo as conveniências de cada um; as influências junto do rei chegaram a ponto de este mandar abrir, por intermédio do vice-rei, um inquérito secreto; Diogo do Couto batia-se sempre, mas às dificuldades do historiador vieram juntar-se as financeiras; pagavam-lhe pouco e era à sua custa que tinha de mandar imprimir as Décadas, cuja venda era lenta e pouco compensadora; ao mesmo tempo, vê a irremediável decadência do Império, a falta de dignidade e de bom senso, até de coragem, de que a cada passo vão dando provas os portugueses; a grande geração passara, todo o esforço era inútil, toda a tentativa de moralização uma empresa de loucos. Parece ainda que a infelicidade persegue as suas obras: a Quarta Década, em seguimento às de João de Barros, ainda se publicou sem transtornos, mas a quinta foi censurada, da sexta arderam quase todos os volumes, o manuscrito da sétima perdeu-se numa nau tomada pelos ingleses; da oitava e da nona, ambas furtadas, teve Diogo do Couto de fazer um resumo; o original do Soldado Prático, em que expunha o que era, nos últimos anos, o domínio da Índia, foi também roubado e teve de o escrever segunda vez, mais solidamente quanto ao fundo, mas em estilo mais complicado e confuso; é desta segunda versão que se extrai o presente caderno. As cartas de Diogo do Couto escritas já perto da morte são melancólicas e sem esperança; tudo se tinha perdido em Portugal, mesmo a hipocrisia; era tempo de acabar; e acabou em Goa, a 10 de Dezembro de 1616.

sábado, 20 de setembro de 2008

Cadernos de Agostinho da Silva (excertos)

GUIZOT

Guizot nasceu em Nimes a 4 de Outubro de 1787 e, feitos alguns estudos em Genebra, voltou a França e cursou em Paris a Faculdade de Direito, em que se doutorou. Em 1812, Fontanes nomeou-o professor de his­tória na Sorbonne, mas não conseguiu que o seu protegido, na lição de abertura, fizesse qualquer referência elogiosa a Napoleão, como era costume; Guizot mostrava ao mesmo tempo que já estava formado o seu corpo essen­cial de doutrina e que por nenhum motivo se curvaria a qualquer influência que tentasse desviá-lo do que pensara; parecia a Guizot que Napoleão, se realizara bom trabalho dominando os excessos revolucionários, trazendo à França s ordem que a burguesia julgara haver-se quebrado para sempre, fora também longe de mais e enveredara por uma tirania e por uma politica de expansão que não podiam deixar de trazer consequências desastrosas; enten­dia que o único governo possível para a França era um governo moderado que pusesse em prática o que a revolução trouxera de bom, isto é, que dei­xasse a classe média exercer o poder político e enriquecer à sua sombra, tra­vando, se fosse necessário pela violência, todo o ataque dos reaccionários ou dos desordeiros que pretendiam não ser a burguesia a classe que tinha direito às vantagens da revolução; repugnava-lhe qualquer extremismo, e a sua política havia de ser sempre a do burguês mediano, liberal, na medida em que a liberdade o não pusesse em perigo, respeitador das ideias estabele­cidas, da magistratura, da força armada, das universidades e das academias; era, segundo ele, uma política de bom senso, de «justo-meio», e nada o irritava mais do que tudo o que saia do nível ordenado de rebanho, do que tudo o que representava uma explosão de originalidade e de individualismo; era dos cristãos que teriam condenado Cristo, dos liberais que teriam elimi­nado Diderot ou Voltaire. Ao serviço das suas ideias punha Guizot uma coragem inflexível, uma certeza que nunca abria a menor brecha, uma con­vicção estrutural e cândida de que ordem do mundo e ordem burguesa eram idênticas, de que toda a história tendia a um regime moderadamente liberal e de que nada mais havia a fazer senão bater-se com todas as forças por que se realizassem tão altos desígnios da Providência. A inteireza de Guizot é absoluta: é um homem que defende os privilégios do dinheiro e da posição, que está contra todos os que ousam ser diferentes, que nada vê mais elevado do que a burguesia, e que o faz desinteressadamente porque está apenas exprimindo as suas tendências mais profundas, porque está procurando que vingue o que julga ser um bem universal. A queda do Império deu-lhe possibilidade de entrar na política: Royer-Collard nomeou-o para uma direcção geral do Ministério do Interior; depois dos Cem Dias e de Wa­terloo foi secretário geral do Ministério da Justiça, em 1818 conselheiro de estado e director da administração. Em 1820, voltou à Sorbonne, mas dois anos depois o ministério Villèle fechou-lhe o curso, por causa da oposição vigorosa de Guizot à politica do governo; é então que escreve os seus me­lhores livros de história da França e da Inglaterra — Essai sur l'histoire de France, Histoire de la Révolution d'Angleterre — em que se mostra como tudo concorreu para a elevação da classe média e se eliminam todos os que tiveram a audácia de se mostrar indivíduos: a história perde assim em pito­resco e em variedade, mas ganha em solidez e força demonstrativa. Em 1828 regressou à Universidade e fez os cursos depois reproduzidos na Histoire générale de la civilisation en Europe, donde se extrai o presente caderno, e na Histoire générale de la civilisation em France. Eleito deputado em 1830, tomou parte importante na revolução que chamou ao trono Luiz Filipe e que estabeleceu a monarquia ideal do «justo-meio»; foi ministro do Interior no governo Sault, ministro e embaixador em Londres, ministro dos Estrangeiros, lugar em que teve ocasião de se mostrar contrário ao movimento unificador da Itália. Em 1848, com a revolução republicana, tornou-se impo­pular e refugiou-se em Inglaterra, donde voltou três anos depois, com von­tade de reentrar na vida pública, mas sem oportunidade de o fazer; dedi­ca-se a trabalhos literários e morre a 12 de Outubro de 1854.

Cadernos de Agostinho da Silva (excertos)

LICHNOWSKY

Félix de Lichnowsky, filho de Eduardo Maria de Lichnowsky, nasceu a 5 de Abril de 1814; depois dos estudos elementares, serviu no exército prussiano, tendo abandonado o seu regimento para militar em Espanha, nas fileiras do príncipe D. Carlos, em 1838; chegou a desempenhar o cargo de ajudante do príncipe, mas em 1840 regressou à Alemanha; conhecia já nesta altura uma grande parte da Península, mas a sua curiosidade das paisagens, dos costumes, da organização social, levou-o, dois anos depois, a empreender uma viagem pelo nosso pais, finda a qual fixou residência numa sua proprie­dade da Silésia. Em 1847 fez parte do Parlamento de Francfort e as suas tendências políticas levaram-no a tomar lugar entre os membros conserva­dores da assembleia; a sua contínua oposição, acentuada por vezes pela iro­nia, levantou as cóleras do partido adverso, cujos elementos mais exaltados esperavam apenas uma ocasião de se vingar; chegou ela quando foi anun­ciado que se firmara um armistício com a Dinamarca: houve tumultos nas ruas e num deles foi assassinado Lichnowsky, a 18 de Setembro de 1848. O seu livro sobre Portugal foi logo traduzido para a nossa língua, alcançando segunda edição no ano de 1845; foi desta edição portuguesa, a que o tradu­tor juntou notas que esclareciam ou corrigiam certas informações, que se extraía o presente caderno. O livro principia pela descrição da viagem desde Mogúncia a Lisboa, com escala por Rotterdam, Londres, Southampton, Fal­mouth e Vigo; fala da miséria da Espanha, com veneração pelas qualidades do povo e censura pela incapacidade dos dirigentes; depois, a partir da em­bocadura do Minho, descreve a costa de Portugal, fazendo, a propósito do Mindelo, algumas considerações sobre a guerra entre liberais e miguelistas. A chegada a Lisboa dá ocasião a que se pinte a vista da cidade e se faça um primeiro contacto com os costumes portugueses — o arranjo da hospedaria, a ementa do jantar, o teatro, os hábitos da rua; segue-se uma visita ao duque da Terceira, com quem trava relações mais apertadas e que põe, com o duque de Palmela e Costa Cabral, no primeiro plano das personalidades do país. Vêm depois notas sobre Sintra, Queluz, Benfica, o aqueduto das Aguas Livres, o Palácio das Necessidades, entremeadas com observações sobre a política, o exército e um resumo do estado das relações entre o Estado e a Igreja (Cap. II). No III Capítulo, escreve Lichnowsky sobre os partidos políticos, com grande imparcialidade, e salientando sempre a falta de educa­ção cívica dos portugueses, a vivacidade dos seus ódios políticos, o gosto da retórica, a incompetência quase geral dos chefes; juntamente com uma des­crição da visita a igrejas e edifícios notáveis de Lisboa, dá-nos algumas pági­nas sobre as corridas de touros, Alhandra e Sobralinho. No Capítulo seguinte começam as digressões pelo país, com excursões pelo Vale de Zebro, Palmela, Setúbal, Arrábida, Sintra, a que sucedem viagens à Figueira, a Coimbra, a Aveiro, ao Porto, a Braga e Guimarães, ao Buçaco, a Leiria, Alcobaça e Batalha, o que dá ao autor bastante oportunidade para descrição, para reflexões sobre o estado económico do país, ao mesmo tempo que vai fornecendo várias notícias históricas. O Capítulo VI e último do livro é dedicado à saída de Portugal, com viagem por Cádis, Sevilha, Gibraltar e outras cidades de Espanha, e o episódio da prisão do autor em Barcelona, como carlista. A obra de Lichnowsky, embora com os erros e observações superficiais que eram quase inevitáveis, marca bem certos aspectos do Portu­gal da época e até, através dos acontecimentos de momento, algumas características mais fundas da nação: a intolerância politica, a incapacidade de organizar, o desleixo material, a ignorância, o gosto da ostentação, tudo isto ligado a excelentes qualidades de imaginação, compreensão viva e rápida, e, no povo, de trabalho persistente e honesto.

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Cadernos de Agostinho da Silva (excertos)

HARVEY

William Harvey nasceu em Folkstone a 2 de Abril de 1578 e, feitos os estudos preparatórios na escola de Canterbury, passou, aos 15 anos de idade, para o Cains College, de Cambridge, donde, em 1596, saiu formado; como o ensino da especialidade a que tencionava dedicar-se, medicina, não estava bastante desenvolvido na Inglaterra, partiu para Pádua, onde, em 1602, depois de ter estudado anatomia com Fabricius de Aquapendente e de ter tra­balhado com Julius Casserius, lhe conferiram o grau de doutor; no regresso a Inglaterra foi também doutorado pela universidade de Cambridge. Esta­belecendo-se em Londres, foi em 1607 eleito membro do Colégio de Médi­cos; dois anos depois era médico do hospital de S. Bartolomeu e em 1615 nomearam-no professor de anatomia do Colégio. Deve ter sido em 1616 que Harvey principiou a expor nas suas aulas as ideais fundamentais da obra que sobre a circulação do sangue publicou, 12 anos mais tarde, em Frankfort­-am-Maine; fez numerosas experiências, consultou todos os autores que já tinham tratado do assunto, meditou cuidadosamente todas as objecções que lhe levantavam; e foi a instâncias dos amigos que se decidiu a publi­car o livro, visto que desejava dar-lhe ainda mais sólidos fundamentos científicos. Apesar de já se ter posto a ideia de que o sangue circulava, por exemplo com Servet e Realdo Colombo, certo é que só o De Motu Cordis et Sanguinis ofereceu base suficiente para que o problema se discutisse segundo as boas regras da ciência: Harvey apresentava-se com um perfeito conhecimento dos pormenores, com uma perícia técnica que ninguém igua­lava, com uma documentação abundante e uma exposição clara e precisa; mas, como de costume, houve batalha; Descartes, no Discurso do Método, 1637, fez sua a opinião do médico inglês, mas os adversários foram numerosos e tenazes; pare eles, Harvey era um louco ou um mistificador, e de tal modo se organizou o ataque que a maior parte dos doentes de Harvey o abandonou, convencida de que a sua vida corria risco nas mãos do ino­vador; Carlos I, o rei depois decapitado, tomou outro caminho, interessou-se pela descoberta e nomeou-o seu médico; Harvey respondia às objecções com uma grande calma, nunca retorquindo duramente ao contraditor que dura­mente o atacava, mantendo sempre a questão acima de todo o nível pessoal. Embora médico do rei, e tendo-o seguido no exílio de Oxford, não se interessava pela política, o que não o livrou, no entanto, da gente do partido contrário lhe ter destruído papéis importantes. Em 1651, e outra vez por insistência dos amigos, publicou o De generatione animalium, em que defende a ideia, só confirmada em 1827, de que todos os animais provêem de ovos. Os últimos anos da sua vida foram passados num isolamento quase total, vindo a falecer em 3 de Junho de 1667. Apesar de não lhe ter sido possível, por deficiência de meios técnicos, descobrir a existência dos capila­res, que só Malpighi reconheceu em 1661 no seu livro De pulmonibus, Harvey expôs todo o sistema de circulação do corpo humano: foi o primeiro a demonstrar que é a contracção que coincide com a pulsação; que os ven­trículos são sacos musculares que lançam o sangue para a aorta e para as veias pulmonares; que a pulsação é produzida pelo facto de as artérias se encherem de sangue; que o septo do coração não tem buracos para a passa­gem do sangue; que o sangue do ventrículo direito vai para os pulmões e depois, pelas veias pulmonares para o ventrículo esquerdo, daí para as arté­rias, depois, pelas veias mais pequenas para as veias cavas, depois ainda para o ventrículo direito; que o sangue das artérias e o das veias são o mesmo; que existe nas veias uma constante corrente de sangue que se dirige para o coração; finalmente, que o ponto de partida dinâmico do sangue não é o fí­gado, como muitos julgavam, mas sim o coração.

