2006, 17 de Março.
Hoje encontrei o lugar ideal, um campo verde pincelado de vermelho. Tinha a certeza que o reconheceria assim que o visse, sempre esteve lá à minha espera.
Tirei uma foto. Um destes dias tenho que organizar o álbum da minha viagem.
Andei, até onde a estrada não me via, e finalmente mudei de nome. Recuso ser nomeada como aquela que já não existe. Reinventei-me, num abraço ao universo, e conquistei a minha identidade.
Moema é o meu nome.
Moema… Moema… Moema…
Gritei, aos quatro ventos para que não se esqueçam de mim, ao Sol para que me dê força, à terra para que me guie, à água para que me dê vida.
Moema é o meu nome, Moema.
Sei que ganhei uma nova alma e que as forças da natureza me apadrinharam.
No caminho de volta, aconteceu uma coisa estranha. Encontrei uma concha na berma da estrada. Estava ali tão deslocada e perdida como uma oliveira à beira-mar. Tive a certeza de que era um sinal. Desatei a tira de couro que trazia ao pescoço e pendurei-a. Este é o colar de Moema, nunca mais o vou tirar.
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Sentada no banco do condutor, Moema escrevinhava no diário, um pequeno caderno, de capa preta, protegido por um elástico. Era a segunda página que enchia com a sua letra redonda, tudo o resto, em branco, ainda. Não o folheava, queria-as imaculadas, como um futuro que ninguém conhece.
Por duas vezes levou a mão à concha, que lhe adivinhava o decote. Parecia ter encontrado um verdadeiro amuleto, oculto na forma de adereço. Foi o acaso que lho trouxe às mãos, os verdadeiros achados procuram-nos, quando deles precisamos. É preciso ter o coração aberto, os olhos são, quase sempre, cegos.
O sorriso, límpido, denunciava uma esfoliação da alma.
Demorou-se a admirar cada letra do seu novo nome, a inebriar-se com a pronúncia de um som, o desafio de uma musicalidade antiga.
Abriu o porta-luvas e retirou um livro que, de tanto uso, se abriu na página desejada. Recostou-se, compondo os cabelos em desalinho, e leu em voz alta:
«É como uma barca que te vai conduzir pela vida porque você sabe quem é.»
Sentia um verdadeiro fascínio pelos rituais indígenas, as culturas ancestrais, a certeza ingénua do lugar de cada indivíduo, a ligação à comunidade. Seriam, talvez, mais felizes, mais próximos da natureza e seguros dos valores por que se conduziam.
Perdida nas tradições dos Guarani, retomou o diário. Acrescentou uma última linha, siglas ilegíveis de uma só palavra. Justificou o último cadeado, com uma voz rouca e grave:
Tenho que ter um nome que só eu conheça. O que me revela e desnuda não pode ser pronunciado, ou ganharão o poder de me dominar.
Agora podia prosseguir viagem. Sem mapa nem bússola, fez-se à estrada à procura de lugar nenhum.
7 comentários:
Tinha saudades da Moema - isto não é o mesmo, sem...
Luxo vitoriano, paganismo natural das roseiras e feitiço feminino no aroma que a brisa lhe rouba dos cabelos. Algumas mulheres compensam os simulacros de plástico...
Dark kiss.
A tua escrita prende, vicia...
Podia ficar a ler-te o dia inteiro...
Lord, a tua presença é sempre uma inspiração. É bom voltar a percorrer caminhos, ouvir os sons esquecidos, procurar gestos perdidos...
Beijo doce na testa
Frankie, bondade a tua :)
Gosto muito deste diário da Moema, é-me precioso, especial.
Beijocas
De novo fiquei "presa" ao Diário da Moema... que bom que o partilhas connosco, obrigada!
um beijo*
Beijocas Mariazinha :)
Olha só quem eu fui encontrar por aqui enquanto ia descendo a página... A Moema...
Já tinha saudades de te ler.
Dark Kiss
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