Ao Klatuu Niktos
Jan Saudek, The River, 1962
Porque ainda há beleza e pureza na alma lusitana...
Tinha ido ao Bairro. (Por “Bairro” entendo eu, desde miúda, a “Casa do Bairro”, propriedade de uma minha tia avó muito querida).
Tinha ido ao Bairro. (Por “Bairro” entendo eu, desde miúda, a “Casa do Bairro”, propriedade de uma minha tia avó muito querida).
Como tantas outras vezes, após alguns minutos de conversa, pedi licença, levantei-me e disse que ia “dar uma voltinha”.
A minha tia sorriu-me e respondeu:
– Quando eras pequena dizias sempre isso.
Sorri-lhe de volta:
– Eu sei.
De facto, até sabia mais. Sabia que voltava sempre dessas andanças cheia de excitantes novidades sobre a bicharada lá da zona – desde o galo aos cães, passando pelo peru e pelos inúmeros gatos vadios que por lá circulavam, nenhum escapava à minha visita. Do mesmo modo que sabia que aparecia sempre com os sapatinhos que a minha avó tão bem cuidava, cheios de poeira e as mãozitas sujas de terra, exibindo triunfante um qualquer novo tesouro – fosse uma folha seca, uma pedra mais bonita ou mais brilhante que as demais, um fruto maduro (ou verde, confesso), uma minúscula flor, um bugalho ou mesmo um cogumelo.
Desta vez, no entanto, já não seria assim, pensei.
(Afinal, já não sou mais essa criancinha que recordo…)
Iria apenas, matar saudades.
Caminhei por entre cada uma daquelas árvores que conheço desde sempre; parei em cada recanto, deixando os meus olhos pousarem-se demoradamente em tudo. Sentia-me bem e, por isso, não queria que o passeio acabasse tão cedo.
Eventualmente, acabei por sair das fronteiras da Casa do Bairro sem que, no entanto, me tivesse apercebido disso.
Ao passar um caminho de pedra, vi um menino aninhado, quase encostado a um muro, soltando gargalhadas de prazer.
A princípio não percebi o porquê de tanta alegria mas, ao aproximar-se, tornou-se muito claro: na berma do caminho, resguardado pelo muro de pedra escura, corria um pequeno regato de água e o rapazito tinha acabado de pôr um barquito de papel a flutuar naquele reguinho.
(“Meu Deus, pensava que os miúdos do século XXI já não brincavam com barquinhos de papel!”)
O quadro era tão estranhamente familiar que chegava a ser comovente.
Aproximei-me e aninhei-me ao lado do menino que, de cócoras, acompanhava o lento balançar do barquito:
– Então, para onde vai o teu barco? – perguntei.
Ele endireitou-se todo; pôs-se de pé, ficando mais alto que eu, ali aninhada e disse com uma voz muito segura:
– Não é um barco. É uma nau.
Eu gracejei:
– “Lá vem a Nau Catrineta
Que tem muito que contar…”
Que tem muito que contar…”
– O quê?!
– Nada, nada… – respondi eu. E, vendo o olhar interrogativo da criança, resolvi continuar. – E então?! Para onde vai a tua nau?
Os olhitos dele brilharam ao responder:
– Vai descobrir Novos Mundos.
Sorri-lhe.
Não queria sair dali e, por isso, resolvi continuar a conversa.
Compus o meu ar mais sério e convincente antes de começar a falar e disse-lhe:
– Mas, sabes, se queres descobrir Novos Mundos, não devias ir só com uma nau. Devias levar várias. Assim… como uma armada, sabes o que é?
– Mas, sabes, se queres descobrir Novos Mundos, não devias ir só com uma nau. Devias levar várias. Assim… como uma armada, sabes o que é?
Ele acenou afirmativamente e eu continuei:
– … porque assim elas podem apoiar-se umas às outras. E olha que nunca se sabe os perigos que podem ter de enfrentar! As tempestades…
– … os piratas! – acrescentou ele muito depressa.
– Pois claro: não podemos esquecer os piratas!
Ele riu-se e depois ficou pensativo, brincando com a pontinha do dedo no lábio inferior. Sorriu, finalmente, com um sorriso sincero e rasgado e desatou a correr.
Quando já se tinha afastado bastante, olhou para trás e gritou-me:
– Tens razão!