terça-feira, 16 de setembro de 2008

Cadernos de Agostinho da Silva (excertos)


FREI LUIZ DE SOUSA

Manuel de Sousa Coutinho nasceu em Santarém, por volta de 1555 e, feitos os estudos preparatórios, frequentou, segundo parece, a Universidade de Coimbra, não tendo, no entanto, concluído o seu curso de Direito. Em 1576, entrou como noviço na Ordem de Malta em que não chegou a pro­fessar porque, quando se dirigia da Sardenha para a ilha, foi aprisionado por um corsário argelino; é possível que, durante o seu tempo de cativeiro, tivesse entrado em relações com Cervantes, mas o facto não está averiguado; quando o resgataram, veio por Valência onde se tornou amigo do poeta e matemático Jaime Falcó e só depois de 1578 entrou em Portugal, casando, uns sete anos depois, com D. Madalena de Vilhena que, em primeiras núpcias, se consorciara com D. João de Portugal, companheiro de D. Sebas­tião em Alcácer Quibir e morto com ele na batalha. Manuel de Sousa pas­sou a viver em Almada e aceitou do rei D. Filipe o comando de forças do exército; foi em Almada que Manuel de Sousa incendiou o próprio palácio para não alojar os governadores do reino, mais por motivos particulares do que patrióticos, ao contrário do que se vê no Frei Luiz de Sousa de Garrett. Depois dum exílio em Espanha e duma breve estada em Portugal, seguiu para o Panamá, navegando mais tarde pelos mares da Índia e só voltando ao pais por 1604; nove anos depois, separou-se da mulher, ingressando ele no convento de S. Domingos com o nome de Luiz, ela no do Sacramento com o nome de Madalena das Chagas; desconhecem-se as causas da separação, parecendo lendária a versão aproveitada por Garrett: todas as notícias dão como segura a morte de D. João de Portugal e não é de aceitar que só 35 anos depois da batalha o fidalgo desse novas suas; é mais provável que tivessem agido como determinantes o gosto do estudo, o cansaço de uma vida bastante agitada, a morte da filha, ocorrida entre 1604 e 1613 (não como Garrett o faz — e com mau teatro — na ocasião de professarem os pais) e ainda o divórcio do seu muito amigo D. Luiz de Portugal. Manuel de Sousa levou como frade uma vida exemplar que muito se aproximava da do seu biografado D. Frei Bartolomeu dos Mártires, arcebispo de Braga, o que não quer dizer que tivesse quebrado todo o contacto com o mundo; veio a falecer em Benfica em Maio de 1632. Por encargo dos seus superiores, escreveu Frei Luiz de Sousa a Vida do Arcebispo e a História de S. Domin­gos que o seu antecessor Frei Luiz de Cácegas deixara em apontamentos, esses mesmo a completar em muitos pontos; a Vida foi publicada em 1619, à custa da cidade de Viana; dos seis livros em que está dividida, ocupam-se os cinco primeiros da vida e carácter de D. Frei Bartolomeu e o último, que é uma espécie de apêndice, da cerimónia da trasladação e enterramento. Da História de S. Domingos publicou-se a primeira parte em 1623, as outras duas, já morto o autor, em 1662 e 1678: é, depois da narrativa da vida de S. Domingos, uma série de monografias de conventos, um registo dos acon­tecimentos mais notáveis, descrições dos edifícios, biografias de religiosos ilustres. Em 1844, publicou Herculano nos Anais de D. João III, cujo manuscrito se julgava perdido e que Frei Luiz de Sousa compôs, por ordem de Filipe IV, em 1630; os Anais não têm grande valor literário. Frei Luiz de Sousa é um dos melhores escritores portugueses e, porventura, dos nossos clássicos, aquele que soube ser mais simples, nem uma única vez se deixando arrastar pela moda do gongorismo; jamais se turva o seu claro dizer e em­bora tenha, como todos os verdadeiros artistas, a plena consciência de o ser, o que o faz, por vezes, entrar em páginas que são, deliberadamente, páginas de antologia, certo é que para ele o principal foi sempre o assunto, nunca a maneira de o narrar; há na prosa de Frei Luiz de Sousa um sossego, uma sincera candidez, uma delicadeza que são um puro reflexo da sua alma tran­quila, indulgente, e que estão de acordo com os traços fundamentais do seu tema; tudo nos aparece cheio de religiosa gravidade, de compassado movimento, de finura, de modéstia, por vezes de graciosa ironia, mesmo em cer­tos passos — e é talvez este o seu único defeito — em que se requeria um estilo mais nervoso e enérgico.

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Cadernos de Agostinho da Silva (excertos)


FLAUBERT

Gustavo Flaubert nasceu em 1821 e morreu em 1880. O pai era cirur­gião do hospital de Rouen e nesta cidade se conservou Flaubert até 1840, fazendo nela os seus estudos elementares; começou a escrever desde muito cedo e pode dizer-se que os problemas essenciais que tratou na sua obra e até um certo número de figuras a que deu maior relevo se encontravam for­muladas no seu espírito por volta dos 15 anos: daí por diante houve à sua volta, com as leituras, as viagens, a experiência da vida, um trabalho de amadurecimento, de enriquecimento, de contínua cristalização; Flaubert não é de maneira alguma, nem no género dos livros nem nos processos de trabalho, o tipo do artista romântico que avança por inspirações, sem uma faina minu­ciosa de construção e de crítica; por vezes mesmo, em certos exageros de concepção ou de estilo, há um esforço demasiado aparente, uma consciência de bom operário que de algum modo oprime o criador; na correspondência, como era natural, Flaubert é muito mais vivo, mais espontâneo e talvez mais penetrante do que nos seus romances ou contos; mas também é verdade que a solidez de arquitectura, o gosto exacto do que poderíamos chamar a deco­ração, a perfeição da prosa, os inteligentes estudos psicológicos, os fortes quadros sociais se encontram, como não podia deixar de ser, nas páginas que, pacientemente, procurando o tom único e a palavra única, escreveu, reescre­veu, nunca satisfeito com a primeira forma que se lhe apresentava no espí­rito. Todo o seu temperamento o inclinava, por um lado, para o sonho, por outro lado para o miúdo trabalho literário; houve ainda uma tentativa de Direito, logo abandonada, ante a repulsa íntima do espírito; acrescia ainda que o seguir a carreira da advocacia ou da magistratura o lançaria na acção fazendo-o tomar contacto com a estupidez da humanidade, que Flaubert considerava como um dos factos fundamentais e insondáveis da vida; só como artista essa estupidez humana o poderia enamorar, pela necessidade de lhe dar nos livros representação condigna: quando, já no fim da vida, es­creve Bouvard et Pécuchet, Flaubert ama e detesta a estupidez, com uma exaltação lírica e com um poder agudo de análise que fazem da seu livro incompleto, e por esses aspectos, o digno irmão do D. Quixote de Cervan­tes. Não podia, porém, ser esse o eixo fundamental da sua existência como artista, ou melhor, a sua preocupação única: outra existe tão poderosa como ela e com ela intimamente ligada; na Madame Bovary ou na Salammbô sen­te-se sobretudo o anseio de evasão pelo sonho, de criação de um mundo à parte onde se possa viver uma vida diferente, uma vida mais alfa; na Bovary, os sonhos apaixonados acabam no arsénico porque, segundo Flaubert, o mundo actual — e eis aqui outra ideia de Cervantes — já não comporta a possibili­dade de sonhar; os Charles Bovary, os Leon, os Homais, são numerosos demais para que o sonho seja livre; mas no mundo antigo, no mundo em que esvoaçam sobre a terra os véus de Tanit, pode sonhar Amílcar, ou Salammbô, ou Spendius, ou Mathô; sonhar a vida inteira e acabar sonhando; no en­tanto, o tom nostálgico, a indefinível saudade, o desastre final de toda a existência, mostram bem que mesmo aqui Flaubert se não afasta da sua concepção trágica da vida, que, para ele, todo o homem sensível, em todo o tempo, tem, como dádiva dos deuses, uma luta dramática entre as suas aspi­rações e a implacável ordem do universo; mesmo os mais humildes, mesmo os que parecem mais alheios ao sofrimento: no Coeur Simple há um drama — uma cândida resignação que é no fundo mais trágica do que a cena dos comícios na Bovary ou os leões crucificados da Salammbô. A ligação deste sentido trágico da vida, que aparece em todos os grandes artistas, com a po­derosa imaginação e uma capacidade quase única de representação realista dos quadros, não pela acumulação de pormenores, com um Zola, mas pela escolha inteligente, pela busca dos que são verdadeiramente característicos, fazem de Flaubert um dos mais profundos e amplos escritores que podere­mos encontrar: e é talvez na Education Sentimentale e na Tentation de Saint Antoine que melhor surpreendemos todas as suas possibilidades como pensador e como artista, sem nos deixarmos iludir pelo que parece menor esforço de composição, menos cuidada elaboração de materiais, e é apenas uma representação mais realista da vida que, pelo menos a olhos humanos, também se não elabora nem compõe.

domingo, 14 de setembro de 2008

Cadernos de Agostinho da Silva (excertos)


