«Uma vez, um homem traçou do bordão e partiu a correr as sete partidas do mundo; andou, andou até que foi dar a comarca cujos naturais comiam calhaus e ladravam como cães». É assim que Aquilino Ribeiro apresenta a região onde nasceu, a seu dilecto amigo Malheiro Dias, no prefácio do livro a que deu o nome de «Terras do Demo».
Aquilino Ribeiro nasceu em 1885, em Carregal da Tabosa, concelho de Sernancelhe, indo viver com seus pais, ainda menino, para Soutosa, Moimenta da Beira. Aí faz o seu exame de instrução primária, seguindo depois para Lamego e mais tarde para Viseu, de onde transita para o Seminário de Beja a frequentar o curso teológico. Mas em breve regressa a Soutosa, expulso por ter reagido mal aos critérios disciplinares vigentes nesse estabelecimento. Decide então ir para Lisboa, onde viveu uma longa fase agitada, com todo o ambiente revolucionário do estertor da Monarquia e a instabilidade que se lhe seguiu durante a I República. Foi um opositor incondicional da ditadura iniciada em 1926 e, antes e depois desta, conheceu por mais de uma vez a prisão e o exílio.
Em Paris conviveu com grandes mestres da Filosofia e Sociologia quando frequentava a Sorbonne, onde conheceu aquela que viria a ser a sua primeira mulher. Sendo esta alemã de nacionalidade, reside na Alemanha algum tempo, casa e vai morar em Paris, donde regressa a Portugal com a eclosão da primeira Grande Guerra. Trabalha como professor no Liceu Camões e mais tarde, a convite de Raul Proença, como bibliotecário na Biblioteca Municipal de Lisboa. Aqui se forma o grupo de intelectuais que está na origem da “Seara Nova”.
Da sua obra constam cerca de sessenta títulos, desde romances, novelas e contos, a numerosos volumes de crónicas, estudos, traduções e histórias para crianças que foi escrevendo ao longo dos anos, mais afincadamente nas últimas décadas da sua vida. Faleceu em 1963, cinquenta anos após a publicação do seu primeiro trabalho, o livro de contos “O Jardim das Tormentas”.
Aquilino Ribeiro foi um observador das realidades da natureza humana, dos contrastes da sociedade, o narrador irreverente do viver das gentes mais rudes com quem conviveu e de quem fez um retrato preciso, opondo a rudeza do gesto à pureza de sentimentos, aplicando imagens, comparações, provérbios, numa inexcedível riqueza de palavras que o colocaram para sempre entre os mais talentosos obreiros a nossa língua.
Revisitar páginas de Aquilino «é picar na nascente, renovar o veio da língua viciado por outras línguas, corrompido pela gíria das cidades»:
«...Escurentava agora o luar a pontos de a neve parecer ao largo cinza e mais cinza que caía. Mas, diante dos olhos, os flocos faiscavam e batiam-nos nas ventas rijos como areia.
O lobo, quando chegámos ao cabeço distante uma centena de passos do sítio em que nos aparecera, calou a serenata. E rompemos adiante, como se não déssemos conta de sentinela tão mal intencionada. Ele mudo e quedo como um penedo.
- Hum – maluquei com os meus botões – estás à espera dos colegas...
E, se bem o pensei, melhor assucedeu. Obra de cinco minutos adiante, saem-nos quatro lobos pela ilharga, mas que velhacos! Muito mansarrões, passo descosido, focinho por terra, como pessoas não-te-rales que vão ao seu destino. Quatro feras de vulto para espotejar um vitelo meio touro e ficar com fome.
(...) Quando anoiteceu de todo, os maganos, sempre leva-que-leva à nossa mão, chegaram-se mais para perto. Todo o meu zelo era não os perder de vista que já se me afigurava tolherem-se não sei por que resto de cobardia de nos saltar. O frade vinha atrás de mim a bater os queixais de medo e, acreditem Vossorias se quiserem, tão forte batiam que os engenhos que se armam nos milhos contra os gaios não fariam maior estreloiçada.
- Passe para a minha banda – disse-lhe eu, que já me parecera ver um dos moinantes, o mais alentado, esticar os jarretes, com mentes de pular à garupa do burrico.
O frade lá se ajeitou à esquerda, tão cosido contra mim que cheguei a supor que animal e frade queriam montar no machito. Ouvi-lhe gemer:
- É hoje o nosso último dia!
- Vossa Paternidade não traz nada... navalha, ferro, pau que seja?
- Nada.
- Mas que é isso que há um bocado vinha a tilintar nos alforges?
- É um turíbulo; é o turíbulo da igreja das Arnas, que trago para consertar.
- Dê-mo cá...
- Hem?
- Dê-mo cá... Depressa, homem!
O frade passou-me o turíbulo para as mãos, atravessei a faca nos dentes, e aí me pus a tocar ferrinhos, a bimbalhar, a fazer uma matinada que nem cambalheiras arrastadas por um cavalo! E, querem Vossorias saber, os lobos meteram o rabo entre as pernas e desarvoraram. Certo, assim Deus me salve!
Ouvimo-los ainda uivar para a cernelha do morro, mas não lhes tornámos a pôr a vista em cima, nem as bestas deram sinal de que nos fossem a acompanhar. O frade erguia graças a Deus e berrava:
- Milagre! Milagre!»
RIBEIRO, Aquilino. O Malhadinhas. Livraria Bertrand, 1ª edição, Lisboa, 1958, p.
2 comentários:
Muito bom. Gostei demais!
Beijos.
Um autor que importa reeditar.
Enviar um comentário