– Caçador será ele... – rosnava o abade de Labrujões, fazendo sumir na enorme manápula o franzino cálice de Porto velho - Daqui até às Portelas não há perdiz que não tenha farejado! E ria pesadamente, estremecendo toda a lavrada prataria da tia Inacinha.
A boa senhora, temendo o iminente despencar da sala e das almas, relanceou os olhos à parede que ancorava os restos do sumido esplendor dos morgados de Bronhais (a salva grande, Casimirinho, brasonada com as armas do teu bisavô Afonso: Barbosas dos bons, dos do Egas Moniz!) e arregalou os olhos ao irmão, apontando-lhe a garrafa venerável e a luzida calva do abade, miudamente gotejada do hercúleo esforço da ceia; mas já o tio Júlio, que se pelava pelas picardias do padrinho, estendia o braço a servir mais os convidados, rasando de néctar o copo do bom sacerdote.
– O senhor dr. Fonseca é dos espíritos mais esclarecidos do distrito – arriscou surdamente o Juiz, cuidando aproveitar o instante em que o abade de Labrujões esgolfinhava o seu porto com inquietantes ruídos asmáticos – e para o comprovar basta o magnífico estudo que vem publicando no Sentinela do Tâmega: "Linhas fundamentais da política de fomento apícola no Entre-Douro-e-Minho, dos visigodos ao insigne Marquês de Pombal".
O Abade ganhara em Coimbra invencível asco a letrados e homens de leis, e saltou como se as abelhas visigóticas o tivessem pessoalmente arpoado.
– Esclarecido, hã? - trovejou com voz já pastosa – pois quem ia esclarecendo esse bolchevista era o varapau do José Murtosa, quando o topou a catrapiscar-lhe a irmã pelas grades do mosteiro de S. Lázaro...
– Pois a Aninhas Murtosa faz um ano na Pascoela que professou, acudiu a tia Inacinha, desejosa de desviar a conversa. E a quem irão as casas da Gandarela?
– Histórias, ó meu Padrinho - sobrepôs o tio Júlio, ansioso por bufar o lume. Então a moça... pode lá ser?
O Abade ajeitou-se no cadeirão, e compôs galhardamente a batina coçada.
– Pois o magnífico dr. Fonseca – e olhou provocatoriamente o Juiz – além do Tâmega fazia Sentinela diária pelos olhos da Aninhas Murtosa...
– Pois essas conversas não são para aqui – cortou finalmente a tia Inacinha – ora francamente, senhor Abade: diante do Casimirinho!
E suspirou interiormente pelo sobrinho do boticário, que, trinta anos antes, moço pálido e de bigodinho à francesa, lhe chegara a entregar pela Josefa modista, num bilhetinho azul perfumado a alfazema, um escrito que começava assim:
Por outro virginal ósculo de Inácia,
enfrentava o mundo todo, com audácia
Mas depois morreu-lhe o tio, e estabeleceu-se.
16 comentários:
Tu é que és um homem com perspectiva, ó Casimiro, com esse nome caminhas a passos largos para o respeito e a admiração... acho que estou pronto a mudar e a redimir-me. Estou é ainda hesitante; ajuda-me aqui, ó confrade: deverei ser um oficial do exército, um doutor de filosofia, um apóstolo do Nazareno ou um marquês antigo??
P. S. Pois, ainda assim, moços pálidos e sopeiras aparte, nem um abade escapa a render-se à argúcia em Coimbra!
P. P. S. Olha, olha, uma «Luiza» acabou de me enviar «fotos do São João»... e é «Brasileira» - tu nem imaginas este mundo, Casimiro, e como os novos analfabetos informáticos menosprezam anos de treino a que um gajo foi submetido.
Eu acho que estamos já com o Apocalipse sentado nos capachos...
Tens reparado como as noites estão desabrigadas e o céu de talha dourada?
... Aconselha-me...
Não é fácil, Klatuu. És demasiado belicoso para oficial do exército, demasiado culto para doutor em filosofia, demasiado místico para Apóstolo. E, marquês, ainda te confundem com o Voltaire.
E não duvido de que nem todas as "Brasileiras" estão no Chiado...
Essa do Apocalipse teve graça. Hèlas! Vivo numa rua estreita e só vejo uma tira de céu.
Anda tudo às tiras... pior que o Pound trancado numa jaula de gorilas ao ar livre de Pisa!
Caríssimo, foi um bom conselho: vou continuar a ser o Embuçado.
P. S. Alguma vez te disse que Portugal é um vampiro refinado? Que aprecia sangue puro? Que quer veias e artérias bem cuidadas?
Homem fantástico este Abade, penso que ainda por lá há umas velhotas que contam histórias dele. Uma lenda local, foi o que ele se tornou.
Abraço, Casimiro. Grata por estas histórias que partilhas connosco, estes homens precisam ser conhecidos.
Eu diria uma verdadeira epopeia, valquíria dos cabelos revoltos... ;)
P. S. Concordo, precisam... Alguém quer ser o Alexander Search?
Come, let us play a game, little boy;
To while the world away.
What shall be - tell me - our harmless toy?
At what shall We play?
Shall we playr - shall we? - at being greart?
No, nor at being grand.
Shall we believe that we are Fate
And make up lives out af sand?
No, little boy, we will play that we are
Happy, and that we are gay
Let us pretend we are dreams, very far
From the world in which we play.
Klatuu, não penso que seja Portugal. O vampiro vive no mar atlante. Tu que sabes dessas coisas, como chamam os ocultistas aos restos vagabundos dos vivos? "écorces mortes" em francês, não me lembro do nome que lhe damos.
Somos a nau; mas - qual o nome secreto dos Sargaços?
O tio Casimiro guardou-o como um homem bom. Houve aquela história da enxurrada e da bruxa de Gouviães, a Maria Lagarta...
Anabeeellaaaaa !!!!
A Maria Lagarta... bom Deus, o que essa mulher deu que falar... dizem que era bruxa entendida.Logo à noite falo-vos dela. Corriam serranias para a consultar.
Casimiro doidão:
Tive que pegar um dicionário pra te ler, mas valeu a pena.
Quando eu comer plantações inteiras de espinafre e crescer um pouquito mais em tamanho e mente, quem sabe eu escreva como tu.
beijinhos.
Biazinha, preocupa-te em escrever como TU, com a fórmula do "poema porreta"... E mantém os olhos abertos (esta parte é, para quase todos, a mais difícil...)
Não é preciso mais nada.
Beijo :)
Ó homem, isto é uma delícia!:)
Pois...a audácia foi-se...nem por Inácia...
Homens:))))
Um beijinho
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