HERÓDOTO

As datas da vida de Heródoto não estão seguramente estabelecidas; deve ter nascido em Halicarnasso, colónia que os dórios tinham fundado e que estava submetida aos persas, por volta de 480 antes de Cristo; apesar das circunstâncias da fundação da cidade e de ela estar incluída no império dos persas, foi a civilização jónia a que mais influência exerceu sobre Heródoto, até na língua que mais tarde utilizou como escritor; cerca dos vinte anos, devido a lutas políticas, abandonou a cidade e refugiou-se em Samos, tendo estado também em Atenas, o que deve ter contribuído bastante para equili­brar no seu espírito e as fundir num todo a corrente dória e jónia que nele coexistiam; deve ter em seguida partido para algumas viagens, talvez de pouca duração, e voltado a Atenas onde travou relações com Péricles e Só­focles; não se sabe se é por esta altura ou mais tarde que se deve colocar o episódio da leitura pública de um trecho da sua obra; por 444 antes de Cristo, fixou-se na cidade de Túrio, na Itália meridional, onde se tinham estabelecido colonos gregos de várias origens, mas a estadia não foi, segundo parece, muito duradoura; entre 431 e 421 empreendeu mais viagens, vindo a morrer, segundo todas as probabilidades, por 425. As viagens de Heródoto, conforme o que se depreende do que escreve e de uma ou outra vaga infor­mação que nos deixaram outros autores, foram pela costa da Ásia Menor, pelo Mar Negro, muito frequentado pelos gregos, até à embocadura do Dnieper, por toda a península grega, pela Trácia e Macedónia, pela Sicília e pelo Sul da Itália, e, também, a Babilónia e Tiro; era, com excepção de algumas regiões do Mediterrâneo ocidental, do norte da Africa e dos territórios para além do Danúbio, tudo quanto conheciam os gregos. Heródoto aparece-nos assim como um dos grandes viajantes da antiguidade; leva-o o espírito de curiosidade, o desejo de conhecer regiões novas, de comparar os costumes diversos dos homens, de se documentar para escrever o trabalho que empreendera; a guerra entre persas e gregos, que durara de 500 a 449 antes de Cristo, e de que ainda vira a última parte, impressionara-o como um dos maiores acontecimentos humanos, parecendo, no entanto, que não compreendeu, o que era natural, tratar-se de uma «esquina da história»; por outro lado, a guerra parecia o quadro ideal para contar o que soubera dos vários países envolvidos na luta e dos homens que o habitavam. Na sua forma actual, a História de Heródoto, que se chama simplesmente «Exposi­ção das suas investigações», está dividida em nove livros, cada um com o nome de uma das Musas; trata-se de um trabalho de eruditos alexandrinos: Heródoto escreveu a sua obra como uma narração contínua; começa por contar como se originou e desenvolveu o império persa, com a história de medos e persas, fala depois de Cambises, o que dá oportunidade para a des­crição do Egipto, em seguida de Dário, com descrição dos scitas; no livro V narra a revolta das colónias da Ásia Menor, causa próxima da guerra cuja narrativa, até à tomada de Sartes pelos atenienses (479), ocupa o resto da obra. Embora bastante crédulo — mal sabemos de resto onde se situa em Heródoto a fronteira entre a credulidade e a ironia—, bastante impreciso e até, em certos pontos, mal informado, Heródoto é sincero, imparcial e dá um bom quadro de conjunto da guerra e das nações que nela entraram; como escritor, a simplicidade do seu estilo, a ausência de retórica, mesmo perante os acontecimentos mais grandiosos, contribuem para acentuar a impressão de verdade e para revelar através de toda a prosa um espírito que deve ter sido bom, um tanto ingénuo, quase infantil em muitas das suas manifes­tações.

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Cadernos de Agostinho da Silva (excertos)


MÉRIMÉE

Prosper Mérimée nasceu a 27 de Setembro de 1803; era fraco e doente e os cuidados de que a família o cercou contribuíram para lhe dar uma grande sensibilidade, mais apurada ainda pela educação literária e artística que foi sobretudo a sua; havia nos parentes mais próximos um grande gosto pela leitura e pela arte, que foi até o tema de alguns trabalhos do pai; os preferidos eram os escritores e artistas do século XVIII que se não tinham deixado arrastar pela corrente de «sensibilidade», posta em voga por Jean Jacques Rousseau e se tinham exprimido discretamente, sem grandes efusões, num estilo seco, límpido, nítido. Feitos os estudos de liceu, ingressou Mé­rimée na Universidade onde frequentou Direito, sem demasiado gosto pelo que aprendia, mas pondo no comprimento dos seus deveres um método e uma aplicação que o levaram com facilidade ao fim do curso; o ponto mais delicado era o do contacto com os outros que, em pleno entusiasmo român­tico, eram a um tempo os anjos exilados que se lamentavam de ter vindo à terra incompreensiva e os fogosos batalhadores que a derrota de Waterloo deixara sem ocupação; Mérimée, que tinha como ninguém o sentido da me­dida e a verdadeira sensibilidade, não se deixava arrastar para as manifesta­ções ruidosas e desde inicio procurava ser na vida uma pessoa que se domina e detesta expor aos outros, por qualquer forma, o que lhe vai na alma. O encontro com Stendhal dá princípio a uma sólida amizade entre os dois escritores: juntam-se, no meio dos tumultos românticos, dois temperamen­tos semelhantes, calmos exteriormente, reticentes na expressão, embora do lado de Stendhal houvesse uma força de vida e uma penetração de inteligên­cia que talvez não existissem em Mérimée; apesar de tudo, e porque Mérimée tinha também uma personalidade que se não dobrava facilmente, não se pode falar duma grande influência de Stendhal no amigo. O trabalho lite­rário de Mérimée começou em 1825 com a publicação do Teatro de Clara Gazul, peças fortemente românticas, em que é evidente a intenção caricatu­ral e que atribuiu a uma artista espanhola; em 1827 seguiu-se a Guzla, compilação de falsos cantos ilíricos, que teve grande êxito porque se estava na época em que todos procuravam avidamente a literatura dos povos a que chamavam «primitivos» e porque Mérimée pusera real talento na sua misti­ficação; dois anos depois, a Chronique de Charles IX, dentro do gosto dos romances históricos, afastava-se da principal corrente literária pelo realismo das evocações e pela serenidade crítica que o escritor conservava diante do seu tema. Por 1830, houve na vida de Mérimée uma grave crise sentimen­tal: ele era, intimamente, um apaixonado, um homem de ilusões e de sonhos, e o contacto com as realidades feriu-o duramente; as mulheres, que foram uma das suas grandes preocupações, senão a maior, sempre se lhe revelaram bem diferentes do que as supusera e o desengano lançou-o ainda mais na carreira da secura exterior, fê-lo trabalhar ainda mais por atingir um plano de ironia, de cepticismo, de desprendimento, onde sempre se mantinha pe­rante o estranho; Mérimée é para todos um homem que em nada crê, que por coisa alguma se entusiasma, que olha a restante humanidade, fora um grupo escolhido, como um lamentável ou desprezível bando, com o qual serão inúteis todas as tentativas de cultura; o seu cepticismo não é de ori­gem intelectual, o que lhe poderia dar ternura e piedade, mas de origem sen­timental, o que o torna agressivo e seco; no entanto, para quem sabe adivi­nhá-lo, ele é o homem em que o sonho se recusa a morrer, aquele que daria a sua vida para que triunfasse uma grande e nobre causa. Depois de uma viagem a Espanha, onde conheceu a futura imperatriz dos franceses, Eugénia de Montijo, exerce alguns cargos políticos e é em seguida nomeado para a inspecção dos monumentos, em que a sua maravilhosa agilidade de espírito, a sua capacidade de leitura e de acção, o seu gosto da arfe realizam um tra­balho admirável; em 1840 publica a Carmen, talvez a sua melhor obra, pelo fundo apaixonado e vibrante e pela forma seca, desprendida, de afectação erudita, de que soube revesti-la; em 1845 vem a Colomba, um pouco prejudicada pelos pormenores etnológicos; escreveu também várias novelas curtas — Venus d'Ille, Tamango, As almas do Purgatório, A tomada do reduto, O Vaso Etrusco e Mateo Falcone, que é, pela simplicidade da anedota, pelo concentrado da acção, pela violência das paixões, pela absoluta ausência de retórica, um dos melhores contos de todas as literaturas. Feito académico em 1844 e nomeado, em 1853, para o Senado, onde se não mostrou muito diligente nas adulações a Napoleão III, ocupou-se durante quase todo o tempo de obras de erudição; a guerra franco-prussiana de 1870 e a queda do Império abateram-no por completo e veio a morrer em 23 de Setembro, em Cannes, duas horas depois de ter escrito à sua amiga Jenny Dacquin uma daquelas cartas afectuosas, ternas, cheias de bondade e de delicadeza que nos revelam um Mérimée bem diferente do Mérimée erudito, senador e «dandy».

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LAMARCK

Nasceu Lamarck em 1744 e destinaram-no os pais à vida eclesiástica; o rapaz, no entanto, mostrava mais inclinação pelas armas e, logo que pôde, juntou-se ao exército francês que estava cercando a cidade de Bergen-op­-Zoone; a operação correu mal para os atacantes e, na retirada a que foram obrigados, mostrou Lamarck qualidades de coragem que lhe obtiveram a patente de oficial; terminada a guerra, veio de guarnição para o sul de França e aí sofreu um acidente que o inutilizou para a vida militar; estabeleceu-se em Paris, onde vivia da pequena pensão que lhe dava o rei e do que recebia como empregado dum banqueiro; aproveitava todas as horas vagas para estudos de botânica e entrou em relações com De Jussieu que au­xiliou nos seus trabalhos; em 1778 publicou uma Flore Française e Buffon tomou-o como preceptor do filho; pouco depois, e já remunerado como botânico, percorreu a Holanda, a Alemanha e a Hungria; ao voltar, continuou os seus estudos, mas, em 1793, o Museu de História Natural, que Buffon fundara, encarregou-o de reger a cadeira de zoologia dos invertebra­dos; era um domínio completamente novo, Lamarck nem sequer tinha para o amparar os trabalhos de outros zoólogos; estava tudo por fazer, mas a direcção do Museu não se enganara sobre as qualidades do homem; lan­çou-se resolutamente à tarefa, classificou os exemplares que existiam no Museu e, em 1801, publicou o Système des animaux sans vertèbres, com uma ordenação de animais, que, de um modo geral, ainda hoje se conserva; oito anos depois aparecia a Philosophie zoologique, donde se extraiu o pre­sente caderno; daí em diante a vida de Lamarck tornou-se bastante difícil: uma doença de olhos que se agravou progressivamente levou-o à cegueira, ao mesmo tempo que as faculdades intelectuais baixavam também; quase todos o abandonaram e em Dezembro de 1829 morre Lamarck obscuro e pobre. E, no entanto, tinha sido ele quem, pela primeira vez, de uma forma clara, coerente, pusera a ideia de que as espécies vegetais e animais não são hoje o que foram em tempos recuados, de que se deu uma transformação, uma evolução das formas, tornando-se, por conseguinte, insustentável a hipó­tese de uma criação com todas as características actuais; a afirmação foi acolhida com desdém ou com indignação e mesmo um homem como Cuvier tratou Lamarck de fantasista, de fabricante de hipóteses sem o mínimo fun­damento no real; certo é que o tom geral do espírito de Lamarck oferecia alguma base para a acusação: era uma inteligência mais sintética do que analítica, mais enamorada das teorias gerais do que da miúda observação dos factos; por outro lado, não era um dogmático nem procurava formar escola, o que, se nos pode dar ideia de toda a superioridade do seu espírito, não é, contudo, muito próprio para conquistar rapidamente o aplauso dos homens e tão acentuado foi o impulso inicial neste sentido que ainda hoje não pode­mos falar de uma escola lamarckista dentro da biologia; há uma tendência lamarckista, uma arquitectura lamarckista de espírito, uma atitude lamar­ckista. Para Lamarck, a vida apareceu na terra por geração espontânea e a pouco e pouco se foi complicando pelo próprio exercício da vida que deu aos seres os órgãos essenciais da respiração, digestão, circulação; o ser vivo, no entanto, existe num certo ambiente, num meio: em face desse meio o animal reage, adapta-se, por adaptação activa, de certo modo, o que leva à criação e modificação dos órgãos secundários, dentes, olhos, patas, barbata­nas, etc.; nos modernos biólogos lamarckistas há certa propensão para insistir sobre a força modeladora do meio; são aqui infiéis ao pensamento do mestre: em Lamarck, o essencial não é o meio, é a força de adaptação, de utilização do meio que existe dentro do ser vivo; o órgão, o órgão secundário, note-se bem, cria-se ou desaparece pelo uso ou pelo desuso; os ca­racteres adquiridos por um ser vivo transmitem-se aos descendentes e assim aparecem as sucessivas modificações de uma espécie. A publicação dos tra­balhos de Darwin relegou a segundo plano a ideia de Lamarck e quis-se ver até uma oposição entre os dois grandes evolucionistas; não parece que exista: Darwin não trata propriamente da origem das transformações, mas da sua sobrevivência: o darwinismo é, de maneira geral, um caso do lamarckismo; de resto, a luta que se trava entre neo-lamarckistas e neo-darwi­nistas é sobretudo a propósito da hereditariedade dos caracteres adquiridos; para que o lamarckismo se possa aceitar, é necessário que se prove que os caracteres adquiridos passam ao descendente, o que até hoje se não conseguiu de forma convincente; pouco se sabe também ainda do processo fisiológico pelo qual, conforme o uso, o órgão se desenvolve ou atrofia. Tem-se igual­mente oposto ao lamarckismo a teoria das variações bruscas de De Vries: não parece, contudo, que sejam incompatíveis; pode ser que as variações bruscas não sejam mais do que o resultado visível para nós de uma transfor­mação lenta; não seria talvez tarefa impossível para um Einstein da biologia a reunião num corpo único de doutrina das ideias de Lamarck, de Darwin, de De Vries e da genética de Morgan. Em qualquer caso, Lamarck ficará sempre como o mais amplo de todos os transformistas e como aquele em que melhor poderia assentar uma doutrina pedagógica e política que insistisse sobre a influência do ambiente da educação, nas questões huma­nas, não esquecendo, como essência, as forças interiores do indivíduo; ao mesmo tempo, pela possibilidade que oferece de uma explicação mecanista da vida, o lamarckismo aparece-nos como um dos elementos essenciais para uma vitória do espírito crítico, ordenador, racional sobre as concepções bioló­gicas que só têm por apoio o sentimento, ou a excessiva credulidade, ou, no fundo, a desistência do pensar.

