Caro Arnaldo Norton, impensada e solitariamente levantei a luva da sua importantíssima provocação, e eis-me agora com um mundo de coisas para treplicar. Tantas, na verdade, que tenho de começar por picar os pontos essenciais da pergunta (múltipla) que lançou e, descendo dos princípios para a confusa realidade quotidiana, responder hierarquizando as questões.
Partamos assim do Império, que sendo o Fim é o melhor lugar do Princípio.
Eu não disse que Pessoa não estimasse e admirasse Vieira; não acrescentei - mas digo-o agora - que duvido de que Vieira estimasse as ideias de Pessoa, se as pudesse ter conhecido (vou manter arredada por ora a Terceira Pessoa da nossa profética trindade, o Agostinho). E a razão funda desta desestima é a de que Vieira era católico, enquanto Pessoa - conforme o último livro que ia lendo - era ou fazia-se (nunca o saberemos) teosofista, neo-pagão, admirador de Crowley, pseudo-templário ou invocador de diversas serpentes; coisas perdoáveis ou estimáveis num artista (e num génio) mas tudo coisas a ver com cautela (porque há caminhos que não têm regresso) se entrarmos nas vias de conhecimento, gnose ou revelação (que não são já as da teologia e da metafísica, racionais ainda) mas as do profetismo, do esoterismo, do ocultismo ou do misticismo (deixo a cada leitor a sua escolha pessoal).
Ora para Vieira o V Império há-de ser a culminação da História na redenção da humanidade (e da Criação), e portanto há-de ser obra divina; o fim da cisão, da falha, do abismo que duram desde a fundação do mundo. É, em termos cristãos, o mistério do Oitavo Dia: coroação da tripartida Obra de Deus na Criação do Pai, na Redenção do Filho, na Consolação Nupcial e Final do Espírito Santo.
Já para Pessoa, o V Império há-de ser uma coisa inteiramente outra: não consegue ele conceber, perdido sempre nos seus "caminhos da serpente", outra coisa que não a auto-iluminação pessoal, a auto-elevação pessoal de cada homem a uma condição "angélica", uma vez que Deus não falará nunca, não mostrará nunca a Sua face (não porque o não queira, mas porque a não tem: "o Cristo não é mentira, mas (...) é da essência do Cristo não poder ser encontrado"). O Império será, naturalmente, a morada - ou a alma colectiva - dos homens tornados plenamente conscientes de que, para serem como Deus (ou para prescindirem da sua insuportável ausência) hão-de ser tão múltiplos que uma só Face também já não tenham.
Compare-se isto com a visão católica de Vieira: a desvairada multidão de Povos que Portugal ajuntou, na "globalização" das Descobertas (ante-anunciada no Índio que uma pintura manuelina apresenta como um dos Reis Magos) é, essencialmente, a re-união do Único Povo (disperso na História) sob a égide do rei do mundo, delegado terreno da Única Fonte (que é o Amor infinito, divina forma do Nada de onde brota todo o Ser).
Vale a pena, a meu ver, pensar nisto (pensar aqui, quero eu dizer) porque aquilo que seja para nós o Império condiciona aquilo que veremos como o caminho para o atingir: quer do ponto de vista do caminho pessoal para a santidade ou a iniciação (esse, não nos ocupa aqui), quer do ponto de vista do caminho colectivo: aquilo a que chamarei (para a distinguir das pequenas tácticas da guerrilha política) a Estratégia Imperial.
E a Estratégia Imperial (por ser diferente o lugar que nela a nossa alma tem) não é a mesma, diria mesmo que é a oposta, conforme entendamos que sejam caminhos do Império tudo o que contribua para a infinita difracção de cada alma no prisma infinito dos caminhos da possibilidade ("Sermos tudo", como dizia Pessoa, sermos "Como os deuses que conhecem o bem e o mal", como dizia a velhíssima Serpente bíblica...) ou que sejam esses caminhos tudo o que contribua para o combate e a contenção da parte material (terrena, se preferirmos), do Manto de Trevas que recobre o mundo em que estamos (e que, por isso mesmo, nos recobre a nós também).
Dito de outra forma: há uma determinada Estratégia Imperial quando o objectivo é o da libertação, à imagem do Nada, da infinita aparência das coisas, e há uma outra Estratégia Imperial quando o objectivo é o da libertação, à imagem da Vitória, da infinita apetência das coisas (não há nada mais ávido do que os demónios...).
No fundo, o que esta escolha pressupõe é saber se o nosso Ser é como o Oceano, informe e idêntico a si mesmo num imenso infinito sonho, ou se é como o Reino, hierárquico e polarizado num Rei e num Centro ou Eixo (simbolizado pela Cruz para um cristão e num Pólo, numa Árvore Sagrada ou numa Montanha em outras espiritualidades).
Para que não nos percamos (ainda estamos longe da CPLP mas, oh Arnaldo Norton, você é que despejou o cesto em cima da mesa...), poder-se-á começar a entender porque é que há duas leituras possíveis (mas, inconciliáveis?) do significado dos tempos de "paz e espiritualidade" antevistos pelo profeta Daniel...
Para uma ocasião seguinte, porque isto vai longuíssimo já, ficarão a globalização, o capitalismo e uma certa "moderna Europa" como os rostos visíveis do nosso actual adversário e, por isso mesmo, como as maiores armadilhas para Portugal, nesta fase histórica do seu destino...
1 comentário:
O Pessoa ligava tanto às ideias do jesuíta como a um chinelo velho... :)
Quanto ao mais, lá terá de ser.
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