A Águia, órgão do Movimento da Renascença Portuguesa, foi uma das mais importantes revistas do início do século XX em Portugal. No século XXI, a Nova Águia, órgão do MIL: Movimento Internacional Lusófono, tem sido cada vez mais reconhecida como "a única revista portuguesa de qualidade que, sem se envergonhar nem pedir desculpa, continua a reflectir sobre o pensamento português". 
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Donde vimos, para onde vamos...

Donde vimos, para onde vamos...
Ângelo Alves, in "A Corrente Idealistico-gnóstica do pensamento português contemporâneo".

Manuel Ferreira Patrício, in "A Vida como Projecto. Na senda de Ortega e Gasset".

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sábado, 16 de agosto de 2008

Cadernos de Agostinho da Silva (excertos)


VOLTAIRE, DIÁLOGOS FILOSÓFICOS (II)

DOS EMBELEZAMENTOS DA CIDADE DE CACHEMIRA

Os habitantes de Cachemira são dóceis, levianos e preocupam-se com ninharias como outros povos com negócios sérios; vivem como crianças que nunca sa­bem a razão do que lhes ordenam, que murmuram de tudo, se consolam de tudo, zombam de tudo e de tudo se esquecem.
Não tinham naturalmente nenhum gosto pelas artes. O reino de Cachemira subsistiu durante mais de mil e trezentos anos, sem nunca ter tido nem ver­dadeiros filósofos, nem verdadeiros poetas, nem arqui­tectos sofríveis, nem pintores, nem escultores. Por muito tempo não tiveram nem fábricas nem comércio, a ponto de, durante mais de mil anos, ser obrigado a recorrer a um judeu ou a um baniane o marquês cachemiriano que queria roupa branca ou um belo gibão. Por fim, no começo do século passado, apare­ceram em Cachemira alguns homens, que nem pare­ciam da terra, e que, graças à ciência dos persas e dos indianos, levaram a razão e o génio aos últimos limi­tes a que podem chegar. E houve por acaso um sul­tão que animou estes grandes homens e que, com a ajuda dum bom vizir, civilizou, embelezou e enrique­ceu o reino. Os rachemírianos receberam todos os benefícios com zombarias e fizeram canções contra o sultão, contra o ministro e contra os grandes homens que os esclareciam.
Depois, as artes de Cachemira entraram em deca­dência. O fogo que tinham acendido os génios inspi­rados pelo céu foi coberto de cinzas. Parecia que a natureza se esgotara. A glória das artes em Cachemira residia quase só nos pés e nas mãos. Havia gente com muita habilidade, que sabia passar uma perna por cima da outra, ao som de instrumentos e com uma graça maravilhosa; outros inventavam todas as sema­nas um modo admirável de atar uma fita; finalmente, apareceram químicos excelentes que, com essência de presunto e outros elixires semelhantes, punham, em poucos anos, uma casa inteira nas mãos dos médicos e dos credores. Os cachemirianos conseguiram, com estas belas artes, ter a honra de fornecer modas, dan­çarinos e cozinheiros a quase toda a Ásia.
Falava-se muito, no entanto, em tornar a capital mais cómoda, mais limpa, mais saudável e mais bela do que era; falava-se e nada se fazia. Um filósofo do Industão, grande amador do bem público, e que dava com toda a boa-vontade, e toda a inutilidade, a sua opinião, sempre que se tratava de tornar os homens mais felizes e de aperfeiçoar as artes, passou pela ca­pital de Cachemira. Teve com um dos principais «bos­tangis» uma longa conversa sobre a maneira de dar à cidade tudo o que lhe faltava. O «bostangi» concordava em que era vergonhoso não ter um grande e magnífico templo semelhante aos de Pequim ou de Agra; em que era uma pena não haver nenhum grande bazar, isto é, nenhum destes mercados e armazéns públicos, rodeados de colunas, que são ao mesmo tempo úteis e decorativos. Confessava que as salas destinadas aos jogos públicos seriam indignas de uma cidade de quarta ordem, que se viam com indignação casas ordinaríssi­mas sobre pontes belíssimas, e que em vão se deseja­vam praças, fontes, estátuas e todos os monumentos que fazem a glória de uma nação.