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ERASMO

Nascido em Roterdão, em Outubro de 1466, entrou Erasmo, nove anos depois, na casa que em Deventer possuíam os Irmãos da Vida Comum, congregação fundada pelo místico holandês De Groote; embora consagrando quase toda a sua actividade mental a uma preparação muito dentro dos moldes da Imitação, não deixavam os religiosos de Deventer de se interes­sar por todas as questões espirituais contemporâneas; com eles teria aprendido Erasmo, revelando uma das tendências do seu espírito, a desfa­zer o seco formalismo dos escolásticos e a apreciar o valor literário, artístico dos textos, já numa primeira influência do Renascimento italiano; não ficou, no entanto, apesar de toda a sua simpatia pela largueza do pensamento dos Irmãos, a ter grande gosto por toda a vida que se passava segundo as regras conventuais; para Erasmo, a alma pode salvar-se no mundo, mais até, deve salvar-se no mundo, salvando os outros; a paz que buscamos não está no ambiente exterior, está dentro em nós, e é dos nossos defeitos, dos nossos erros que a devemos libertar, para que depois nos envolva inteiramente e nos aproxime o mais possível da santidade; os frades têm-no, desde logo, como adversário, mas as circunstâncias da vida, as imposições da família levam-no a professar no mosteiro de Steyn; um mais íntimo conhecimento da existên­cia das comunidades não o obriga a modificar a opinião que formara; a reli­gião, ali, está morta, e sepultada sob todo o ritualismo, sob todos os precei­tos de estrita observância de que lançam mão aqueles cuja religião não flúi da bondade da alma e da amplidão da inteligência; as únicas horas de con­vento de que ainda depois se recordava com saudade foram as que passava na sua cela ou num canto da cerca, lendo os clássicos latinos que o enchiam de entusiasmo. Depois de ter sido durante algum tempo secretário do bispo de Cambrai, vai Erasmo para Paris, em 1496; reside no colégio de Mon­taigu, colégio típico da primeira época do Renascimento, com todos os defei­tos que só haviam de remover as escolas dos Jesuítas; o cheiro do peixe que implacavelmente lhe infligiam, a retórica e os silogismos que a Sorbonne lhe oferecia como único alimento intelectual fazem-no procurar outra solução para a sua vida: Lord Mountjoy, de que era preceptor, prontificou-se a levá-lo para Inglaterra; trabalhou em Oxford, travou sólida amizade com Thomas More, o autor da Utopia, e com John Colet, que se esforçava, pela pregação e pelo exemplo, por que se fizesse uma reforma da igreja inglesa, conhece Henrique VIII, ainda criança, todo se deixa penetrar do fino ambiente, feito de discrição, de sinceridade, de delicada ironia, de amor do espírito crítico. No regresso a Paris, publica os Adágios, que são, em frases curtas, que se gravam com firmeza, um manual, um resumo dos moralistas antigos, urna reacção, sob a forma inocente de máximas a citar, contra o conceito de santidade vulgar no tempo; não aconselha Erasmo o desprezo do mundo, nem os duros sacrifícios, nem as tentativas do domínio da carne que servem apenas para na realidade diminuir o espírito; no Manual do Soldado Cristão, que publica depois, e em que faz a ligação da moral antiga com a moral cristã, no que ambas têm de essencial, de puro, Erasmo declara que toda essa santidade de repressão e afinal de egoísmo é absurda: só há um verdadeiro pecado, o de falta de amor pelos irmãos homens que sofrem no mundo, que só há uma atitude indesculpável, a de, fechados num dogma, não compreendermos que a vida é complexa, que em tudo há uma parte de verdade, que a tudo se deve dirigir a nossa simpatia inquiridora, disposta a apoiar o que é melhor, disposta à ironia e à persuasão perante o erro; acen­tua-se no livrinho de Erasmo o combate ao ritualismo mecânico: a religião está no amor de Deus, isto é, da inteligência e da bondade, e no amor dos homens, não no culto das relíquias, nas peregrinações, nas oferendas, nas doações, nas preces que só os lábios recitam. Os dois livros tiveram êxito enorme e já em 1506 Erasmo é acolhido em Turim, depois em Veneza, depois em Roma como um dos grandes representantes da intelectualidade europeia; daí por diante, com a publicação do Elogio da Loucura em 1509, com os trabalhos em Cambridge, de 1511 a 1514, com a Queixa da Paz, de 1517, com todos os seus trabalhos de erudição, com todas as suas cartas, Erasmo impõe-se como um dos homens de maior influência; lêem-no todos os que defendem um primado de inteligência, de reflexão crítica, de organi­zação racional, de pureza e de simplicidade de vida, todos os que repelem as tiranias intelectuais, o dogmatismo, a grosseria de costumes, as violências da guerra, o baixo nível da religião corrente; e os Colóquios, com o seu estilo a um tempo vivo, popular e elegante, com a actualidade dos temas, as soas personagens surpreendidas, como num quadro flamengo, no que têm de mais característico como gente de uma terra e de uma época, e de mais universal como seres humanos, estão exactamente entre as obras de Erasmo que mais contribuíram para que se exercesse, entre os melhores, a sua acção. A huma­nidade, porém, está ainda muito perto das origens para que tudo se passe em moldes erasmianos; dentro em breve, com o conflito entre Lutero e o Papa, Erasmo ia ser duramente atacado pelos dois lados em luta; acusa­vam-no uns de ser dos luteranos, o que era verdade, porque também desejava a reforma dos costumes eclesiásticos, reclamara uma religião sem ritos e protestava contra os papas militares e políticos do tipo de Júlio II; acusa­vam-no os outros de ser partidário de Roma, o que também era verdade, porque já descortinava nos ataques de Lutero o germe das futuras tiranias, porque sentia os príncipes já prontos para o saque das igrejas e mosteiros, porque lhe parecia que devia ser salvo o amor das letras e das artes de papas como Leão X. Há épocas da história em que, mais que de costume, se encontram isolados os que não aceitam doutrinas em bloco, os que preten­dem examinar todas as faces da questão e dum e doutro lado acham erros e verdades; a Reforma foi uma delas e Erasmo sentiu-se magoado pelos ataques que lhe dirigiam; queria tudo resolvido pela inteligência e a sua falta de educação científica levava-o a não compreender, como um zoólogo compreende os costumes de um animal, que os homens ainda não podem resolver pela inteligência todos os problemas que se lhes levantam no cami­nho e que os defensores de um espírito futuro hão-de naturalmente ser batidos nos tormentos do actual, de que, porque vivem, se não podem liber­tar. A onda crescente de barbarismo que via estender-se por toda a Europa contribuiu para a sua morte, em 1536, depois de ter errado de cidade em cidade, não já como o homem universal que sente estreitas as pátrias, mas como o fugitivo que procura um lugar de repouso, e depois de ter sabido que Henrique VIII mandara decapitar o seu amigo More, como se a força de instintos tivesse vencido para sempre a força do espírito que fora o seu motivo de viver.

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Cadernos de Agostinho da Silva (excertos)