E ali fiquei aninhada à beira do regato, sem saber bem se devia levantar-me e seguir caminho ou esperar que o menino voltasse.Resolvi esperar e ainda bem que o fiz porque, pouco tempo depois, já ouvia o riso dele, enquanto descia o caminho numa corrida imensa.
No braço trazia uma série de folhas de papel e, quando chegou à minha beira, sentou-se e disse-me:
– Pronto. Assim já podemos fazer a nossa armada!
Sorri-lhe novamente.
(“Devia ter adivinhado.”)
Sentei-me e peguei numa folha. Nunca soube fazer barcos de papel mas, seguindo os passos dele foi fácil.
Em pouco tempo a “armada” estava pronta.
– Então e agora? – perguntou ele.
– Agora devias dar-hes nomes. Para toda a gente as conhecer. Afinal, não são uns barcos quaisquer! Vão fazer novas descobertas… Vão ficar na História!... Têm de ter nome!!!
Ele olhou-me e vi que tinha entendido muito bem.
Apontou a primeira: – Esta é a Coragem!
Quando lhe deu o nome, o meu coração apertou-se. Tinha entendido até melhor do que eu esperava.E assim se foram alinhando todos os barcos, prontos para partir à aventura: Coragem, Força, Fé, Audácia (“au… quê?!”), Destreza, Luz, Conhecimento, Sabedoria…
Ficamos a vê-las partir lentamente, sorrindo como quem delas esperava grandes feitos…
Olhei para o menino e pensei que gostaria de lhe dar alguma coisa mas, dentro da minha saca, nada tinha que pudesse interessar a uma criança, para além do bloco de desenho.
Lembro-me de ter pensado que devia ter aprendido a fazer origamis; assim já teria o que lhe oferecer.
Mas, depois, tive uma ideia melhor.
Peguei no bloco e numa caneta e comecei a desenhar, com traços largos e seguros. O menino espreitava sobre o meu ombro. Ainda consigo ouvir o gritinho de felicidade que soltou ao perceber o que estava a nascer naquela folha de papel: uma nau, majestosa e imponente, com as suas velas ao vento.
Quando acabei, escrevi o nome na proa, junto da figura de sereia que nela se erguia e dei-lha:
– Esta é a “Sonho”. Nunca a percas.
Nunca esquecerei o ar solene com que ele me respondeu:
– Não. Nunca.
20 comentários:
Um poeminha para ti:
Quando a chuva cessava e um vento fino
Franzia a tarde tímida e lavada,
Eu saía a brincar, pela calçada,
Nos meus tempos felizes de menino
Fazia, de papel, toda uma armada;
E, estendendo o meu braço pequenino,
Eu soltava os barquinhos, sem destino,
Ao longo das sarjetas, na enxurrada...
Fiquei moço. E hoje sei, pensando neles,
Que não são barcos de ouro os meus ideais:
São feitos de papel, são como aqueles,
Perfeitamente, exatamente iguais...
- Que os meus barquinhos, lá se foram eles!
Foram-se embora e não voltaram mais!
Guilherme de Almeida
Ps: Sempre me senti comovida ao ler este poema.
Minha cuti cuti!
Mais beijos.
Que lindo!
Com certeza a Nau sonho é bem real dentro do coração do menino. Atos singelos como esses jamais são retirados de nossa memória.
Eu sou louca por origami, barquinhos de papel e bonecas de pano, e cada pessoa que alegrou meus desejos de menina estão lacradas para todo e sempre em minha caixinha de lembranças.
Esse teu relato comovou-me pois ainda há dentro de mim a menina que se alegra com barquinhos de papel.
Nhó, meu brigadeirinho!
Eu é que dolo tu, cara de Tatu!
Ouviu cara de pavio?
Se não me viu, eu te vejo, carinha de pecevejo. Não ouviste ainda? A Frankie é LINDA!
Beijos aos quilos, aos litros e "xerinhos" do tamanho do universo.
Confesso: no inicio não dava muito pelo texto, mas, ainda assim, fui lendo e sendo agarrado pela simplicidade com que sabes contar e pelo envolvimento que inevitavelmente e a partir de certo momento nos obriga a continuar.
Chegou a emocionar esta alma de velho Lusitano
Clap, clap, clap!…
Agradecido fico por ter o privilégio de te ler.
Bem-hajas!
Parabéns! Essa é a alma lusitana do futuro. ;)
Significativa corda de emoções e pensamentos.
Vou buscar uma outra criança, do Almada, para viajarem no mesmo barquinho de papel.
