Respira fundo. Lentamente, começa a vestir-se como quem se traja para o campo de batalha. Sente no sangue a herança dos antepassados e, quando, de lá de fora, lhe chegam aos ouvidos os sons dos bombos e das caixas, a serem afinados, e os gemidos das gaitas de foles que se preparam, a pele eriça-se-lhe num arrepio de antecipação. Cuidadosamente, desdobra e veste a imaculada camisa de linho. Enfia os três alvos saiotes com rendas, um de cada vez, cumprindo o ritual que viu desde criança aos homens que mais respeitava na aldeia. Com todo o cuidado, prende à cintura os coloridos lenços de seda, autênticas preciosidades seculares que lhe deixou o Avô, de quem herdou também a alcunha e a paixão. Calça as meias tricotadas pela Avó, sente como a lã lhe pica a pele, mantendo-o alerta. Gosta disso. Seguem-se as grossas botas de bezerro, que aperta com mão firme. É com cerimónia que enverga o colete enfeitado e coloca ao pescoço o lenço colorido. Por fim, o chapéu, decorado com flores e fitas de cor, cada uma com o seu simbolismo. Hoje sorri ao ver reflectida no espelho a cor amarela das fitas, a mais importante, a que representa o Rei, segundo a tradição da aldeia. Usar o amarelo é honraria que se reserva apenas aos que merecem, e ele, pela dedicação que sempre mostrou e pela bravura e intensidade com que se entrega, irá usá-lo e comandar os outros até um dia passar o testemunho. Pega nos bastões de rijo carvalho e nas castanholas negras, que ajusta e aperta entre os dedos. O guerreiro está pronto. Junta-se aos restantes. Com a cabeça, dá o sinal. Avançam.
[as danças de pauliteiros são dançadas] "atirando-se incessantemente pancadas rítmicas à cabeça, ao peito, às pernas, pela frente, pela rectaguarda, à direita, à esquerda, pancadas que o adversário desvia ou apara nos seus paus com perícia suma, saltando, para ferir o adversário, por cima da cabeça dos que o cercam, parando repentinamente em fila para dançar ao som das castanholas, que tocam, e recomeçando com a mesma brevidade o ataque, saltando ao ar ou em avanço, como para transpor obstáculo."
Abade de Baçal*
Fotos retiradas daqui e daqui.
* Chaves, L. (1942). “Danças, bailados e mímicas guerreiras”, in Ethnos, Vol II, Lisboa, Instituto Português de Arqueologia, História e Etnografia, p.21
17 comentários:
Para acompanhar:
Galandum Galundaina - '25' e 'Assalto ao Castelo'
Belo! Nem tenho palavras... sempre desejei escrever um poema sobre isto - mas ainda não me saiu como quero. Posso esperar.
Obrigado, Mariazinha! O que estamos a fazer é muito importante - será lembrado, outros virão, muitos, melhores que nós, isto será repetido, continuado, é apenas um início, mas tem o valor alto de todos os princípios!
Muito obrigado, um homem só não é sem valor, mas sem outras vozes a sua não passa de um rumor - sem vós eu não conseguiria.
Beijinho.
P. S. Estou a ouvir Phantom Vision, «Change The Past»... ;)
No século III, Estrabão descrevia que os Celtas da zona do Douro se preparavam para a batalha com danças guerreiras, em que trocavam as espadas por paus, para não correrem o risco de se matar no frenesim da dança.
Viva Portugal!
Posta mas é o video!!
klatuu:
Sobre as suas origens, as opiniões variam: há quem pense serem originárias das Danças Pyrrichas, que eram consideradas pelos Gregos como sendo de proveniência divina; há quem as descreva como Danças de Fertilidade; há quem ache serem originárias da dança dos Curetes e Curibantes da Tartésia, dançada por homens em traje militar, em honra de deuses. Há ainda quem compare os trajes usados com o traje do soldado greco-romano.
Mas as opiniões convergem num sentido: são danças muito antigas, com raízes profundas no povo ibérico (antes mesmo da formação de Portugal), e são danças guerreiras.
Uma preciosidade, portanto. Que urge preservar, a todo o custo.
:)
beijo*
Lord:
agradeço muito as tuas palavras. Escrever a cultura Portuguesa é uma honra e um privilégio.
