Agora que a poeira assentou, continuemos então, serenamente, o debate…
1. Quanto propus como tema para o primeiro número da Revista a ideia de Pátria, já pressentia que era em torno deste conceito que muita coisa se iria jogar, até na adesão ou na rejeição do nosso Manifesto (e no que veio a ser o MIL). No caso das recusas, o argumento tem sido, com todas as variantes possíveis, sempre o mesmo, o velho e estafado argumento de sempre: “não sou ateniense nem grego, mas cidadão do mundo” (não, a frase não é de Sócrates…).
2. Há muita gente que acha que todos os problemas do mundo se resolveriam (em grande parte, pelo menos) se houvesse uma única língua (daí o esperanto) e se (como causa ou consequência disso) houvesse uma única Pátria (ou seja, se não existissem Pátrias). Deixo aqui de lado a questão “religiosa” (por economia do debate).
3. Passemos então, uma vez mais, à ideia de Pátria. Começo por relembrar o “intróito” ao que escrevi no primeiro número da revista, precisamente a respeito dela: «O homem não é, ou não é apenas, uma “pura abstracção”, mas um ser concreto, universalmente concreto, um ser que, de resto, será tanto mais universal quanto mais assumir essa sua concretude, a concretude da sua própria circunstância. Dessa circunstância faz axialmente parte a “pátria”, isso que, segundo José Marinho, configura a nossa “fisionomia espiritual". Nessa medida, importa pois assumi-la, tanto mais porque, como escreveu ainda Marinho, foi “para realizar o universal concreto e real [que] surgiram as pátrias”.»
4. Ou seja, à luz desta visão, o Universal não se realiza por negação da Pátria, mas, ao invés, pela sua afirmação. Não, decerto, porque estas sejam o horizonte último. Mas porque são, para mim, o melhor caminho, o melhor “meio” (é preciso valorizar as mediações…), para cada um de nós, e nós em conjunto, realizarmos esse Universal. Tanto mais porque, à luz desta visão, nenhum desses caminhos exclui qualquer outro: enquanto “universais concretos”, todas as pátrias são verdadeiras e, por isso, todas elas podem e devem ser preservadas. Como sou português, digo: é porque me afirmo por português (e lusófono) que sou, verdadeiramente, cidadão do mundo. Se fosse russo, diria: é porque me afirmo como russo… Tudo isto, decerto, em prol do “bem-comum”. Penso, genuinamente (mas admito que isto seja uma questão de fé…), que se todos os povos preservassem a sua “Pátria”, todos eles ficariam melhor individualmente – donde resultaria que, no seu conjunto, o mundo (enquanto conjunto de Pátrias) também ficaria melhor. Retomando a provocação amiga do Casimiro, “é preciso passar pela Índia (ou seja, pelo universal concreto) para chegarmos à Ilha dos Amores”. Por isso, aliás, nos alertou igualmente Marinho contra o “apressado conceito de cidadão do mundo e de universalidade do pensamento”. Se por aqui estivesse agora, talvez nos alertasse contra a "tentação do trans-".
5. Decerto, sei que o conceito de Pátria desperta as mais abusivas suspeitas. Ainda há pouco tempo, o nosso “amigo” Desidério Murcho nos veio assegurar que, em Portugal, quem fala de Pátria só pode ser salazarista. Ou nacionalista-passadista. Ou qualquer outro palavrão do género…
6. A essa luz, compreendo a tentação do “trans”, começando assim a falar-se de “trans-patriotismo”. Muito comunistas também passaram a auto-designar-se como “pós-comunistas”, resignados que ficaram à identificação entre “comunismo” e “totalitarismo”. O mesmo acontece, hoje, com muitos islâmicos: quando se assumem como tal, salvaguardam logo que não são “fundamentalistas”. Um dia destes auto-designar-se-ão como “trans-islâmicos”, ou algo do género, pensando assim evitar confusões...
7. Esse não me parece, contudo, o melhor caminho, desde logo porque “enterra” ainda mais, senão de vez, o conceito de Pátria, concedendo-o, em exclusivo, aos que o desvirtuam (vocês sabem que quem eu estou a falar…). Ora, o que nós queremos (pelo menos, o que eu quero) é, ao contrário, reabilitar o conceito. Pela minha parte, continuarei pois a falar da Pátria. Com P maiúsculo. E é-me completamente indiferente que o Desidério Murcho, ou qualquer outro, “salazarista” me chame…
A Águia, órgão do Movimento da Renascença Portuguesa, foi uma das mais importantes revistas do início do século XX em Portugal. No século XXI, a Nova Águia, órgão do MIL: Movimento Internacional Lusófono, tem sido cada vez mais reconhecida como "a única revista portuguesa de qualidade que, sem se envergonhar nem pedir desculpa, continua a reflectir sobre o pensamento português".