Pede-se a uma criança. Desenhe uma flor! Dá-se-lhe papel e lápis. A criança vai sentar-se no outro canto da sala onde não há mais ninguém.
Passado algum tempo o papel está cheio de linhas, umas numa direcção, outras noutra; umas mais carregadas, outras mais leves; umas mais fáceis, outras mais custosas. A criança quis tanta força em certas linhas que o papel quase não resistiu.
Outras eram tão delicadas que apenas o peso do lápis já era demais.
Depois a criança vem mostrar essa linhas às pessoas: uma flor! As pessoas não acham parecidas estas linhas com as de uma flor! Contudo, a palavra flor andou por dentro da criança, da cabeça para o coração e do coração para a cabeça, à procura das linhas com que se faz uma flor, e a criança pôs no papel algumas dessas linhas, ou todas. Talvez as tivesse posto fora dos seus lugares, mas, são aquelas as linhas com que Deus faz uma flor!
José de Almada Negreiros
Piquinita, aqui para nós que ninguém nos ouve:)
Já tinha pensado que esse texto podia perfeitamente ser publicado aqui.
E não é que o vejo cá?
Enterneceu-me mais uma vez.
E sim, ainda há beleza e pureza na alma lusitana.
Dolu tu:)
Bia,
Obrigada por teres trazido esse poeminha. É lindo!
Beijinhos, minha mafarrica.
Z,
Gostei da história da criança e da flor.
Podes contar mais:)
Muito obrigado, Frankie. Como já te disse... tu sabes.
Beijinho.
Lindo, Frankie.
:)
beijos**
Frankie, que texto mais lindo, mocinha! Você escreve a cada dia mais lindamente!
Beijos.
ha kuanto tempo, ja num lia este texto. Volto a dizer o k te disse nakela altura ;). BJINHO GANDE
Que coisa mais linda, Biazinha! Não conhecia; me deu até um nó na garganta.
Muito obrigada por ter partilhado esse poema comigo.
Quanto ao resto menininha, aposot que você vai ser daqueles seres raros que conseguem manter a criança que um dia foram viva dentro do peito.
Tu brilha, guria!
Dolu tu, meu doce de caju*
PS: Eu, apesar de quase 10 anos mais velha, também ainda sou louca por tudo isso: desde origami e bonequinha de trapo (e ursinho de pelúcia!)
Meu caro Pires:
Em primeiro lugar agradeço a sinceridade.
Compreendo que, num blog como este, seria de esperar um texto de maior riqueza linguística e estilo mais cuidado. Por isso a sua reacção ao começar a ler estas linhas tão banais e prosaicas, não desse muito por elas.
E fico feliz porque, mesmo assim, gostou dele.
É simples. Muito simples. Talvez até demasiado simples.
Mas, num mundo tão complexo, tão complicado, por vezes vale a pena recordar as cenas mais banais e as verdades mais simples pois, para mim, acabam sendo elas as mais belas.
Muito obrigada.
Um beijinho (posso?).
PS: Fiquei contente de ver um comentário seu: tem e apreço de dois seres por quem tenho um carinho imenso e, talvez por isso, tenho-o na minha lista de "boas pessoas" :)
Obrigada, Anita.
A alma lusitana é intemporal; pena que tantos a deixem esquecida -tanto tempo...
Mummy, ainda bem que gostaste de o ver por cá.
Não resisti a colocá-lo pelo simbolismo que tem e, confesso, principalmente por ter sido escrito para aquele que me trouxe até aqui "pela mão"...
Não podia faltar a minha homenagem ao menino e à sua imensa alma lusa.
Beijinho grande para ti*
Sim, Klatuu. Eu sei.
Beijinho, menino da estrada :)
Tu é que és linda, Mariazinha :)
Beijinho*
Obrigada, Bia/Lúcia (o nome não interessa; o que importa mesmo é que gosto muito de você!)
Não dá nem para agradecer seu apoio e suas palavras.
(Acabei de ler sua msg no orkut e fiquei meia boba, sem saber o que dizer).
Beijinho grande*
PS: Não tem como não adorar sua menina! ;)
Outro, Night Angel*
Frankie:
A mãe é Lúcia Beatriz, também conhecida como Bê, Bêzinha, Biazona, Lu, Lulinha, Lulinda,eu sou apenas Biazinha!
Há que me chame de Juninha. JAJAJAJAJAJAJAJAJAJAJAJAJAJAJAJA!
Beijos, beijinhos e beijões aos borbotões.
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