"(...) a associação do nome latino da cidade de Lisboa com o do herói grego Ulisses tem uma longa tradição: erudita em André de Resende, literária em Luís de Camões, criativa em Fernando Pessoa. (...) André de Resende tenta evitar recriminações formuladas um século antes por Lorenzo Valla; simultaneamente, assenta argumentos de glória para a cidade do Tejo que, ao tempo, se agiganta perante a Europa com o comércio desencadeado pelos feitos marítimos dos homens que dela partiam para o mundo inteiro (...). Não bastava que os novos feitos superassem os dos antigos (...) tornava-se necessário que a glória dos antigos se prolongasse nos novos heróis e assim se garantisse glória definitiva – que o seria tanto mais quanto se pudesse provar que nada era fruto do acaso, mas tudo se integrava em projecto de uma divindade que zela pelo Mundo com sabedoria harmoniosa. Tal factor de engrandecimento sobreleva em Camões, com a particularidade de avinculação com a antiguidade permitir integração que assegura facúndia épica por parte de uma divindade tutelar, Palas Atena, cuja protecção foi decisiva para o herói primitivo sair vencedor de todos os perigos; o testemunho dessa protecção, aliás, estaria concretizado pelo altar votivo que o herói ao chegar a Olisipo não teria deixado de aí erguer. Em F. Pessoa, o nome do fundador alarga-se, só por si, em mito – um «nada que é tudo», porque, mesmo que lhe falte fundamentação histórica, fornece o impulso necessário para o projecto (...) de uma nação inteira em tempo de plenitude que cumpre a utopia e «conquista a Distância / Do mar ou outra». (...) A forma envolve complexidade poética, pois o processo contempla projecção especular de modo a transferir para a cidade do extremo ocidente a glória que a preservação da cidade do oriente, onde o herói lutara, teria mantido pelos tempos fora. Olisipo é a nova Tróia; o mito recupera, em projecção especular, e amplia para o futuro o que fora negado no ponto de partida à infaustosa cidade que não foi poupada ao incêndio e à destruição. Efectivamente, Lisboa contrapõe-se a Tróia na figuração de Camões e de Pessoa; não é apenas o legado de um herói de passagem que lhe confere atributos, mas sim a imagem recuperada que a relança no futuro. (...) Por seu lado, o herói não se define pelo que destrói, mas pelo que resgata e repõe na harmonia do universo, alguma vez violada. Lugar antigo tinha de ser Lisboa; os títulos de glória que os tempos recentes, no séc. XVI, lhe traziam, tinham de advir de um fundador, mais que de um conquistador, por muito insigne que ele fosse, pois a sua acção buscara legitimidade na reintegração do lugar naquilo de que andara afastado; se há transposição, ela é obra de um fundador: como tal, cabem ao novo local as prerrogativas do antigo. Lugar extremo é também Lisboa: local longínquo (no fim do mundo – ponta da Europa), serve para erguer ao máximo o esforço do herói; local dos confins ocidentais é lugar propício para contraponto com cidade de partida (Tróia); é, por isso mesmo a Nova Roma e o seu herói não será o de um vencido, mas o de um triunfador da História (ardiloso para encontrar os estratagemas da vitória) e de um vencedor da Natureza (superando as adversidades da viagem pelo mar). Lugar distante, Lisboa é mais que lugar de passagem Lisboa (ainda que também o seja), porque é lugar de radicação – traço significativo são as relações familiares que tornam o local propício para transmissão hereditária. É por isso lugar de retorno: como regresso e como recuperação; lugar de regresso, porque o herói das aventuras por mar só no centro, em Ítaca (ou na Ilha dos Amores, em Camões), poderá concluir as suas façanhas e obter o canto que imortalize o herói e lhe confirme ter atingido a Sabedoria (...); lugar de recuperação se tornará quando o exercício da memória integrar os que ficaram a tomar conta do Finisterra. Neste processo cultural, mais do que qualquer elemento material que pudesse certificar a passagem do herói por um lugar, é nobilitante que tenha ficado nome ou descendente – se ele levantou um templo, este só podia ser caduco e deixar para os vindouros testemunho em ruínas (tanto mais que outro culto havia surgido, entretanto). O nome, aliás, é tudo, porque só ele cabe na memória (e no mito) dos homens, aberto ao canto (ode que é logos) do poeta; o descendente instaura laços de sangue e de poder continuado.
(...)
