TCHEKOV
Vinha Tchekov duma família de servos; fora o avô o primeiro homem livre porque, à custa de um trabalho sem descanso, conseguira juntar os 3.500 rublos com que comprou aos donos a sua liberdade e a dos oito filhos; o pai do escritor, depois de ter sido escriturário, montou uma mercearia em Taganrog, onde Tchekov nasceu em 1860; a loja faliu em 1876 e Tchekov, para se sustentar, teve que dar lições do pouco que sabia; três anos depois matriculou-se na Faculdade de Medicina e logo começou a escrever narrativas humorísticas que lhe davam algum dinheiro; feito o curso, foi nomeado médico do hospital de Voskressensk e teve, no Inverno seguinte, a primeira hemoptise; em 1890, já conhecido como escritor pelas novelas que publicara que tinham obtido grande êxito, partiu para a Sacalina, para observar de perto as condições em que viviam os presos políticos; fez depois uma viagem pela Europa e em 1892 começou para o escritor uma época de serviço social na região de Novgorod, com fundação de escolas e de serviço de assistência médica; no ano seguinte interessa-se pela questão Dreyfus, bate-se em defesa do oficial inocente e corta relações com Souvorin que o ajudara a publicar as suas primeiras novelas, mas que apoiava a atitude dos conservadores franceses; nomeado membro da Academia em 1900, resigna dois anos depois, como protesto contra a atitude das autoridades que tinham cancelado a eleição de Máximo Gorki; entretanto, a tuberculose fizera progressos e a estada na Crimeia não lhe trouxera melhoras; partiu para o estrangeiro e veio a morrer em 1904, nas termas alemãs de Badenweiler. A sua educação científica, o seu gosto de precisão, o contacto largo com o mundo, o trabalho social que teve possibilidade de realizar, tudo o leva a ter da vida uma concepção que esta longe de ser optimista; mas circunstâncias de temperamento, e também provavelmente a doença, não deixaram que o seu pessimismo fosse amargo e destruidor; há em todas as páginas de Tchekov uma resignação uma piedade e uma doce ironia que tornam este pessimista completamente alheio às durezas e às violências de, por exemplo, um Swift; ao mesmo tempo, a preocupação da objectividade não deixa que se exprima plenamente o sentimentalismo que nele adivinhamos; para o escritor a humanidade tem uma existência absurda, lamentável, mas quase não há que pôr as culpas em ninguém; foi um maquinismo complicado que se montou a pouco e pouco e a pouco e pouco foi esmagando a todos.
Dos nobres pouco fala: mas os que aparecem, vemo-los nós mais como actores do que como homens; andam a representar na vida, a tentar uma significação de eternidade para os cargos e títulos, para as condecorações e as fortunas que o acaso lhes trouxe e que a inferioridade dos outros lhes sustenta; o trágico, e o cómico, da sua posição reside no julgarem profundamente ligados às raízes da vida tudo que é apenas exterior, tudo o que surgiu por convenção, tudo que mais parece brinquedo de crianças do que preocupação digna de homens que ele vê formados à imagem e semelhança do espírito de Deus. A classe média é o grande domínio da arte de Tchekov: a inteligêntzia russa, com os seus industriais, os seus militares, os seus professores, os seus médicos, os seus advogados, os seus comerciantes, os seus juízes, é retratada com um realismo, uma segurança, que nenhum outro excedeu; ou batalham pelo dinheiro, dia após dia, incansavelmente, ou se preocupam com as distinções sociais, ou esperam simplesmente que os anos passem até o momento em que a morte os abata; não há naqueles homens nenhum objectivo elevado, nenhuma defesa dum ideal, nenhum grande pensamento, nenhuma largueza de espírito, nenhuma coragem, nenhuma força; as preocupações mesquinhas roubam-lhes todo o tempo e cada vez mais lhes vão corroendo as almas, fazendo deles os mais tristes exemplares da humanidade que será possível encontrarem-se; não os salva a sua religião, que é toda feita de ritos exteriores e de real incredulidade, nem a sua política, que é apenas uma luta de grupos ou a manutenção do que se encontrou ao nascer, nem os