:)
beijo*
Posta o video, miúda - isto quer é acção!
(O palavreado só atrai moscas! «Small Talk Stinks» LOL!!! ainda lhes hei-de dar com Bauhaus! O gajo que me quer matar e enterrar numa praia, deve ser gótico! JAJAJAJAJA!!!)
Espero que não seja um culto de fertilidade... só vejo gajos! JAJAJAJA!!!
Nã... cheira-me a celtas, melhor, a Calaicos, os rapazes célticos dessas paragens.
P. S. Os Calaicos eram uma civilização muito menos desenvolvida que os Lusitanos, mas rijos, leais e combativos como um lince - bem o sentiram os Romanos, quando, após o assassinato vil de Viriato, foram explorar o Norte...
Aguarda pelo continuar da saga; a seguir em prosa.
Calaicos, Lusitanos e outros Povos de nobreza alta que a morte não cala!!
NOTA: Estes rapazes da ACEL-Trebopala nem são má gente, mas deliram em excesso com a mitosofia.
Os Lusitanos estão longe de ser indígenas, terão vindo da Suíça (nada de especial, antes de tudo, nenhum Europeu é da Europa, todos migraram), numa migração pré-céltica, quiçá já acoçados pelos Celtas. Serão o Povo mais antigo do Centro para Norte de Portugal - a civilização castrense será anterior, mas viviam acoutados nas serranias e ainda mais atrasados que os Calaicos e pouco impacto tiveram na história do extremo peninsular. Os Lusitanos são um Povo das planícies; ao contrário do que afirma a História salazarenta, nunca estiveram na Serra da Estrela. O seu território que se entendia por onde hoje é o Reino de Espanha, descia também para além do Tejo, incluindo Évora e uma estreita e longa faixa litoral, onde garantiam portos, Lisboa incluída. É cada vez mais credível a hipótese de Viriato ter nascido na Região de Setúbal ou até no Baixo Alentejo Litoral.
As batalhas travadas com os Romanos - combates de exércitos em que Legiões foram dizimadas e não guerrilhas - deram-se nas planícies andaluzas e alentejanas. Viriato é um homem da planície, inteligente, conhecedor dessas terras e dos costumes e técnicas de guerra romanos. Os historiadores romanos dizem dos Lusitanos ser «célticos» e não «celtas»; chamam Celtas aos habitantes do Alentejo, onde existiria uma poderosa praça forte céltica de nome Arcóbriga.
Estes Celtas do Alentejo terão entrado no nosso território numa segunda vaga, muito posterior à dos Calaicos - que terão chegado não muito depois dos Lusitanos - e, tal como aqueles, não conseguindo derrotar os Lusitanos, procuraram refúgio no Alentejo e, com os Calaicos, deles eram vassalos, embora tanto uns como outros fizessem correrias e saques por terras lusitanas; mais até os Celtas do Alentejo, que atacavam também os Cónios a Sul.
Os Lusitanos são um povo singular, nem celtas nem germanos na sua origem, embora com algumas características de ambos. Quando enfrentam os Romanos são já uma civilização em declínio, cujo aparente atraso é um crepúsculo de uma civilização importante e refugiada, impossível de mensurar com exactidão.
Os homens vestiam de negro, usavam os cabelos compridos, não os apanhavam tanto como outros povos do género; junto a sepulcros de guerreiros Lusitanos podem não se encontrar armas sempre, mas nunca faltam os pentes de metal.
As mulheres vestiam vestes coloridas; dizem que eram muito belas, leais e sóbrias.
Decerto amaram com sentimento fundo esta terra a que chamamos nossa, porque poucos povos lutaram tanto pela sua liberdade: os Vetões, os Escoceses e os Germanos acima do Reno.
Viva a Lusitânia!
Vivam todos os que com valor usaram as vírias e ergueram os braços na batalha e gritaram o grito de guerra dos Lusitanos!
Lindimais!
Beijos, minha bruxinha!
Excelente, Mariazinha!
Beijos.
bia monte & bia:
muito obrigada!
beijos para as duas**
Boa! Muito bom :)
Que bem me soube ler-te assim!
Gosto particularmente de danças, gosto de saber as origens, o carácter, se possível até mesmo os passos.
Um beijo*
A menina é um pocinho de -boas- surpresas!
Gostei. Muito.
Um beijo*
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