DOSTOIEVSKY

O tema essencial da vida de Dostoievsky é a desgraça. Com uma ascendência em que se misturavam o melhor e o pior, êxtases de místicos e impulsos de assassinos, mas em que o tom geral era o do desequilíbrio e da doença, nasceu o escritor em Moscovo, e 12 de Outubro de 1821. O pai era médico dos hospitais e logo de início teve Dostoievsky, como ambiente de vida, as converses sobre doentes, a atmosfera lenta e mórbida dos pavilhões, as faces desalentadas e tristes dos internados; em casa, o pai comportava-se como um tirano sombrio, com crises terríveis de mau humor; todo o mundo em volta se conjurava para dar ao pequeno a impressão de que a vida era um fardo trágico, de que a nossa existência se devia passar na resignação ou na revolta, sem lugar para as construções compreensivas e serenas; o colégio, como era natural, não fez mais do que acentuar esta visão da vida e o con­flito interior de Dostoievsky entre uma necessidade de expansão em que todas as forças internas lhe pareciam destruir o próprio corpo e uma timidez, um jeito de sofrer, que já o tinham desacostumado de toda a esperança e de toda a alegria; frequentou depois o curso de engenheiros militares de onde veio formado em 1843; mas o contacto com uma juventude egoísta e brutal que só pensava em divertimentos que lhe repugnavam e no diploma que os dis­pensaria de todo o esforço na vida, contribuiu para marcar melhor a sua visão pessimista do mundo; por outro lado, o pai morrera tragicamente em 1839, e Dostoievsky, que muitas vezes pensara no médico sem grande simpatia, e desejara até a sua morte, considerou-se como tendo contribuído ou como sendo mesmo o principal culpado do assassínio que se cometera; firmou-se-lhe no espírito a ideia de que somos responsáveis por todo o mal que existe sobre a terra, ou porque o pensamento que não apuramos vem finalmente a gerar as tragédias ou porque não fazemos todo o bem que nos seria possível realizar; em qualquer caso, os outros são maus porque não somos, nós, suficiente­mente bons; somos os culpados de tudo o que sucede e para os outros só deve haver da nossa parte amor e perdão; é evidente que tal ponto de vista não é de inteira lógica e que, se eu tenho as culpas da desgraça dos outros, os outros, porque não sou sozinho no mundo, terão a culpa da minha pró­pria desgraça de ser mau: chegar-se-ia assim a uma culpa de todos e de nenhum; mais tarde Dostoievsky atingiu uma concepção mais coerente e defensável: as suas melhores personagens, as que representam verdadeira­mente o seu espírito, já não têm talvez muito a noção da culpa e perdoam, a si próprios como aos outros; a busca e a aceitação do castigo, que tanta vez aparece em Dostoievsky, vem mais dum desejo de sofrer, duma concepção da pena como redentora pela dor do que propriamente da ideia de que haja reais culpas no que se pratica na vida; o pensamento de que os outros são nossas vítimas ou de que, pelo menos, são as vítimas de uma ordem univer­sal que se apresenta implacável, leva-nos a ter pelo nosso semelhante piedade e amor; não ter amor pelos homens, pelos animais e até pelas coisas é o pior de todos os pecados, o único verdadeiramente indesculpável, o que não se percebe, visto que os pecados são todos da mesma natureza; seja como for, Dostoievsky chega, e segundo parece sem grande influência da Igreja, a uma concepção do mundo em que há todos os elementos basilares do cristia­nismo, pelo menos tal como ele nos aparece na sua evolução histórica: acei­tação da ideia de culpa e da ideia de sofrimento redentor, amor imenso de todos os que partilham connosco a desgraça de viver; a mais do que no cris­tianismo tradicional e coexistindo estranhamente com a noção do pecado, defendeu Dostoiesvsky a ideia do amor por si próprio e, portanto, de perdão pelo que se faz. Olhando em sua roda, via Dostoievsky que, dentre todos os seres que sofrem, um sofre talvez mais do que todos: o camponês russo; apesar das excelentes qualidades que possui, apesar de se ter guardado da civilização corruptora, o mujique, oprimido por todos, incapaz de se expri­mir, é uma alma lamentável e merece que se trabalhe pela sua libertação; é esse desejo duma vida nova para a Rússia, que o leva à conspiração de 48 e, depois duma cena atroz de simulacro de execução, ideada por um tzar humanitário e pedagogo, ao desterro na Sibéria, onde, durante quatro anos, convive com todos aqueles que os grandes da terra consideram réprobos; a opinião de Dostoievsky era completamente diversa e ao contacto dos crimi­nosos mais se enraizou o seu cristianismo; a vida que ambiciona é a do após­tolo e todos os seus melhores livros vão ser mensagens cristãs, vão ser novos sermões da montanha, pregados, não por uma figura ideal, entre árvores e águas, a discípulos atentos, mas por ladrões, por doidos, por prostitutas, nas ruelas e nas mansardas dos bairros pobres, aqueles que a sociedade inutiliza e repele; todo o gosto de domínio é condenado, todo se exalta o ser humilde; sofrer é a grande missão; a melhor recompensa duma vida pura é a ofensa que se recebe e se perdoa. O tema liga-se intimamente ao da excelência do povo russo e ao da missão que ele tem a desempenhar no mundo; para Dostoievsky, o povo russo há-de ser como um Cristo colectivo e há-de ensinar as outras nações, perdidas na soberba e no luxo, a viverem uma vida de espí­rito; por isso repele todos os que vêem a revolução como puramente mate­rial: para ele, a «Ocidentalização» da Rússia é mais um sofrimento, um martírio imposto ao povo; o que interessa é a revolução nas almas: para essa estão preparados os russos, por essa hão-de salvar o mundo. Este so­frimento da Rússia repercute-se em Dostoievsky e em cada desastre da sua vida, nos contínuos desastres da sua vida, desde a morte do pai até aos ataques da doença que o abate finalmente em 1881, vê o escritor o reflexo do que padece o seu povo; mais o ama por isso; a dor e o amor são os dois pólos de todo o pensamento de Dostoievsky, os dois motivos dominantes da sinfonia trágica, sombria, que a sua obra constitui. São dois bons guias para que se conheça a psicologia humana, sobretudo a das camadas sociais que mais têm sentido a dureza de viver; foi porque elas possuíam inteira­mente a sua alma que Dostoievsky conseguiu dar-nos, no CRIME E CASTIGO, nos IRMÃOS KARAMAZOV, donde se extraiu o presente caderno, em HUMI­LHADOS E OFENDIDOS, no IDIOTA, na CASA DOS MORTOS, em muitas das novelas, uma das mais penetrantes visões, senão a mais penetrante, do sofri­mento dos homens; e o seu próprio sofrimento, com a morte da primeira mulher, o amor de Paulina, a morte do irmão, os embaraços financeiros, os ataques de epilepsia, dá-lhe a possibilidade, que é essencial num artista, de ter dentro de si mesmo todas as dores, todos os remorsos, toda a luta inte­rior que aparece nas suas personagens, e de a descrever com um realismo, com uma verdade que não são, no entanto, incompatíveis com um ambiente flutuante e fantástico de mau sonho. A impossibilidade, interior e exterior, de uma composição cuidada, o estilo sem preocupações literárias, a própria inferioridade das anedotas sobre que baseiam os seus livros, contribuem para dar aos romances de Dostoievsky uma sinceridade e uma força de convicção que talvez não possua nenhuma outra obra de escritor. O seu pensamento é ilógico e talvez se deva tomar sobretudo como a representação, noutro plano, da sua epilepsia e das suas condições de vida; o seu desprezo, ou as suas impossibilidades, de estética literária são quase completas; mas a obra de Dostoievsky é uma das maiores e das mais fortes que o mundo produziu, pela constância do amor, pela profundidade da tragédia, pela absoluta since­ridade com que este homem examinou a sua alma e, por ela, a alma de todos que na terra vivem e morrem mergulhados na dor.

domingo, 31 de agosto de 2008

Cadernos de Agostinho da Silva (excertos)


FERNÃO LOPES

Pouco se conhece de seguro sobre a vida de Fernão Lopes; deve ter nascido entre 1378 e 1383, na altura em que Portugal, como consequência da política externa de D. Fernando e do desenvolvimento da burguesia que não desejava estar por mais tempo sujeita aos nobres, atravessava a crise em que se punha em jogo a sua independência; o cronista devia ser de origem humilde, porque tinha parentes entre os mesteirais ou operários de Lisboa, e pelo conhecimento profundo que mostra da psicologia popular, o que não é, de facto, argumento muito sólido; há nele também uma intensa simpatia pelas possibilidades da «arraia miúda»; é uma simpatia que não o leva a ocultar os defeitos e as explosões de brutalidade, mas faz, no entanto, que tudo compreendamos como o resultado do estado social das classes popula­res e das circunstâncias de momento. Num documento de 1418 aparece Fernão Lopes como guarda-mor da Torre do Tombo, onde se guardavam as escrituras do reino; no ano seguinte é notário e talvez secretário particular de D. João I; em 1422 exerce este último cargo junto do Infante D. Fer­nando; em 1434, já no reinado de D. Duarte, recebe o encargo de escrever a história geral do reino, para o que foi necessário fazer viagens pelo país, em busca de documentos de cartórios e de pessoas que ainda soubessem dos factos a narrar; não sabemos hoje se Fernão Lopes se desempenhou inteira­mente da incumbência real, porque apenas nos restam em seu nome a Cró­nica de D. Pedro I, a Crónica de D. Fernando e a Crónica de D. João I (primeira e segunda parte); existem, nos textos autênticos de Fernão Lopes, várias referências a outras crónicas de reis da primeira dinastia, mas não parecem fornecer bases seguras de prova; a Crónica do Condestabre, que corre anónima, foi também atribuída a Fernão Lopes, mas talvez sem grande razão; em 1454, estando o cronista, segundo o dizer do documento, já muito velho e fraco, mandou D. Afonso V que se lhe desse a reforma e o substi­tuísse Gomes Fanes de Azarara; a última notícia que temos de Fernão Lopes é de 3 de Julho de 1459: teria talvez falecido pouco depois. Os tra­balhos de Fernão Lopes constituem um dos escritos históricos mais vivos, mais pitorescos, mais coloridos, mais dramáticos, que existem em qualquer literatura ; colocando-se facilmente acima de Lopez de Ayala, o cronista castelhano, e de Froissart, o cronista francês, Fernão Lopes dá-nos perfeito exemplo do historiador que sabe ver no passado um trecho de vida e o anima com toda a sua experiência dos homens, todo o seu sentido psicológico, todo o seu entusiasmo pelo que narra, ao mesmo tempo que uma inteligência pe­netrante, uma grande imparcialidade, um saber que não é erudição, um fundo de ironia popular tornam mais reais as suas páginas e moderam o que podia haver de excessivo sentimento; através de toda a sua obra, Fernão Lopes aparece-nos como uma das mais equilibradas personalidades que tem existido em Portugal e, portanto, como uma das mais capazes de compreender um momento da nacionalidade que tem exactamente como característica um justo equilíbrio de qualidades de inteligência e de acção: há em tudo a mesma nota de saúde, de segurança na marcha, de energia de expansão, de simpli­cidade nos objectivos, de domínio dos meios; o guerreiro, o burguês e o es­critor, com forças de criação e com perfeito entendimento dos homens e das coisas, no mundo se apoiam, dele partem para o enriquecer e melhorar. Sob o ponto de vista artístico, e tomando a palavra num sentido restrito, há que acentuar primeiro a perfeita ordem da narrativa, a harmonia do plano que liga entre si todos os quadros, a técnica que permite entrelaçar os vários epi­sódios, nem os fragmentando demais para que o interesse se não perca, nem deixando que as narrativas se alonguem a ponto de se quebrar a ligação no tempo; quanto ao estilo, raros souberam como Fernão Lopes mantê-lo uno, adaptando-o ao mesmo tempo às diferentes situações, e poucos seriam igual­mente capazes de, elevando a linguagem popular a categoria literária, não terem caído no fácil pitoresco dos modismos. Em face das crónicas de Fer­não Lopes, quer atendamos ao fundo, quer à forma, lamenta-se que o Renas­cimento tenha cortado, com regime e literatura estrangeira, o que estava sendo em Portugal uma criação cheia de originalidade e perfeitamente de acordo com o espírito do nosso povo; uma comparação com a obra de João de Barros é bem interessante: as Décadas, pelas empresas que narram e pelo estilo que se emprega, mostram até que ponto fora o divórcio entre os diri­gentes e o país; a unidade do tempo de Fernão Lopes quebrara-se e, pelo menos, para muitos séculos.

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Cadernos de Agostinho da Silva (excertos)