seus interesses sociais, que consistem em contribuir, de quando em quando, para que, por meio de bodos, de subscrições, de esboços de escolas e de esboços de assistência, se mantenha a maior parte da população na ignorância e na miséria; só acolhem da arte o que é facilmente compreensível ou o que o bom tom aponta como aceitável; e, no fundo, são uns desgraçados: não o confessam, alguns mesmos passam toda a vida atordoados com as festas, os bailes, o cumprimento das leis e a observação das precedências sociais; mas há momentos em que medem todo o vazio da sua existência, em que o tédio os abate, em que se vêem como seres inúteis que nada mais fizeram do que tomar os fantasmas pela realidade e estragar por completo o tempo que podia ter sido o de uma vida magnífica. Por seu turno, os camponeses não são para Tchekov os homens admiráveis que aparecem noutros escritores russos: são homens brutais, ignorantes de toda a beleza do mundo, deformados pelo trabalho, pelo medo, pelas preocupações materiais; são grosseiros e ávidos do dinheiro, subservientes perante os mais altos, duros para os mais humildes; no conjunto, mais animais do que homens. E, no entanto, donde a onde, que relâmpagos de verdadeira humanidade surgem de toda esta gente que luta por fins absurdos; como o homem podia ser grande e belo, vencer tudo o que o prende à terra, vencer a vida e a morte, tornar-se igual aos próprios deuses; as possibilidades de uma existência nobre e pura palpitam em todos nós, mas a deficiente organização social tudo esmaga, tudo submete ao mesmo molde e faz dos estandartes de vitória uns farrapos imundos; e só era preciso que os homens tivessem liberdade, liberdade económica e liberdade de espírito, para que passássemos a viver uma vida cuja beleza nem sonhamos e de todo abandonássemos a mesquinhez e a pobreza; uma nova organização económica e o emprego da máquina acabariam com as preocupações materiais; uma forte educação moral dar-nos-ia o desprendimento das inutilidades e um verdadeiro amor pelo nosso semelhante; então toda a forte inteligência do homem se poderia dedicar ao que é tarefa verdadeiramente humana: a busca da verdade, a busca do sentido da vida. Conseguiremos alguma vez realizar este ideal? Tchekov não o crê: estamos já demasiadamente perturbados para que haja outra possibilidade senão a de degenerar; podemos talvez um dia resolver o problema económico, porque se trata em grande parte de uma exigência dos próprios progressos técnicos, mas, quanto ao espiritual, tudo ficará na mesma se não piorar; talvez, ante a nossa falência, a natureza crie outra raça que saiba chegar à meta que nós não pudemos atingir. Esta concepção pessimista do presente e do futuro é bem acentuada pela sobriedade, pela finura, pela sufocação de todo o ímpeto lírico que caracteriza a arte de Tchekov; a efabulação é simples e até, nos contos que são porventura os mais representativos, quase não existe: são cortes na vida, não as invenções dum escritor; as personagens não se constituem pela acumulação de pormenores ou pela acentuação de certos traços, mas porque Tchekov as surpreende num momento característico e num meio que é propriamente o seu; é evidente a influência de Maupassant, mas Tchekov junta-lhe uma concepção da vida que é mais profunda do que a do contista francês; nas peças há, além de todas as qualidades do artista e do homem, um poder de composição, uma harmonia de conjunto que as tornam das mais notáveis de todo o teatro russo.
1 comentário:
Gostei imenso de ler o que Agostinho da Silva escreveu sobre Tchekhov. Estou a encenar uma obra dele, e encontrei-a claramente espelhada nesta análise. As personagens de Techekhov são larger than life, representam a sua época e transcendem-na, com uma actualidade surpreendente. É um dos dramaturgos que mais me impressiona. Trabalhar um texto de Tchekhov não deixa ninguém indiferente (que o digam os adolescentes que o estão a trabalhar comigo).
Não me alongo mais, agradeço ao Renato ter partilhado esta "pérola". Obrigada.
Abraço.
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