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15.Terá sido, segundo F. Cunha Leão, a sua marcada individualidade que levou Portugal a separar-se ou autonomizar-se do Reino de Leão, logo que teve condições político-sociais para tal, tendo a afirmação da sua independência sido consolidada pelo crescente caminhar do Reino leonês no sentido continental e castelhanizante, levando a que a oposição psicológica entre portugueses e castelhanos, que em nada contribuíra para a independência portuguesa, começasse a mostrar-se decisiva na salvaguarda dessa mesma independência.
A pequena base territorial, os minguados recursos de riqueza e população, a ameaça de um vizinho muito mais poderoso, conduziram o jovem reino a optar pelo Sul, escolhendo o difícil e o desconhecido e definindo o rumo do seu devir histórico, iluminado, desde a raiz, pelo “milagre de Ourique”, que marcou o carácter sobrenatural e providencial da sua missão, tendo a imaginação criado, ao lado deste sinal divino, um “facto obscuro, mas fecundo, de ordem terrena, as Cortes de Lamego, em relação às quais tudo se passou como se tivessem existido”.
Factores fundamentais na criação das condições para o seu futuro cumprimento teriam sido, segundo o ensaísta, a paz de Tui, o abandono do senhorio de Astorga, a vassalagem directa à Santa Sé, o desastre de Badajoz (que teria conduzido ao abandono da pretensão continentalizante de integração da parte Leste da Lusitânia), a criação da Ordem de Cristo, nela integrando os bens dos Templários ou a vitória em Aljubarrota, que, directa ou indirectamente, possibilitaram a precedência portuguesa no domínio dos mares e a expansão ultramarina.
A este propósito, recordava o atento e sério ensaísta que, para além das possíveis e controvertidas causas ideais e utilitárias dos Descobrimentos e da expansão, não se pode deixar de considerar também uma outra, de natureza antropológica, “a cobiça do longe, o gosto do exótico, a sedução do mar, o heroísmo por ideais”, a que se deveria a perfeita conjugação de teoria e prática, de pensamento e acção, de dirigentes e povo, durante um século, revelando tópicos essenciais: “aventura de acordo com a nossa natureza: reflexão e ciência na aventura; chefes por selecção dos factos; supremacia do ideal colectivo coincidindo com o dos naturais dirigentes”.
Ao crescer no tempo e no espaço, Portugal terá acentuado os traços fundamentais da sua fisionomia psicológica, enquadrando espontaneamente a sua ruralidade estrutural, na qual os homens da terra, atraídos ou seduzidos pelo mar, em poucas gerações, se tornaram marinheiros, mas, apegados à terra, “que vão, vêm e constroem por saudade, nunca deixando o lugar de onde nem o lugar para onde”, criando, assim, fortes laços afectivos entre a terra pátria e a colónia longínqua, uma singular coesão afectiva entre ambas. Esta tendência natural foi reforçada pela política oficial, que incentivava a integração das populações nativas, as uniões dos soldados e colonos com jovens locais, a protecção dos mestiços, a não-discriminação social, o ingresso dos nativos e mestiços no clero e nas dignidades eclesiásticas, o acesso dos naturais da terra aos quadros administrativos e, por influência do cristianismo e do franciscanismo, a adopção de formas sociais de marcada fraternidade humana, de que a difusão das Misericórdias por todos os territórios ultramarinos é eloquente exemplo.
Perante a perda da independência, em 1580, a crença sebastianista, recusando-
-se a aceitar a realidade da morte do Rei nos areais marroquinos, alimentou, surdamente, a resistência ao domínio espanhol, vindo a triunfar 60 anos depois e aflorando, de forma mais ou menos difusa, nos momentos de maior abatimento nacional, ainda bem perto de nós, e alimentando, criadoramente, alguns dos maiores escritores portugueses, de Camões a Vieira e Pessoa.
Transcorrido quase meio século sobre a publicação de O Enigma Português e quando se cumprem cem anos sobre o nascimento do seu autor, afigurou-se-me oportuno recordar a sua lição generosa, séria e muito informada, como convite a uma renovada e serena reflexão sobre o carácter português, que não deixe de considerar em que medida a história portuguesa das últimas três décadas, em que Portugal refluiu à sua inicial dimensão europeia e ibérica, alterou o perfil psicológico das suas gentes e se o retrato que delas traçou Francisco da Cunha Leão, nas suas duas obras, conserva a actualidade que apresentava na data da sua publicação, a ponto de nele nos reconhecermos ainda.
António Braz Teixeira, excerto de "PORTUGAL COMO ENIGMA", in A EXPERIÊNCIA REFLEXIVA: ESTUDOS SOBRE O PENSAMENTO LUSO-BRASILEIRO (Colecção NOVA ÁGUIA; Zéfiro, 2009)
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