O texto de Raul Leal (1886-1964) aqui em jogo foi o
primeiro de três textos – os restantes são de Natália Correia e de Lima de
Freitas – que serviram de introdução ao livro Mário Cesariny (Secretaria de Estado da Cultura, Lisboa, 1977, pp.
7-11). É porém possível – o livro não o esclarece – que o texto, escrito a
propósito da primeira exposição pictórica de Mário Cesariny, que teve lugar em
1958, na Galeria do Diário de Notícias em Lisboa, tenha tido anterior
publicação, porventura no ano da mostra e no jornal que a tutelou, mas que
desconhecemos.
Trata-se de peça pouco conhecida – Pedro Vistas, por
exemplo, não a acolhe no recentíssimo “Raul Leal ou da Inclassificável
Vertigem: a propósito da tentadora atribuição do título de “surrealista” à obra
lealina” (in NOVA ÁGUIA, n.º 17,
2016, pp. 126-136) – mas de valia maior para se sopesar o binómio Raul Leal/
Mário Cesariny. Apreciada até hoje apenas a partir dos escritos de Cesariny
consagrados a Leal, a relação dos dois, e até a de Leal com o surrealismo,
ganha novo espaço e nova luz com este texto. Não é meu propósito classificar à
força Raul Leal de “surrealista” mas apenas, recuperando um texto semi-inédito
do autor de Sodoma Divinizada, dar a
conhecer o invulgar apreço que Leal teve por Cesariny e pela sua aventura –
surrealista esta sem qualquer dúvida. É mais um passo, pequeno mas seguro, para
se avançar no estudo das relações de Raul Leal com o surrealismo.
Neste domínio, vasto e complexo, tirar conclusões
precipitadas é prejudicial. Pior do que isso, só mesmo abordá-lo com falta de
simpatia e com redutoras ideias feitas. Não poderá haver estudo compreensivo
sobre as relações de Leal com Cesariny e com o surrealismo sem espírito aberto
de simpatia, o único que se pode mostrar profícuo em empresa desta natureza.
Sem abertura, sem cautela na emissão dos juízos e sobretudo sem a empatia que
nos leva a compreender, o resultado neste terreno volve-se frouxo e caricatural,
tornando-se uma ocasião perdida de fazer avançar a luz.
Sobre o texto em causa seja-me permitido só constatar
que a experiência de criação surrealista de Cesariny, poético-pictórica,
encontra tradução plena no glossário de Raul Leal. Estado de sublimação abstraccionante, diz o autor a propósito do
impulso criativo de Cesariny. Nenhum fosso, nenhum desajustamento, nenhum
desacordo, pois, entre o vocabulário mais significativo do pensamento de Leal e
a criação surrealista.
António
Cândido Franco