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12 comentários:
Salvo erro, a frase é de Plutarco. Mas há uma outra, de outro banimento, atribuída a Diógenes Laércio, que muito aprecio:
«Não sois vós que me expulsais, sou eu que vos condeno a ficar.»
Falta de cultura à parte... vou reflectir e te enviarei a minha meditação.
Abraço, Renato.
P. S. Esse Desidério Murcho de repente arrebitou-se para o tema pátrio... A febre das galinhas pode ser o prenúncio do Apocalipse. Temos que nos prevenir com redes mosquiteiras nas janelas...
Envia. As tuas meditações fazem falta...
Abraço MIL
Renato, sem tempo agora para mais, que vou sair - :) - digo só que o Sócrates que afinal era o Plutarco tinha a vantagem desse duplo nível de referência: o ateniense e o grego... "Pátria" é às vezes para mim a "minha terra" (que por exemplo inclui a Galiza mas não o Algarve, e é onde eu me sinto na minha casa ancestral), outras vezes a nação portuguesa, outras vezes o Portugal-no-mundo que inclui Goa e outros lugares...
Faltam-nos termos que exprimam essa multiplicidade hierárquica das coisas; o que é mais um argumento para que os que temos se não desvirtuem. E em tudo, guardar lugar para o nómada, aquele para quem "pátria é o lugar
onde repouso a cabeça".
O "trans" parece-me coisa diferente, bem diferente. Louvável no seu lugar, que se não confunde com o dela (Pátria).
Cordiais cumprimentos,
Casimiro
Caro Renato,
Antes de mais queria pedir desculpa pela perguntas “penetras”. Penso que reconhecerás nelas não a vontade de interferir, ou de ferir mas antes uma vontade de colaborar na dissipação de mal entendidos lexicais. Para que o que digo seja totalmente claro, reafirmo que são meras reflexões de alguém que tem mais perguntas do que respostas!
Porque razão não havemos de aplicar a palavra Pátria para designar o local onde nascemos ( sitio de origem), aceitando que os vínculos afectivos, culturais, valores e história associados à sua expressão, não são amarras à livre expressão do indivíduo enquanto cidadão?
Tal como José Marinho tão claramente afirma ao dizer que foi “para realizar o universal concreto e real [que] surgiram as pátrias”.», eu também posso dizer , numa perspectiva ainda mais focalizada que: - foi para realizar o universal, concreto e real que surgiram seres, indivíduos, cidadãos.
Se a fome de mundo de um cidadão Português se revê na frase “não sou ateniense nem grego, mas cidadão do mundo” o que ele está a afirmar não será antes a sua condição individual de cidadão? Se assim fosse, tal afirmação não seria renegação do conceito de Pátria enquanto ponto de origem mas antes a afirmação da Universalidade do Ser - Indivíduo - Cidadão como derradeira finalidade.
O Trans-patriotismo ( nunca trans-nacionalismo), não se poderá aplicar ao universo lusófono, abdicando assim, de uma vez por todas, da palavra Império; palavra gasta - não por ti nem por mim - mas pela carga histórica que lhe está associada; porque foi abusivamente utilizada pelos que tentaram reprimiram a inequívoca expressão de tantos povos do mundo lusófono de afirmar, com toda a propriedade, a sua autonomia e a integridade das suas Pátrias, bem como de uma outra visão de cidadania?
Obrigada e até um dia destes...
Não há verdadeira pátria nem verdadeiro patriotismo sem "trans-", que não é negação, mas o impulso de superação e de inegração de toda a particularidade num plano superior: como a Aufhebung hegeliana. Nesta perspectiva, creio que a tentação reside sim na supressão do "trans-", que seria o cortar de asas da águia...
Creio que a Pátria em Portugal é sempre "trans", logo neste caso patriota é sempre sinónimo de transpatriota! A Pátria portuguesa não pode nunca dispensar o seu Passado e este pertence ao Mundo! O seu Futuro também lhe deve pertencer.
Por isso o patriotismo que pretendemos defender como meio de preservar Portugal e a lusofonia terá sempre de ser "trans", embora considere o seu uso como prefixo indiferente.
