Eu vim da terra dos traídos
Vim dum monte de sonhos destroçados
Vim de cidades em ruinas
Dum bando de famintos revoltados.
Amei os pobres, as crianças, as mães amarguradas.
Fui choro, fui pranto de muitos lares,
Fui o roçar de facas, de chibatadas.
Entrei nos templos, p’ra achar pureza,
Desci às ruas, p’ra conhecer tristeza.
Fui bandeira branca, desfraldada,
Fui lágrima de noiva abandonada.
Fui grito de dor, brado de morte,
Fui brinquedo morrendo com um menino.
Fui solidão e fui miséria
Fui flor de sangue derramado.
Eu vim da terra dos traídos…
Da terra sem lares, ou maternas mãos…
Sem portos, sem ruas, sem amores,
Sem Credos, sem Deus, sem alvoradas…
Vim dum bando de crianças inocentes
Qu´esperavam com fé p´la madrugada,
Que não conheciam ódios raciais
E tinham direito à sua sobrevivência.
Eu sou a que está convosco, incompreendidos,
Que não querem curvar-se ao cativeiro,
Que querem ser livres, encontrarem-se,
E acreditam que num futuro aurifulgente,
Num mundo sem ódios, nem concessões,
Tudo será melhor, será diferente.
Vera Lúcia Kalaari
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É urgente pensar.
Hoje o relativismo axiológico, o multiculturalismo descomprometido e o liberalismo económico que assume o mercado como um sistema anulador da ética na sua amoralidade inumana, dão origem a um cinismo corrosivo que destrói qualquer capacidade de ir ao encontro da diferença e do que é específico do mundo em que vivemos, da cultura que nos investe nesse mundo com um sentido, humano, demasiado humano para se manter dentro dos limites da humanização apropriadora e exclusivista.
É, pois, urgente pensar. Mas resistindo, desde logo, à entrega acrítica ao pendular exercício da aquilatação comparativa, o jogo judicativo da Razão mecanicista, capaz de pesar tudo, mesmo, cegamente, os imponderáveis do viver e do morrer e do que, aquém, além, abaixo e acima disso faz nascer os sentidos que dão densidade ao que somos, nos fazem ver a necessidade, ou a precisão (no sentido do que nos faz falta como o pão para a boca, e não da exactidão que resulta da medida e da pesagem, sempre terminantes e determinantes) do que não somos, do que ainda não somos.
Pensar no sentido que nos dá a ver José Enes, indo mais longe na via aberta por Heidegger. Este último vê no pensamento uma forma sublime do cuidado, um ir ao fundo, à Memória, ao não esquecimento, à não morte do aprofundado sentido do ser, na sua radicação na abissal transcendência da liberdade que nos urge. José Enes vê aí a ferida, a rasgura que a Língua pensa, dispensando o alívio duma visão na qual nos postamos inteiros, como resguardo e veículo de transcensão, sublimação e exaltação.
Assim a Língua não é nossa, é do pensamento e, nesse sentido sublimante é universal.
Pensar é não esquecer que existe o outro do outro em nós e nos que vemos como outros em relação a nós. A entrega à mesmidade do racionalismo tecnicista e entificante fere a indiferenciação que se joga na diferença e na disseminação. Não que as diferenças não contem, mas há que vê-las como a radical impossibilidade da cisão. Daí a urgência do pensar.
E a escrita é a actividade por excelência do pensamento, é o que permite soturar, sem esconder o que se abriu nas feridas que o esquecimento abre na tessitura em fractal daquilo que se vive nas nossas vivências. Daí a impossibilidade da Língua se ver apropriada pela Técnica. Mesmo a informática é uma forma, muito simplista, de tentar apalpar a luz. E só na escrita e no Dito, a luz pode ser apropriada sem a despegarmos da escuridão, no fundo, o segredo do seu brilho e da sua dispensação da visão.
Também aqui reside o segredo da Lusofonia. E das Pátrias todas que há em cada homem que assuma a Língua como o próprio do Pensamento. Não há nada de biológico ou de territorial nisto, posto que a Língua, quando é a nossa Língua, não tem mais do que a Terra inteira. E com ela em qualquer parte da Terra seremos nós próprios.
É, portanto, urgente pensar. E só há verdadeira educação através do pensamento. Por isso chega a ser criminosa esta ideia (?) das “Novas Oportunidades”. Porque tudo passa a ser aceitável, menos a mediação e a necessidade ontológica de nos sabermos históricos e historiáveis. É urgente que assumamos uma vida contável e não nos consumamos num viver descontável. E termos uma vida contável é assumirmos uma vida que se apresente na Língua, que nela se revista de formas de pensamento. E só de dentro dum viver verdadeiramente conversável é que podemos assumir o mundo como a presentificação dos sentidos. Só assim podemos converter-nos ao que nos transcende.
O pensamento é assim, também, um passamento. Um passar a limpo o que nos inquieta. Um passar o vau, fazendo a união entre margens. E um assumirmos a morte sempre que necessário porque as palavras são veículos que nos levam mesmo para lá do que somos. Metaforicamente, ou não, podemos sair de nós. São elas que permitem que nos façamos ao mar. E com elas, por elas, naufragaremos ou chegaremos aonde for possível, até mesmo à impossibilidade dos nossos sonhos se tornarem demasiado reais para deixarem de ser nossos. Esse o maior sortilégio da literatura. E de todas as formas de Pensamento.
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