— Permiti-me — disse o filósofo indiano — que vos faça uma pequena pergunta. Por que razão não arranjais o que vos falta?
— Não vejo maneira — disse o pequeno «bos­tangi» —; ficaria muito caro.
— Ficaria de graça — replicou o filósofo.
— Já nos expuseram esse belo paradoxo — voltou o cidadão; mas são discorrências de filósofo, isto é, coisas admiráveis em teoria e ridículas na prática. Estamos fartos dessas sentenças magníficas.
— Mas que respondestes vós — disse o filósofo — àqueles que vos afirmaram que só era preciso querer com toda a vontade e que nada custaria ao Estado de Cachemira adornar a vossa capital, fazer todas as grandes coisas de que ela necessita?
— Não respondemos nada — disse o «bostangi» —; pusemo-nos a rir, conforme é costume nosso, e não examinamos nada.
— Pois então —retorquiu o filósofo — ride menos, examinai mais, e eu vos demonstrarei este paradoxo que vos tornaria felizes e que vos assusta.
O cachemiriano, que era homem muito delicado, mordeu os lábios, com medo de pregar uma gargalhada na cara do indiano; e tiveram então a seguinte conversa:
O FILÓSOFO — A que chamais vós ser rico?
O BOSTANGI — A ter muito dinheiro.
O FILÓSOFO — Puro engano. Os habitantes da América meridional tinham outrora muita prata de que podiam fazer dinheiro, ainda mais do que aquela que vós podereis vir a ter em tempo algum; mas, como não eram industriosos, não tinham nada do que o dinheiro pode obter: na realidade, viviam na mi­séria.
O BOSTANGI — Já entendo; fazeis consistir a ri­queza na posse dum terreno fértil.
O FILÓSOFO — De modo algum, porque os tárta­ros da Ucrânia habitam um dos países mais belos do universo e de tudo carecem. A opulência de um estado é como todos os talentos, que dependem da natureza e da arte. Assim, a riqueza consiste no solo e no traba­lho. O povo mais rico e mais feliz é àquele que cul­tiva mais intensamente o melhor terreno; e o mais belo presente que Deus fez ao homem foi a necessi­dade de trabalhar.
O BOSTANGI — De acordo; mas para fazer o que se nos pede seria preciso o trabalho de dez mil homens durante dez anos; onde haveria dinheiro para lhes pagar?
O FILÓSOFO — E não pagastes vós soldo a cem mil soldados durante dez anos de guerra?
O BOSTANGI — É verdade; e, contudo, parece que o Estado não empobreceu.
O FILÓSOFO — O quê? Então vós tendes dinheiro para mandar para a morte cem mil homens e não o tendes para fazer viver dez mil?
O BOSTANGI—É diferente: fica muito mais barato enviar um cidadão a morrer do que mandá-lo escul­pir mármore.
FILÓSOFO — Novo engano. Só trinta mil ho­mens de cavalaria são mais caros do que dez mil artí­fices; e a verdade é que nem uns nem outros são caros quando empregados na própria nação. Que julgais que tenha custado aos antigos egípcios construir as pirâmides e aos chineses levantar a sua grande mura­lha? Cebolas e arroz. Acaso as terras lhes ficaram esgotadas por terem alimentado homens laboriosos em lugar de terem engordado vadios?
O BOSTANGI — Vós venceis-me, mas não me con­venceis. A filosofia discorre e o costume age.
O FILÓSOFO — Se os homens sempre tivessem se­guido essa máxima, comeriam ainda bolotas e não saberiam o que é a lua-cheia. Para executar as maio­res empresas só é preciso cabeça e mãos; e tudo se alcança. Tendes belas pedras, ferro, cobre, belas ma­deiras para travejamentos; só vos falta a vontade.
O BOSTANGI — Temos tudo. A natureza tratou­-nos muito bem. Mas que despesas enormes para uti­lizar tantos materiais!