Abraço MIL
Cara Ana: eu reconheço-te o direito de tu achares que a tua realização enquanto "indivíduo" não passa pela mediação da instância "Pátria". E, acredita, não te levo a mal por isso. Eu sou menos "mau" do que por vezes pareço...
Caro Paulo:
1. Decerto, em particular para um português, ser patriota cumpre-se em ser trans-patriota (cf. Vieira, Pessoa, Agostinho, etc.).
2. Mas, para se fazer a “superação” do caminho, importa percorrê-lo primeiro.
3. Se recusamos a priori a mediação da instância "Pátria", como poderemos vir a ser realmente “trans-patriotas”?
Caro Lux Caldron: Subscrevo-o por inteiro...
Abraço MIL (a todos)
Ora, a Ana Moreira veio precisamente falar as palavras do nómada :) Era exactamente a isso que eu me referia. E evidentemente não precisaremos de verificar se o seu BI é emitido pela República Portuguesa ou qualquer outro Estado da Lusofonia para lhe dizer: esta Pátria é a tua casa.
Já o que diz o Paulo me parece merecer diferente atenção: e convido-vos (Paulo e Renato) a regressar à vossa conversa de "arche" e "arqueiros" de ontem (será ontem? não fui ver).
É que "impulso para" é ponto bem diferente. Nunca na tradição dos cristãos portugueses se sentiu, por exemplo, que a entrada de Nuno Álvares num mosteiro de "contemplação" como o Carmo fosse a negação da sua responsabilidade em Aljubarrota, primeira manifestação talvez do "patriotismo" puro e duro em Portugal.
A questão acaba por ser a de saber se a Águia tem que ser tão orgulhosa que se sinta livre do Ninho, e lhe seja igual que os abutres se tenham instalado lá. Ou se não há-de guardar o Ninho, e a montanha altiva que ele coroa.
Depois, poderão dizer que há as águias míopes, e as águias tontas, que confundem o ninho com o vasto céu. Poderão dizer que essas águias gastaram a palavra "voo" e a palavra "montanha"?
Toda a Pátria sente impulso para se superar. Todo o homem sente impulso para a união com o indistinto Fogo. Mas a Pátria não é o Oceano Universal, como o homem não é deus. E o voo de Ícaro é - felizmente - uma experiência solitária.
Abraços
Caro Casimiro
Às vezes tenho dificuldade em segui-lo...
Quanto ao que percebi:
1. Decerto, toda esta conversa não tem nada a ver com Bilhetes de Identidade. Nem com sangue, ou raça, ou algo do género... Como já escrevi algures, "ser português não é um estatuto, antes um estado de espírito".
2. Quanto ao resto, subscrevo estas suas palavras: "a Pátria não é o Oceano Universal, como o homem não é deus"
3. Quanto à tese de "todo o homem sente impulso para a união com o indistinto Fogo", já não a subscrevo tanto. Em mim, pelo menos, esse é um impulso fraco. Por virtude ou defeito (quem poderá dizê-lo?), a indistinção ontológica ou a anulação do eu nunca me atraiu...
Gostava que esclarecesse melhor a metáforas do "ninho", da "montanha", etc.
Abraço MIL
Caro Renato e caro Casimiro, eu não recuso em absoluto a mediação da pátria, para quem ela seja necessária... O que digo é que, para que essa mediação o seja, tem de se superar a cada momento. Só há caminho na medida em que se avance, em que se vá além. A pátria não é uma coisa, uma entidade, um ninho. A pátria, e talvez sobretudo a portuguesa, é esse contínuo ir além de si. Mas isso faz-se em nós, nos indivíduos, na metamorfose da consciência e da visão. Como diz o Renato, no fundo é uma questão do "espírito". E o espírito não tem forma nem limites... Porventura não é divino nem humano, não é isto nem aquilo...
Abraços
O ponto é, a meu ver, este e daqui acho que não podemos sair:
1. Admitamos, para benefício do debate, que a Pátria é uma mera "ilusão" (ainda que benéfica), uma mera "mentira" (ainda que virtuosa).
2. Ainda assim, contudo, é a nossa Ilusão, a nossa Mentira...
3. A menos, claro está, que queiramos reescrever o Manifesto da NOVA ÁGUIA a ponto de uma pessoa como o Desidério Murcho o poder subscrever. Essa sim, seria, a meu ver, uma tentação fatal...
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