ACERCA DA
RELAÇÃO TEÓTICA DA SAUDADE: INTERROGAÇÃO A PINHARANDA GOMES
Manuel Cândido Pimentel
Tendo a coincidir com Pinharanda Gomes ao afirmar
«quanto a saudade é problemática, enigmática, senão misteriosa»[1].
Situado numa cronologia de autores que desde D. Duarte têm vindo a refletir
sobre este sentimento ímpar, também ele o tomou na problemática, interrogou na
enigmática e veio a quedar-se na mais alta visão do mistério sem idade e sem
tempo que é o próprio Deus.
O problema substancial que o ocupou diz respeito à questão de saber se a saudade é apenas privilégio do homem; propôs para o enigma uma resposta de tipo antropológico, gnosiológico e cosmológico; e deteve-se no grau superior, já ontológico, já teológico, interrogando-se se a saudade poderá lobrigar-se em Deus. À cifra deste mistério ultimante respondeu negativamente, por reconhecer que a saudade é sentimento humano, coerente com a incompletude do ser criado.
A análise metacognitiva[2] a que submete a saudade a partir do arcaísmo filológico da suidade leva-o a entender que o sui reenvia para a solitate, no sentido radical da solidão do eu, um fenomenológico solus ipse que propõe a natural posição do ser suidoso enquanto singularidade que está aí no isolamento de um cosmo que, no entanto, tem de característico tocar, por paredes meias, o infinito de uma transcendência amante e amável.
[1] Pinharanda Gomes, «Saudade e Ser», in Pensamento e Movimento, Porto, Lello
& Irmão – Editores, 1974, p. 17. O adjetivo «teótico», do antigo grego théosis,
que significa divinização ou deificação, subsiste, por exemplo, em
apoteose (apothéōsis), o ato de deificar, de elevar ao nível dos deuses.
Por teótico se deve entender o que tem relação com o divino e que diz respeito
ao divino, adjetivando-se teótica a relação dos saudosos com Deus e da
saudade em Deus, sendo esta a relação dita por excelência, última e primeira na
ordem das essências às existências.
[2] Ela é antropológica em primeira instância, mas com
consequências a um nível gnosiológico, o que permite dizer que da reflexão
filosófica de Pinharanda é suscetível desentranhar-se uma fenomenologia da
saudade, num certo sentido complementar à de Joaquim de Carvalho, mas que, no
autor de «Saudade ou do mesmo e do outro», remete para uma antropologia, que
lhe serve de antecâmara. Ela transita do radical sui para um eu que
promove e quer a companhia de outros eus ou mónadas solidárias. A saudade seria
assim o vínculo de um à alteridade de outros.