BUFFON

Georges Louis Leclerc, cavaleiro, depois conde de Buffon, em recom­pensa dos seus trabalhos, nasceu em Montbard, em 1701; pertencia a uma família rica e pôde dedicar-se, sem nenhuma preocupação de ordem finan­ceira, ao estudo de todas as questões que o interessavam; quando o pai morreu, ficou na posse de minas e de forjas que o tornavam um dos homens mais abastados de França; entre os 20 e os 25 anos de idade viajou pela Itália e pela Inglaterra com um jovem inglês seu amigo e iniciou-se na botânica; a matemática, no entanto, prendia-o mais e toda a sua admiração ia para os estudos de Newton; ao mesmo tempo, trabalhava na física e traduzia para francês obras de sábios ingleses; em 1755 foi nomeado sócio adjunto da Academia de Ciências e apresentou várias memórias sobre física e agricultura. A escolha para intendente do Jardim de El-Rei ou Jardim das Plantas foi o grande passo da sua vida: era este o cargo em que Buffon melhor podia aplicar as suas qualidades e também o que mais sólidas bases lhe daria para a obra futura; o Jardim tivera até aí reduzida importância: destinava-se ao cultivo de plantas medicinais e os seus directores nada tinham feito que lhe desse carácter mais largo; com uma grande capacidade de ini­ciativa, uma forte atenção a todos os pormenores, uma larga concepção de objectivos, uma perseverança que nada abatia, um tom geral de energia calma, um entusiasmo que se não dissipava em explosões sem resultado, mas todo se concentrava e movia os obstáculos mais poderosos por um esforço sem pressa e sem descanso, conseguiu Buffon que o Jardim das Plantas se transformasse num dos maiores institutos de ciências naturais que se têm organizado; foi ele quem imaginou e realizou o Muséum d'Histoire Natu­relle onde tantos trabalhos notáveis se haviam de produzir e onde os estu­diosos encontrariam sempre ao seu dispor colecções de incalculável riqueza; não só alargou os domínios da botânica como lhe juntou a zoologia, a mineralogia e todas as disciplinas que podiam dar uma visão tão completa quanto possível do mundo em que vivemos. Em 1749 saíram os três primeiros volumes da História Natural; começava-se por uma Teoria da Terra e um Sistema da Formação dos Planetas em que Buffon expunha teorias relativa­mente audaciosas que provocaram reacções da Sorbonne; depois vinham uma História Geral dos Animais e uma História do Homem; entre 1755 e 1767 apareceram os doze volumes consagrados à história dos quadrúpedes: o êxito foi enorme, tendo-se vendido dezenas de milhares de livros; os me­lhores espíritos da época reconheceram o génio de Buffon e logo o compa­raram a Aristóteles e a Plínio, os grandes mestres de ciências naturais da antiguidade clássica; certo é, porém, que Buffon lhes era muito superior, pela grandiosidade do plano, pela segurança de vistas, pelo poder criador; a História Natural, completada, com a ajuda de outros cientistas, pela Histó­ria das aves e dos minerais e pelas Épocas da natureza, publicadas já em 1789, um ano depois da morte do autor, dá a exacta medida do espírito de Buffon: não há nele uma estreita e determinada vocação de botânico ou de zoólogo; o seu domínio é o da síntese, o da contemplação de todo o universo, o da inclusão, numa obra única, de tudo o que interessa na vida do mundo natural; tem, juntamente com as qualidades do sábio, as do artista, as do poeta e as do filósofo: a sua obra é uma concepção geral do mundo, traba­lhada com a exactidão do investigador, a capacidade sensual do pintor, os raptos de imaginação do grande poeta e a sólida concatenação do pensador; ao mesmo tempo, o estilo, que não é, segundo Buffon, senão uma ordenação das ideias, acompanha magnificamente, com o seu curso largo e profundo, com a sua perfeita continuidade, com a sua elevação que nunca é retórica, mas sólido e vasto pensamento, esta compreensiva exposição dos fenómenos naturais. Há erros, certamente, nas páginas de Buffon, doutrinas que não entendeu bem, como, por exemplo, a da nomenclatura de Lineu, outras de que não soube tirar todas as conclusões possíveis: muitos dos defeitos, eli­minou-os com o tempo, porque há um progresso sem interrupção desde o primeiro ao último volume da História Natural; os que ficaram pouco re­presentam em face do que de positivo conseguiu realizar: foi o criador de disciplinas científicas, como a paleontologia, a geogenia, a geografia zoológica; foi, pelas suas doutrinas sobre a evolução das espécies, e apesar de no início ter sido fixista, o precursor de Lamarck e de Darwin; está na base dos trabalhos de Cuvier e de Geoffroy Saint-Hilaire; e deu sobretudo a todos os homens uma alta ideia das possibilidades humanas: para Buffon a humanidade está ainda no início da sua história e um dia chegará, por uma organização adequada, a libertar-se de tudo o que significa inquietação mate­rial e de tudo o que provoca as grandes injustiças e os grandes morticínios; toda a História Natural, mesmo nos pontos em que menos o parece, está penetrada de sentido humano, tudo se refere em última análise à humanidade, tudo interessa ao homem; Buffon põe até, como sinal da nossa grandeza, o poder que temos, e podemos vir a ter em muito maior grau, de modificar a natureza, de a fazer obedecer às nossas concepções; e a cultura calma e progressiva do espírito, a certeza de que só dentro de nós encontraremos a energia que nos levará ao domínio das forças naturais, aparecem a Buffon como os alicerces indispensáveis de todo o trabalho construtivo que se possa realizar na terra; como o fim último também, porque nada pode imaginar de mais alto do que um homem perfeitamente culto e com a plena consciên­cia do valor universal do seu espírito.

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TCHEKOV

Vinha Tchekov duma família de servos; fora o avô o primeiro homem livre porque, à custa de um trabalho sem descanso, conseguira juntar os 3.500 rublos com que comprou aos donos a sua liberdade e a dos oito filhos; o pai do escritor, depois de ter sido escriturário, montou uma mercearia em Taganrog, onde Tchekov nasceu em 1860; a loja faliu em 1876 e Tchekov, para se sustentar, teve que dar lições do pouco que sabia; três anos depois matriculou-se na Faculdade de Medicina e logo começou a escrever narra­tivas humorísticas que lhe davam algum dinheiro; feito o curso, foi nomeado médico do hospital de Voskressensk e teve, no Inverno seguinte, a primeira hemoptise; em 1890, já conhecido como escritor pelas novelas que publicara que tinham obtido grande êxito, partiu para a Sacalina, para observar de perto as condições em que viviam os presos políticos; fez depois uma viagem pela Europa e em 1892 começou para o escritor uma época de serviço social na região de Novgorod, com fundação de escolas e de serviço de assistência médica; no ano seguinte interessa-se pela questão Dreyfus, bate-se em defesa do oficial inocente e corta relações com Souvorin que o ajudara a publicar as suas primeiras novelas, mas que apoiava a atitude dos conservadores franceses; nomeado membro da Academia em 1900, resigna dois anos depois, como protesto contra a atitude das autoridades que tinham cancelado a eleição de Máximo Gorki; entretanto, a tuberculose fizera progressos e a estada na Crimeia não lhe trouxera melhoras; partiu para o estrangeiro e veio a morrer em 1904, nas termas alemãs de Badenweiler. A sua educação científica, o seu gosto de precisão, o contacto largo com o mundo, o trabalho social que teve possibilidade de realizar, tudo o leva a ter da vida uma con­cepção que esta longe de ser optimista; mas circunstâncias de temperamento, e também provavelmente a doença, não deixaram que o seu pessimismo fosse amargo e destruidor; há em todas as páginas de Tchekov uma resignação uma piedade e uma doce ironia que tornam este pessimista completa­mente alheio às durezas e às violências de, por exemplo, um Swift; ao mesmo tempo, a preocupação da objectividade não deixa que se exprima plenamente o sentimentalismo que nele adivinhamos; para o escritor a huma­nidade tem uma existência absurda, lamentável, mas quase não há que pôr as culpas em ninguém; foi um maquinismo complicado que se montou a pouco e pouco e a pouco e pouco foi esmagando a todos.
Dos nobres pouco fala: mas os que aparecem, vemo-los nós mais como actores do que como homens; andam a representar na vida, a tentar uma significação de eternidade para os cargos e títulos, para as condecorações e as fortunas que o acaso lhes trouxe e que a inferioridade dos outros lhes sustenta; o trágico, e o cómico, da sua posição reside no julgarem profunda­mente ligados às raízes da vida tudo que é apenas exterior, tudo o que sur­giu por convenção, tudo que mais parece brinquedo de crianças do que preo­cupação digna de homens que ele vê formados à imagem e semelhança do espírito de Deus. A classe média é o grande domínio da arte de Tchekov: a inteligêntzia russa, com os seus industriais, os seus militares, os seus professores, os seus médicos, os seus advogados, os seus comerciantes, os seus juízes, é retratada com um realismo, uma segurança, que nenhum outro excedeu; ou batalham pelo dinheiro, dia após dia, incansavelmente, ou se preocupam com as distinções sociais, ou esperam simplesmente que os anos passem até o momento em que a morte os abata; não há naqueles homens nenhum objectivo elevado, nenhuma defesa dum ideal, nenhum grande pen­samento, nenhuma largueza de espírito, nenhuma coragem, nenhuma força; as preocupações mesquinhas roubam-lhes todo o tempo e cada vez mais lhes vão corroendo as almas, fazendo deles os mais tristes exemplares da humani­dade que será possível encontrarem-se; não os salva a sua religião, que é toda feita de ritos exteriores e de real incredulidade, nem a sua política, que é apenas uma luta de grupos ou a manutenção do que se encontrou ao nas­cer, nem os seus interesses sociais, que consistem em contribuir, de quando em quando, para que, por meio de bodos, de subscrições, de esboços de esco­las e de esboços de assistência, se mantenha a maior parte da população na ignorância e na miséria; só acolhem da arte o que é facilmente compreen­sível ou o que o bom tom aponta como aceitável; e, no fundo, são uns des­graçados: não o confessam, alguns mesmos passam toda a vida atordoados com as festas, os bailes, o cumprimento das leis e a observação das prece­dências sociais; mas há momentos em que medem todo o vazio da sua exis­tência, em que o tédio os abate, em que se vêem como seres inúteis que nada mais fizeram do que tomar os fantasmas pela realidade e estragar por com­pleto o tempo que podia ter sido o de uma vida magnífica. Por seu turno, os camponeses não são para Tchekov os homens admiráveis que aparecem noutros escritores russos: são homens brutais, ignorantes de toda a beleza do mundo, deformados pelo trabalho, pelo medo, pelas preocupações mate­riais; são grosseiros e ávidos do dinheiro, subservientes perante os mais altos, duros para os mais humildes; no conjunto, mais animais do que homens. E, no entanto, donde a onde, que relâmpagos de verdadeira huma­nidade surgem de toda esta gente que luta por fins absurdos; como o homem podia ser grande e belo, vencer tudo o que o prende à terra, vencer a vida e a morte, tornar-se igual aos próprios deuses; as possibilidades de uma exis­tência nobre e pura palpitam em todos nós, mas a deficiente organização social tudo esmaga, tudo submete ao mesmo molde e faz dos estandartes de vitória uns farrapos imundos; e só era preciso que os homens tivessem liber­dade, liberdade económica e liberdade de espírito, para que passássemos a viver uma vida cuja beleza nem sonhamos e de todo abandonássemos a mes­quinhez e a pobreza; uma nova organização económica e o emprego da máquina acabariam com as preocupações materiais; uma forte educação moral dar-nos-ia o desprendimento das inutilidades e um verdadeiro amor pelo nosso semelhante; então toda a forte inteligência do homem se poderia dedicar ao que é tarefa verdadeiramente humana: a busca da verdade, a busca do sentido da vida. Conseguiremos alguma vez realizar este ideal? Tchekov não o crê: estamos já demasiadamente perturbados para que haja outra possibilidade senão a de degenerar; podemos talvez um dia resolver o problema económico, porque se trata em grande parte de uma exigência dos próprios progressos técnicos, mas, quanto ao espiritual, tudo ficará na mesma se não piorar; talvez, ante a nossa falência, a natureza crie outra raça que saiba chegar à meta que nós não pudemos atingir. Esta concepção pessi­mista do presente e do futuro é bem acentuada pela sobriedade, pela finura, pela sufocação de todo o ímpeto lírico que caracteriza a arte de Tchekov; a efabulação é simples e até, nos contos que são porventura os mais representativos, quase não existe: são cortes na vida, não as invenções dum escri­tor; as personagens não se constituem pela acumulação de pormenores ou pela acentuação de certos traços, mas porque Tchekov as surpreende num momento característico e num meio que é propriamente o seu; é evidente a influência de Maupassant, mas Tchekov junta-lhe uma concepção da vida que é mais profunda do que a do contista francês; nas peças há, além de todas as qualidades do artista e do homem, um poder de composição, uma harmonia de conjunto que as tornam das mais notáveis de todo o teatro russo.