Mesmo que a crítica histórica obrigue a reconhecer que as origens não são certas e que o mito transborda para fora do quadro geográfico e histórico primitivo, havemos de reconhecer que em Olisipo / Ulixbona se constitui uma comunidade de homens que a si mesmos se reconhecem no suposto epónimo da sua cidade e lhe dão continuidade de viajantes – que ostentam a marca de descobridores até aos confins do mundo, de onde sempre pretendem regressar. Ultrapassam eles a personagem mítica, que nunca pretendeu descobrir nada nem recolher nada e na distância escondeu o nome próprio, que apenas desejou regressar ao seio da família tradicional e recupera a própria identidade no canto do aedo no palácio de Alcíno. A esta memória passiva contrapõe-se uma memória activa – de reconhecimento de novos horizontes na recuperação do passado. Na audácia dos novos cometimentos, aqueles que evocam o fundador soltam amarras sobre um Novo Mundo e nessa atitude mostram a diferença: o protagonista de 'Os Lusíadas' será o primeiro a contar a história do seu país e a reivindicar uma missão de descoberta – «Os Portugueses somos do Ocidente / imos buscando as terras do Oriente». O Mediterrâneo deixa de ser um Mare Clausum para se prolongar num Mare Infinitum (...). Às aventuras do mar sucede, não o mistério, mas o deslumbramento. O horizonte não é já apenas o mar sem fim, tenebroso e tremendo, mas um Mundo Novo em que os homens espalhados pelo orbe inteiro passam a estar ligados pelo mar oceano, em vontade de novo convívio e com a possibilidade de acolher as experiências dos povos mais longínquos, em admiração mútua e em confiança recíproca. A Europa ganha nova dimensão, o mundo assume também nova espessura e o Homem assegura novas capacidades: a maior delas será a de admiração frente aos outros, depois de se ter convencido da dignidade própria. A Europa regressa a si mesma, no dramatismo de reconhecer as suas próprias limitações, mas algo mais segura de que o mundo não termina no Finisterra euro-asiático. Na Utopia que se lhe abre (e que lhe traça Tomás Moro, mas Fernando Pessoa caracteriza), «os olhos com que vê são gregos»; «o rosto com que fita é Portugal». (...)
Em texto poético e na explicação que lhe anexa, Resende junta elementos dispersos e forja toda a lenda com traços fabulosos: o herói, em viagem pelo Oceano, impelido pelos ventos, que lhe alteram o rumo, interna-se pelo golfo do Tejo, descobre a fertilidade dos campos; sente-se reconfortado com o facto de se entender com os indígenas na própria língua (na base de que eram descendentes de Luso, filho de Dioniso); a conselho de Palas Atena, constrói uma pequena muralha e levanta um templo à deusa. (...)
Um território de fim do mundo: o Elysium. (...) A. Resende sublinha a amenidade da região onde Ulisses funda a nova cidade. (...). Segundo Estrabão, a cidade de Odysseia situava-se na região que Proteu havia descrito a Menelau como sendo o Elýsion Pedíon, nos confins da Terra, «onde reina o ruivo Radamante, onde os humanos gozam uma vida feliz, livres da neve, do gelo e da chuva, e onde, no seio do Oceano, se levanta a brisa suave e fagueirado Zéfiro». Este passo da Odisseia, é comentado pelo geógrafo da seguinte maneira: «A pureza do ar e a suave influência do zéfiro são efectivamente características próprias da Ibéria depois de dada a volta completa para o lado do Ocidente; possui ali um clima verdadeiramente temperado e, além disso, está situada nos últimos confins da terra habitada, isto é, nos lugares extremos, onde o mito, como dissemos, colocou o Hades, pois a menção de Radamante nos versos citados implica a proximidade de Minos e, como é sabido, diz Homero: "Ali vi a Minos, o nobre filho de Zeus, que, com o seu ceptro de ouro na mão, administrava a justiça aos mortos"». Na zona ocidental da Ibéria, frente ao Atlântico, segundo o geógrafo, havia uma região de felicidade, de que as Ilhas dos Bem-aventurados, que lhe ficavam na vizinhança, não seriam mais que um prolongamento.
É largo o percurso do mito das Ilhas Afortunadas (...). Vários são os prolongamentos medievais. Recordemos apenas alguns: no mapa da dispersão apostólica incluído nos Beatos uma cartela explicita a sua localização frente à desembocadura mediterrânica no grande mar do Atlântico; (...) cuja tradição mais antiga está em testemunhos de origem hispânica, conduz o protagonista com os seus monges ao encontro de uma ilha a ocidente, onde avistam o paraíso; (...) situa a ocidente uma pequena ilha onde a experiência celestial cumula de felicidade um eremita que ali se aventura a partir até ela, depois de a avistar numa subida à Torre de Hércules; numa ilha afortunada, a Ocidente, (...).
O nome de Elysium concorre com essa designação e acaba por se cruzar com o de Lisboa."
Aires Nascimento
"Quando a filosofia pinta cinza sobre o grisalho,
uma forma de vida já envelheceu e, com o cinza
sobre cinza não se pode rejuvenescer, apenas reconhecer;
A coruja de Minerva (Atena) alça seu vôo
somente com o início do crepúsculo."
Hegel (1770-1830), "Filosofia do Direito"
A Águia, órgão do Movimento da Renascença Portuguesa, foi uma das mais importantes revistas do início do século XX em Portugal. No século XXI, a Nova Águia, órgão do MIL: Movimento Internacional Lusófono, tem sido cada vez mais reconhecida como "a única revista portuguesa de qualidade que, sem se envergonhar nem pedir desculpa, continua a reflectir sobre o pensamento português".
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1 comentário:
E quem diz aqui Filosofia, pode querer dizer Política, Ciência...
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