O FILOSOFO — Não compreendo nada do que di­zeis De que despesas falais? A vossa terra produz com que alimentar e vestir todos os seus habitantes. Tendes debaixo dos pés todos os materiais; tendes à vossa volta duzentos mil vadios que podeis empregar; só é preciso fazê-los trabalhar e dar-lhes o salário suficiente para que se alimentem e vivam bem. Não vejo o que isso poderá custar ao reino de Cachemira, porque certamente também nada pagareis aos persas e aos chineses por terem feito trabalhar os vossos cida­dãos.
O BOSTANGI — O que dizeis é absolutamente ver­dadeiro; do Estado não sairão nem géneros nem dinheiro.
O FILÓSOFO — Por que razão não mandais que os trabalhos principiem já hoje?
O BOSTANGI — É muito difícil fazer mover má­quina tão grande.
O FILÓSOFO — E como procedestes vós para sus­tentar uma guerra que custou tanto sangue e tantos tesouros?
O BOSTANGI — Mandamos contribuir, com toda a justiça, em proporção dos seus bens, os possuidores de terras e de dinheiro.
O FILÓSOFO — Pois bem; se se contribui para a infelicidade da espécie humana, não se poderá dar nada para a sua felicidade e para a sua glória? O quê! E possível que, desde que estais organizados em socie­dade, ainda não tenhais descoberto o segredo de obri­gar todos os ricos a dar trabalho a todos os pobres? Ainda não atingistes os primeiros elementos da civi­lização?
O BOSTANGI — Mesmo que tivéssemos arranjado tudo de maneira que os proprietários de arroz, de linho e de gado dessem pilao e camisas aos mendigos que empregássemos a revolver a terra e a transportar fardos, nada teríamos adiantado. Seria preciso fazer trabalhar todos os artistas que, pelo ano fora, se em­pregam noutros trabalhos.
O FILÓSOFO — Ouvi dizer que tendes no ano cerca de cento e vinte dias em que se não trabalha em Ca­chemíra. Porque não transformais metade destes dias de preguiça em dias úteis? Porque não empre­gais durante cem dias nos edifícios públicos os artistas desempregados? Os que não sabem nada, os que não têm mais que os dois braços depressa se tornarão industriosos: formareis um povo de artistas.
O BOSTANGI — Mas todo esse tempo é destinado às tabernas e à devassidão; e rende bastante para a fazenda pública.
O FILÓSOFO — A vossa razão é admirável; mas é só pela circulação que entra dinheiro no tesouro público. E não é verdade que o trabalho leva a maior circu­lação do que a pândega que só traz consigo a doença? E bem certo que seja do interesse do Estado que o povo se embriague durante um terço do ano?
Esta conversação durou muito tempo. O «bos­tangi» confessou por fim que o filósofo tinha razão e foi ele o primeiro «bostangi» a ser persuadido por um filósofo. Prometeu fazer muito; mas os homens não fazem nunca nem tudo o que querem, nem tudo o que podem.
Enquanto o filósofo e o «bostangi» praticavam assim sobre a alta ciência, passou uma vintena de belos animais de dois pés, com um mantozinho por cima duma longa casaca, um capuz aguçado na cabeça, um cinto de corda à volta dos rins
[1].
— Belos rapagões! — disse o indiano —; quantos homens há destes na vossa pátria?
— Mais ou menos cem mil de diferentes espécies — respondeu o «bostangi».
— Que gente magnífica para embelezar Cachemira! — disse o filósofo. Como eu gostaria de vê-los com a enxada, a colher e o esquadro nas mãos!
E eu também — retorquiu o «bostangi» —; mas são santos demais para trabalharem.
Mas que fazem então — perguntou o indiano? — Cantam, bebem e digerem — disse o «bostangi» — ! Como isso é útil ao Estado!

Esta conversação durou muito tempo e não deu grandes resultados.



[1] Voltaire refere-se aos frades; há outras alusões nos diálogos.

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