A Águia, órgão do Movimento da Renascença Portuguesa, foi uma das mais importantes revistas do início do século XX em Portugal. No século XXI, a Nova Águia, órgão do MIL: Movimento Internacional Lusófono, tem sido cada vez mais reconhecida como "a única revista portuguesa de qualidade que, sem se envergonhar nem pedir desculpa, continua a reflectir sobre o pensamento português". 
Sede Editorial: Zéfiro - Edições e Actividades Culturais, Apartado 21 (2711-953 Sintra). 
Sede Institucional: MIL - Movimento Internacional Lusófono, Palácio da Independência, Largo de São Domingos, nº 11 (1150-320 Lisboa). 
Contactos: novaaguia@gmail.com ; 967044286. 

Donde vimos, para onde vamos...

Donde vimos, para onde vamos...
Ângelo Alves, in "A Corrente Idealistico-gnóstica do pensamento português contemporâneo".

Manuel Ferreira Patrício, in "A Vida como Projecto. Na senda de Ortega e Gasset".

Onde temos ido: Mapiáguio (locais de lançamentos da NOVA ÁGUIA)

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sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Cadernos de Agostinho da Silva (excertos)


TCHEKOV

Vinha Tchekov duma família de servos; fora o avô o primeiro homem livre porque, à custa de um trabalho sem descanso, conseguira juntar os 3.500 rublos com que comprou aos donos a sua liberdade e a dos oito filhos; o pai do escritor, depois de ter sido escriturário, montou uma mercearia em Taganrog, onde Tchekov nasceu em 1860; a loja faliu em 1876 e Tchekov, para se sustentar, teve que dar lições do pouco que sabia; três anos depois matriculou-se na Faculdade de Medicina e logo começou a escrever narra­tivas humorísticas que lhe davam algum dinheiro; feito o curso, foi nomeado médico do hospital de Voskressensk e teve, no Inverno seguinte, a primeira hemoptise; em 1890, já conhecido como escritor pelas novelas que publicara que tinham obtido grande êxito, partiu para a Sacalina, para observar de perto as condições em que viviam os presos políticos; fez depois uma viagem pela Europa e em 1892 começou para o escritor uma época de serviço social na região de Novgorod, com fundação de escolas e de serviço de assistência médica; no ano seguinte interessa-se pela questão Dreyfus, bate-se em defesa do oficial inocente e corta relações com Souvorin que o ajudara a publicar as suas primeiras novelas, mas que apoiava a atitude dos conservadores franceses; nomeado membro da Academia em 1900, resigna dois anos depois, como protesto contra a atitude das autoridades que tinham cancelado a eleição de Máximo Gorki; entretanto, a tuberculose fizera progressos e a estada na Crimeia não lhe trouxera melhoras; partiu para o estrangeiro e veio a morrer em 1904, nas termas alemãs de Badenweiler. A sua educação científica, o seu gosto de precisão, o contacto largo com o mundo, o trabalho social que teve possibilidade de realizar, tudo o leva a ter da vida uma con­cepção que esta longe de ser optimista; mas circunstâncias de temperamento, e também provavelmente a doença, não deixaram que o seu pessimismo fosse amargo e destruidor; há em todas as páginas de Tchekov uma resignação uma piedade e uma doce ironia que tornam este pessimista completa­mente alheio às durezas e às violências de, por exemplo, um Swift; ao mesmo tempo, a preocupação da objectividade não deixa que se exprima plenamente o sentimentalismo que nele adivinhamos; para o escritor a huma­nidade tem uma existência absurda, lamentável, mas quase não há que pôr as culpas em ninguém; foi um maquinismo complicado que se montou a pouco e pouco e a pouco e pouco foi esmagando a todos.
Dos nobres pouco fala: mas os que aparecem, vemo-los nós mais como actores do que como homens; andam a representar na vida, a tentar uma significação de eternidade para os cargos e títulos, para as condecorações e as fortunas que o acaso lhes trouxe e que a inferioridade dos outros lhes sustenta; o trágico, e o cómico, da sua posição reside no julgarem profunda­mente ligados às raízes da vida tudo que é apenas exterior, tudo o que sur­giu por convenção, tudo que mais parece brinquedo de crianças do que preo­cupação digna de homens que ele vê formados à imagem e semelhança do espírito de Deus. A classe média é o grande domínio da arte de Tchekov: a inteligêntzia russa, com os seus industriais, os seus militares, os seus professores, os seus médicos, os seus advogados, os seus comerciantes, os seus juízes, é retratada com um realismo, uma segurança, que nenhum outro excedeu; ou batalham pelo dinheiro, dia após dia, incansavelmente, ou se preocupam com as distinções sociais, ou esperam simplesmente que os anos passem até o momento em