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GANIVET

Angel Ganivet, que nasceu em Córdova em 1865 e se suicidou em 1898, em Riga, onde era cônsul, foi um dos mais fortes escritores da geração que tentou um renascimento intelectual da Espanha nos últimos anos do século XIX, se não mesmo o mais sólido de todos; Unamuno, que afinal veio s exercer uma influência maior, não teve o sentido de equilíbrio, a disciplinada reflexão, a acção coerente de Ganivet; o ter morrido ainda muito novo impediu Ganivet de fazer desaparecer do seu corpo de pensamento certas ideias que nos surgem ou como contraditórias ou como pouco assentes em bases seguras; mas os livros que nos deixou — As Cartas Fin­landesas, com a sua série de estudos sociais, os Hombres del Norte, traba­lho da maior originalidade sobre a literatura escandinava, La conquista del reino de Maya e Los trabajos del infatigable creador Pio Cid, que são uma espécie de romances filosóficos, El escultor de su alma, drama místico em que deixou marcados alguns dos traços mais importantes da sua concepção da vida, o Epistolário publicado por Navarro y Ledesma, e sobretudo El por­venir de España e Idearium español, em que se inclui uma psicologia dos espanhóis, uma interpretação do passado da Espanha e um esboço do pro­grama do futuro — gravam no leitor uma impressão de saber profundo, de alta capacidade de especulação, de gosto pelo jogo das ideias, de compreensão justa do que a realidade apresenta e ao mesmo tempo de fervor místico na arquitectura do seu sonho do porvir; o estilo cheio de vigor apoiado na linguagem popular, com o emprego frequente das imagens usuais na gente de Castela e Andaluzia, mais contribui para que a personalidade de Ganivet nos apareça como excepcional, mesmo num país de tão fortes personalida­des como a Espanha. Como para todos os melhores espíritos que têm aparecido na Península desde o começo da decadência, o problema essencial é, para Ganivet, o problema do presente e do futuro da sua Pátria, e tão fortemente se acha ligado ao problema do sentido da vida que dificilmente os poderemos destrinçar; é característico dos homens da nossa Península esta íntima ligação entre as suas concepções metafísicas e as suas concepções de acção moral e social, de acção social que é sempre para eles, sobretudo, uma acção moral; e é exactamente esta interdependência, ou melhor, esta fusão dos dois planos que lhes dá o tom religioso que surpreendemos em Espanha num Jovellanos ou num Joaquin Costa, em Portugal num Hercu­lano ou num Antero. Ganivet não crê que a Espanha se tenha perdido para sempre; esteve junto do povo e conheceu as reservas de energia, de vitalidade, as possibilidades de acção renovadora que nele se contêm; do fundo primitivo nada se perdeu, embora tudo tivesse adormecido; e é nesse fundo primitivo, marcado pelo estudo da psicologia do povo actual e pelo estudo do que há verdadeiramente tradicional na Espanha, que tem que assentar a renovação do pais; toda a tentativa de levantar a Espa­nha por métodos imitados do estrangeiro está destinada a falir, porque vai contra o sentir íntimo do povo, porque será uma superficial preocupação de um escol reduzido; não há que europeizar a Espanha, como tantas vezes se exclama, há que a hispanizar, despindo-a do vestuário estrangeiro com que a enrouparam os seus dirigentes; e então, se um dia a tarefa se realizar, sur­girá ens olhos maravilhados do mundo uma nação bem diferente de todas as outras que existem. Nenhum outro povo tem como a gente de Espanha o sentido de uma tolerância que não é indiferença, porque coexiste com uma defesa apaixonada do que nos parece verdadeiro; a capacidade de entendi­mento com o adversário é-nos demonstrada pela forma por que os cristãos conviveram com os árabes: os visigodos que se refugiaram nas Astúrias são estrangeiros, os guerreiros das conquistas são estrangeiros; na Espanha existe, como em nenhum outro país, o espírito descentralizador, autárquico: cada terra aspira a governar-se por si própria, cada homem a reger-se pelos ditames da sua alma; este gosto da independência defende das arremetidas dos poderes o que o indivíduo tem de mais sagrado — a sua maneira de ser peculiar — e só pode ser prejudicial quando se estenda aos domínios da técnica, em que o individualismo é absurdo; há depois o impulso místico que não é o de um Kempis, que vai para Deus por uma evasão do mundo, mas o de uma Santa Teresa ou de um Frei Luiz de Granada, que a Deus se encaminham pelo serviço dos homens; tem a Espanha ainda um espírito de aventura e de coragem desinteressada que não encontramos nos empreendimentos dos outros povos; uma capacidade enorme de construção idealista a partir do conhecimento exacto das realidades: os Bacos de Velasquez e as Virgens de Murillo só se banham de uma luz divina depois de terem sido sólidos rapazes e raparigas dos campos espanhóis; ou, mais precisamente, são ao mesmo tempo deuses e homens; o sentido da justiça é mais ardente na Espanha do que entre os outros povos: a oposição, latente ou declarada, aos tribunais e aos códigos vem exactamente de que não satisfaz ninguém a sua justiça estreita, implacável e monotonamente aplicada; se juntarmos a tudo a viva inteligência, que por falta de cultura só tem servido para zom­bar dos governos e para sustentar o charlatanismo, teremos no povo espanhol uma base suficiente e única para que se reproduza o milagre grego mesmas linhas essenciais, mas acrescentando-lhe tudo o que trouxeram o espírito cristão e a técnica moderna. Infelizmente, até hoje, os dirigentes espanhóis só têm procurado ser os opressores e não os educadores do seu povo; com o mando despótico de um Carlos V e a vigilância dos Inquisido­res, a Espanha viu estabelecer-se um sistema de governo que abafa o que há de mais forte, de mais vivo no seu espírito; sempre se tem tentado habituar os espanhóis à violência, ao gosto do sangue, à forte centralização, dominá-los pela fome, pela incultura, pelo medo; aplicou-se à nação, como uma carapaça que a oprime, um produto do génio alemão e do génio italiano; aí radica a separação nítida que se nota em Espanha entre as classes superiores e o povo. As dificuldades de reacção são naturalmente muito grandes e, fora uma ou outra rápida passagem, Ganivet não indicou os meios de que se devia lançar mão; fala apenas de um entendimento entre as nações ibéricas, sem união, e duma acção educativa; são os dois pontos fracos do Idearium e de El porvenir de España, porque não põe como condição do entendi­mento uma autonomia bastante ampla das várias regiões espanholas, nem se caracteriza suficientemente o sistema educativo a empregar; por outro lado, quase se não dá importância ao factor económico, em que tem talvez de se procurar a explicação de muitos dos acontecimentos da História de Espanha e que há-de ser a primeira base de qualquer renascimento; de resto, só uma renovação económica na Europa poderá fornecer o quadro em que seja possível actuar num pais em que todos os reformadores só têm encontrado como obstáculo insuperável um escol que nada compreende e um povo que vive na mais grosseira das ignorâncias. E, ampliando, modernizando as ideias de Ganivet, pode dizer-se que a Península dará porventura ao mundo a fórmula pela qual o homem aproveitará plenamente essa renovação econó­mica e não deixará que ela venha esmagar o seu espírito; nenhuma nação na Europa parece ter, como a Espanha, as reservas de força moral, de desin­teressada actividade, de afirmação do indivíduo necessárias para que se consiga um tal objectivo.

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Cadernos de Agostinho da Silva (excertos)


RUSKIN

Os pais de Ruskin, que nasceu em Londres em 1819, eram ricos e esforçaram-se por dar ao filho uma sólida educação, embora o fizessem com uma certa rigidez; o grande desejo do pai era que ele viesse a ocupar um Togar de relevo na igreja inglesa, mas a natureza de Ruskin, inconformista e batalhadora, revelou-se totalmente incompatível com a aceitação e defesa de um credo feito e a entrada numa instituição que não lhe era extremamente simpática; apesar de não o verem disposto à carreira eclesiástica, deram­-lhe os melhores mestres, forneceram-lhe dinheiro para viagens que foram muito importantes para a formação do seu espírito e enviaram-no para Oxford, onde, uns cinquenta anos mais tarde, veio a ser professor de história da arte; era este na realidade o seu interesse dominante, sem que, no entanto, considerasse apenas artística a obra de arte: o seu gosto da mine­ralogia, da geologia, da botânica, a sua sensibilidade desperta para todo o espectáculo magnífico da beleza do mundo revelam-nos em Ruskin um espí­rito mais amplo do que o comum dos críticos de arte; e, como artista, os seus desenhos, quase sempre de pormenores de edifícios, de plantas, eram finos, graciosos e educaram os gravadores ingleses em novos processos de trabalho. A sensibilidade artística de Ruskin juntava-se o gosto da serie­dade intelectual; a sua defesa dos pintores pré-rafaelitas, que os críticos aca­démicos repeliam, funda-se em grande parte no reconhecimento da sinceri­dade dos artistas do grupo e vai por outro lado contra a incompreensão de que tinha dado provas a crítica oficial; mas anima todo o trabalho, e aí reside talvez o seu maior valor, uma inspiração generosa, uma ideia de bom combate, ao ver que todos se davam as mãos para esmagar, se pudessem, quem trazia ao mundo da arte um movimento de renovação e de protesto. Sentido estético e generosidade são talvez os dois grandes traços do carácter e da actividade de Ruskin; são eles que, à medida que os anos passam, lhe dão remorsos nos seus estudos de arte, lhe vão fazendo sentir como esta actividade que devia unir todos os homens, na realidade os separa com tre­mendas barreiras, a si própria se prejudicando: é porque a arte é duma casta ou duma classe, é porque há uns que têm tempo e cultura para visi­tar os monumentos e admirar as paisagens, em quanto outros se esmagam nas tarefas inferiores, que a arte moderna aparece com todo o seu carácter de artificialidade e de fraqueza; para Ruskin, uma arte é viva na medida em que exprime a vida total de um povo e não apenas os delicados sentimentos de um escol que só vive sobre a miséria e o sofrimento alheios; cada vez mais lhe parece um acto de suprema imoralidade entreter-se com os seus cristais e a sua botânica, enquanto milhares de crianças são lentamente assassi­nadas nas galerias das minas e nas fábricas de fiação; há ilhas de beleza num mar de inferioridade, de sofrimento, de degradação humana; o seu amor da arte só será justificado se, ao mesmo tempo que aprecia o que é belo, combater o que é horrível, se tentar salvar da sua baixeza os que nela foram mergulhados pelas condições económicas; claramente vê Ruskin que tudo depende da reorganização de dois campos primordiais na actividade humana: a agricultura e a indústria; é preciso que se adopte no primeiro um sistema que acabe com a exploração do homem pelo homem; quanto ao segundo, a máquina não deve servir para criar ainda mais miséria entre os homens, mas para lhes dar o ócio de que necessitam para se cultivarem; conseguidos estes dois primeiros objectivos, será possível depois fazer que haja arte em todos os produtos do trabalho humano, fazer que a beleza do mundo não seja perturbada pela existência de rebanhos de escravos que trabalham para o bem estar de uma minoria. Visto com clareza o problema e marcadas as linhas de solução, Ruskin lançou-se na batalha com todo o ardor; não é pessimista quanto à natureza humana, crê que os homens têm, em potência, uma bondade que a organização social não deixa desenvol­ver-se; sem ódio a ninguém, vendo até nos que vivem do trabalho alheio, com toda a sua miséria moral e toda a sua real debilidade de cultura, as vitimas das condições em que o mundo gira, Ruskin combate no campo da economia e no campo da arte, procurando que a primeira dê cada vez mais possibilidades ao homem e que a segunda seja cada vez mais profunda e sincera; os seus livros, formados em grande parte de conferências e de artigos de revista, são golpes de batalha, são actos, muito mais do que obras literárias; e, no campo da prática, a sua St. George's Guild, para fundação de instituições socialistas, os seus museus, o seu trabalho nas estradas, a sua casa de chá, dão uma prova, senão do seu talento de administrador, que era fraco, pelo menos da sua sinceridade e do seu espírito de iniciativa; em 1887, treze anos antes da morte, teve de vender parte dos livros e dos qua­dros e viveu daí por diante em condições difíceis; mas o seu exemplo servira e outros surgiram a lutar pelo triunfo dos mesmos ideais, naturalmente sob outro aspecto e por outros meios, mas guiados pelo mesmo anseio de beleza e de justiça; se Ruskin, em certos pontos, nos parece antiquado, em grande parte devido ao seu estilo por vezes demasiado bíblico e cheio de imagens, em grande parte porque já se alcançou muito do que ele preconizava, não podemos deixar de reconhecer que abriu caminho em muitas direcções e que pôs nitidamente a ideia fundamental de que temos de modificar as condições económicas se quisermos que o homem se realize em toda a sua magnitude; mas de que também não devemos esquecer que o económico é apenas um meio e que não podemos, para o conseguir, sacrificar o próprio espírito que desejamos desenvolver e libertar.

terça-feira, 26 de agosto de 2008

Cadernos de Agostinho da Silva (excertos)