que a morte os abata; não há naqueles homens nenhum objectivo elevado, nenhuma defesa dum ideal, nenhum grande pen­samento, nenhuma largueza de espírito, nenhuma coragem, nenhuma força; as preocupações mesquinhas roubam-lhes todo o tempo e cada vez mais lhes vão corroendo as almas, fazendo deles os mais tristes exemplares da humani­dade que será possível encontrarem-se; não os salva a sua religião, que é toda feita de ritos exteriores e de real incredulidade, nem a sua política, que é apenas uma luta de grupos ou a manutenção do que se encontrou ao nas­cer, nem os seus interesses sociais, que consistem em contribuir, de quando em quando, para que, por meio de bodos, de subscrições, de esboços de esco­las e de esboços de assistência, se mantenha a maior parte da população na ignorância e na miséria; só acolhem da arte o que é facilmente compreen­sível ou o que o bom tom aponta como aceitável; e, no fundo, são uns des­graçados: não o confessam, alguns mesmos passam toda a vida atordoados com as festas, os bailes, o cumprimento das leis e a observação das prece­dências sociais; mas há momentos em que medem todo o vazio da sua exis­tência, em que o tédio os abate, em que se vêem como seres inúteis que nada mais fizeram do que tomar os fantasmas pela realidade e estragar por com­pleto o tempo que podia ter sido o de uma vida magnífica. Por seu turno, os camponeses não são para Tchekov os homens admiráveis que aparecem noutros escritores russos: são homens brutais, ignorantes de toda a beleza do mundo, deformados pelo trabalho, pelo medo, pelas preocupações mate­riais; são grosseiros e ávidos do dinheiro, subservientes perante os mais altos, duros para os mais humildes; no conjunto, mais animais do que homens. E, no entanto, donde a onde, que relâmpagos de verdadeira huma­nidade surgem de toda esta gente que luta por fins absurdos; como o homem podia ser grande e belo, vencer tudo o que o prende à terra, vencer a vida e a morte, tornar-se igual aos próprios deuses; as possibilidades de uma exis­tência nobre e pura palpitam em todos nós, mas a deficiente organização social tudo esmaga, tudo submete ao mesmo molde e faz dos estandartes de vitória uns farrapos imundos; e só era preciso que os homens tivessem liber­dade, liberdade económica e liberdade de espírito, para que passássemos a viver uma vida cuja beleza nem sonhamos e de todo abandonássemos a mes­quinhez e a pobreza; uma nova organização económica e o emprego da máquina acabariam com as preocupações materiais; uma forte educação moral dar-nos-ia o desprendimento das inutilidades e um verdadeiro amor pelo nosso semelhante; então toda a forte inteligência do homem se poderia dedicar ao que é tarefa verdadeiramente humana: a busca da verdade, a busca do sentido da vida. Conseguiremos alguma vez realizar este ideal? Tchekov não o crê: estamos já demasiadamente perturbados para que haja outra possibilidade senão a de degenerar; podemos talvez um dia resolver o problema económico, porque se trata em grande parte de uma exigência dos próprios progressos técnicos, mas, quanto ao espiritual, tudo ficará na mesma se não piorar; talvez, ante a nossa falência, a natureza crie outra raça que saiba chegar à meta que nós não pudemos atingir. Esta concepção pessi­mista do presente e do futuro é bem acentuada pela sobriedade, pela finura, pela sufocação de todo o ímpeto lírico que caracteriza a arte de Tchekov; a efabulação é simples e até, nos contos que são porventura os mais representativos, quase não existe: são cortes na vida, não as invenções dum escri­tor; as personagens não se constituem pela acumulação de pormenores ou pela acentuação de certos traços, mas porque Tchekov as surpreende num momento característico e num meio que é propriamente o seu; é evidente a influência de Maupassant, mas Tchekov junta-lhe uma concepção da vida que é mais profunda do que a do contista francês; nas peças há, além de todas as qualidades do artista e do homem, um poder de composição, uma harmonia de conjunto que as tornam das mais notáveis de todo o teatro russo.

1 comentário:

Jo disse...

Gostei imenso de ler o que Agostinho da Silva escreveu sobre Tchekhov. Estou a encenar uma obra dele, e encontrei-a claramente espelhada nesta análise. As personagens de Techekhov são larger than life, representam a sua época e transcendem-na, com uma actualidade surpreendente. É um dos dramaturgos que mais me impressiona. Trabalhar um texto de Tchekhov não deixa ninguém indiferente (que o digam os adolescentes que o estão a trabalhar comigo).

Não me alongo mais, agradeço ao Renato ter partilhado esta "pérola". Obrigada.

Abraço.