CERVANTES

Nascido em Madrid em 1547, pertencia Miguel de Cervantes e Saave­dra a uma família pobre; o pai era cirurgião, mas de categoria inferior, o que o fez conhecer a miséria e a prisão por dívidas; o contacto que logo Cervantes teve com a vida foi duro e de molde a dissipar-lhe toda a espécie de ilusões; ninguém como ele pôs tão claramente a importância do econó­mico para a vida moral do homem vulgar: pobreza e honestidade, entendida a palavra num sentido muito mais largo dó que o de não roubar directa­mente, aparecem como termos de conciliação difícil; escusado é dizer que, por outro lado, a existência de ricos num mundo de miseráveis lhe surgia como o resultado de uma série de infracções morais, voluntárias ou não. Dos estudos de Cervantes pouco sabemos: por volta dos 20 anos frequentou um colégio universitário de Madrid; Cervantes, que não era, como já se tem querido sustentar romanticamente, um homem sem cultura que, por milagre, por bafejo dos deuses, produziu uma obra de génio, não nos dá, por outro lado, a impressão de ter sofrido formação livresca; a leitura deve ter entrado nele apenas como um dos elementos da grande vida que nos rodeia; a sua educação fez-se ao contacto dos homens e das coisas e entram naturalmente no número os homens mortos que se nos revelam pelo que escreveram; além de tudo, é Cervantes um dos escritores em que melhor podemos aprender como, a cultura não é uma erudição, um saber fixo, mas uma capacidade de juízos críticos, com uma compreensão da vida tal como se nos apresenta e, ao mesmo tempo, o desejo de que ela se torne mais racional e, por isso, mais justa; essa espécie de cultura resulta, como é evidente, não só da qua­lidade do espírito de quem a possui, e é neste sentido pessoal, incomunicá­vel, mas também do ambiente que se encontrou na vida; o que leva a um esforço para que todos tenham à sua volta tudo aquilo de que necessitam Para se tornarem cultos. Parece que Cervantes deve parte da sua formação à influência de Erasmo que muitos grandes espíritos espanhóis veneravam como um mestre: neles mostrou a Península as suas possibilidades de espí­rito crítico, tolerância, visão inteligente do mundo humano; mas depressa as circunstâncias históricas, com os chefes religiosos e políticos, tornaram a vida dos erasmistas impossível no ambiente de austera tristeza que a contra-Reforma trouxe à Espanha; mas Cervantes, que tinha a arte de velar, pela ironia, as suas opiniões, escapa à repressão e nunca os inquisidores o inco­modem. A viagem pela Itália como soldado de aventura alarga-lhe a expe­riência; em 1571 bate-se em Lepanto contra os turcos e a acção fica para ele como a vitória da civilização sobre a barbárie; esteve depois em Nava­rino, Tunis e Goleta: lutou sempre como um bravo, mas havia no seu peito o ressentimento contra a inépcia dos dirigentes que não aproveitam o heroísmo dos homens para uma grande obra humana e se mostram incapazes de se erguer acima dos interesses mesquinhos e das mesquinhas questões. Em 1575 é capturado pelos piratas de Argel que o têm preso durante cinco anos: é uma parte da sua vida de que sabemos bastantes pormenores e em que Cervantes nos aparece como um homem de perfeita coragem e de segura inteligência; a nobreza da sua alma e a agudeza do seu espírito conquistaram o mouro e embora tivesse imaginado e posto em prática numerosas tentativas de fuga nunca foi castigado pelo rei. Em Espanha não souberam apreciá-lo; em 1581, Filipe II, que ele procurou em Tomar, deu-lhe uma pequena recompensa; mas logo o esqueceu; quatro anos depois, publicou Cervantes a Galateia, pastoral idílica que nos surge como uma tentativa de ignorar o mundo real: sem resultado, porque Cervantes e a vida parecem ter sido feitos para se encontrarem e se baterem; há uma aventura com Ana de Rojas, depois o casamento e o emprego no serviço de abastecimen­tos; Cervantes percorre as aldeias espanholas, miseráveis como sempre, à procura do trigo e do azeite de que precisavam os exércitos e as armadas reais; conhece mais profundamente a vida dos seus compatriotas e tão pro­fundamente que chega, pelo estudo dos espíritos particulares de um povo e de um século, ao que há de mais íntimo no espírito dos homens de todos os tempos. Entre 1590 e 1602, é preso por várias vezes e por vários motivos e o contacto com os seus companheiros de prisão mergulha-o mais ainda no ambiente espanhol e na essência do humano; não traz de todas as suas experiências nem a submissão dos fracos, nem o desânimo dos vencidos: a sua aceitação da vida é serena, corajosa, irónica. Em 1605 publica-se o D. Quixote, cujo êxito foi imediato; os homens reconheciam o mundo em que viviam, pintado com um realismo de que ninguém feira capaz até aí: era a Espanha com toda a sua força, com toda a sua miséria, com todo o seu fidalgo estoicismo; e era também o homem de todos os tempos e de todos os lugares, mas apreendido através do episódio quotidiano e da acção, sem uma página sequer de considerações abstractas; ao mesmo tempo, para quem não sentia o significado profundo do livro, era uma história de aventuras cómi­cas que entretinham e divertiam; o génio de Cervantes sobretudo se mani­festa nesta possibilidade de satisfazer todos os gostos: escreve para toda a humanidade porque toda a humanidade palpita dentro dele e porque acha legitimas todas as concepções de vida que se podem formar; compreende o mundo, sem dúvida, mas protesta, porque poderia ser melhor; d e haverá possibilidade de melhorar? A sua conclusão parece ser a de que será impos­sível se os homens continuarem a ser o que são: uns, como D. Quixote, admiráveis no sonho e incapazes de realização prática, outros, como Sancho Pança, presos à terra, ignorantes de todo o céu que se alarga para além dos seus estreitos horizontes; seria preciso que surgisse um novo tipo humano, o que sabe sonhar e sabe realizar, não nos estreitos domínios em que o fez, por exemplo, uma Santa Teresa de Ávila, mas com os profundos interesses sociais de que a humanidade necessita; se não vierem reformadores deste carácter, os homens andarão sempre entre as ilusões absurdas do cavaleiro e o chouto paciente do burrico de Sancho. Em 1613 publicou ainda Cervan­tes as Novelas Exemplares, depois em 1615 a segunda parte de D. Quixote; Pérsiles e Segismunda só apareceu depois da morte do escritor, ocorrida em Abril de 1616.

Cadernos de Agostinho da Silva (excertos)


DAMIÃO DE GÓIS

Damião de Góis nasceu perto de Alenquer, em 1502, e foi educado no paço desde 1511; recebeu a instrução de gramática, retórica e música, que era habitual no tempo e foi crescendo na atmosfera de amor do luxo e da aventura da corte de D. Manuel; podia, como tantos outros, embarcar para a África, a fazer o seu treino da guerra, depois ir na viagem do Oriente, em busca de glória e de fortuna; nisto, porém, havia no seu espírito um afasta­mento dos portugueses da época: interessavam-no mais as repercussões que os descobrimentos tinham na Europa e o contacto com o mundo novo que surgia na arte, na ciência, nas concepções religiosas; passou a Antuérpia, onde Portugal mantinha uma feitoria, e aí serviu, a partir de 1523, sob as ordens de João Brandão, feitor da Flandres; pouco depois nomearam-no es­crivão; viajou, em seguida, como diplomata, pelos países do Báltico e pela Polónia e tratou de negócios políticos e comerciais com o rei da Dinamarca; sentindo que a instrução que levara de Portugal não era bastante sólida para poder entrar em íntimo contacto com os artistas, os reformadores, os huma­nistas, matriculou-se na Universidade de Lovaina, que frequentou durante algum tempo; os estudos são interrompidos por uma ida a Friburgo, onde trava relações com Erasmo: já conhecia Melanchthon e Lutero, mas ser bem acolhido pelo escritor que a Europa inteira escutava vinha consagrá-lo como um homem civilizado e dar-lhe possibilidade de tornar bem conhecida a acção dos portugueses; voltou a Portugal, por 1533, e foi nomeado tesoureiro da Casa da Índia; mas o ambiente da pátria era já um pouco difícil para quem se tinha habituado à amplidão de pensamento dos grandes espíritos europeus: não se tinha sabido coroar a obra dos navegadores com a obra dos artistas, dos homens de ciência e dos filósofos e toda a actividade se ia reduzindo ao negócio, ao culto da brutalidade guerreira e ao estreitamento das concepções religiosas; saiu do país logo no ano seguinte e esteve em Pádua a estudar, o que não o impediu de percorrer outras cidades da Itália; em Lovaina, para onde passou em 1539, casou com uma holandesa, Joana de Hargen, e bateu-se contra os franceses que tinham vindo cercar a cidade; em 1545, fixou-se em Portugal, como guarda-mor da Torre do Tombo e cronista do reino; a sua casa, onde havia boa mesa e boa música, era o ponto de reunião dos estrangeiros cultos de Lisboa; não deixou, naturalmente, de ser acusado à Inqui­sição, como adepto do luteranismo; apesar das diligências do P.e Jesuíta Simões Rodrigues, o processo não teve seguimento durante cerca de 25 anos: depois, deram-lhe ordem de prisão, meteram-no num cárcere, onde se cobriu de sarna e quase cegou, e, em 1573, condenaram-no a prisão perpétua; fale­ceu nos primeiros tempos de detenção, no convento da Batalha: fundado para comemorar o feito que libertara Portugal para a sua missão universalista, o mosteiro via morrer, menos de 200 anos depois, um homem que representava o ponto a que se teria chegado se o país se não tivesse detido na marcha iniciada.

Damião de Góis é efectivamente um humanista, não no estreito e insignificante sentido de pessoa que domina as línguas clássicas, mas no de alguém que aceita a ideia de possibilidade de progresso humano e a crê rea­lizável pelo culto da liberdade de consciência e do espírito critico; confiante nos homens, ele tem o sentido da convivência, e a generosidade, a tolerância, a compreensão e o amor do diferente, que estão na base de toda a amizade pessoal e de toda a cooperação humana; ama verdadeiramente o seu próximo, protestante ou católico, etíope ou lapão; o seu patriotismo, bem expresso nos folhetos de propaganda que publicou, não exclui um anseio universalista, antes o supõe, visto que a sua admiração por Portugal vinha exactamente do trabalho que os seus marinheiros tinham feito para um maior entendimento entre os homens; vê, de resto, os descobrimentos como uma empresa humana, baseando-se em certezas humanas e dirigindo-se a objectivos humanos; nada aparece nele de mesquinho ou de separador nas concepções religiosas: por aqui, segue Erasmo e entende, como ele, que, depois da revolução científica do final do séc. XV e princípios do séc. XVI, o mundo vai por novos rumos e a religião se tem de modificar, num sentido de maior largueza e elevação; e, ante o seu espírito conciliador e inimigo da violência, tanto lhe parecia condenável a revolução brutal de Lutero como a opressão despótica de Roma; as artes, sobretudo a pintura e a música, eram também para Damião de Góis uma linguagem em que Deus se exprimia e pela qual era possível chegar até Deus: admirava os quadros de Dürer, de Bosch, de Metsys, e ele próprio compõe coros que entoa com os amigos na sua casa de Lisboa; neste homem tudo se dirige ao entendimento com o seu semelhante, até a crítica que exerce sobre as suas próprias opiniões, a moderação com que as exprime, a atitude de dúvida que mantém, mesmo perante o que lhe parece mais seguro. E foi verdadeiramente um desastre para a civilização da nossa Europa que uma nação inteira, depois de ter posto em prática todos estes princípios, no que respeitava à acção, se tivesse voltado a destruir sistematicamente tudo o que apontava como tendente a implantá-los na esfera do pensamento.

Como escritor, Damião de Góis manejou igualmente o português e o latim, e ambos bastante mal. O seu estilo é imperfeito, cheio de asperezas e de construções defeituosas; por outro lado, falta-lhe o poder de imaginação histórica de um Fernão Lopes ou de um Oliveira Martins; mas os seus livros valem pela imparcialidade e pelo tom crítico, que tantos ódios e oposições lhe suscitaram no tempo, e que só voltam a aparecer entre nós com a reno­vação intelectual do séc. XVIII e, depois, com a história de Herculano.