«Em Portugal não há ciência de governar nem há ciência de organizar oposição.
Falta igualmente a aptidão, e o engenho, e o bom-senso, e a moralidade, nestes dois factos que constituem o movimento político das nações.
A ciência de governar é neste país uma habilidade, uma rotina de acaso, diversamente influenciada pela paixão, pela inveja, pela intriga, pela vaidade, pela frivolidade e pelo interesse.
A política é uma arma, em todos os pontos revolta pelas vontades contraditórias; ali dominam as más paixões; ali luta-se pela avidez do ganho ou pelo gozo da vaidade; ali há a postergação dos princípios e o desprezo dos sentimentos; ali há a abdicação de tudo o que o homem tem na alma de nobre, de generoso, de grande, de racional e de justo; em volta daquela arena enxameiam os aventureiros inteligentes, os grandes vaidosos, os especuladores ásperos; há a tristeza e a miséria; dentro há a corrupção, o patronato, o privilégio. A refrega é dura; combate-se, atraiçoa-se, brada-se, foge-se, destrói-se, corrompe-se. Todos os desperdícios, todas as violências, todas as indignidades se entrechocam ali com dor e com raiva.
À escalada sobem todos os homens inteligentes, nervosos, ambiciosos, saídos do mundo anónimo da miséria: escritores, dramaturgos, proprietários, poetas, soldados, todos os filhos do acaso e da vadiagem literária querem penetrar na arena, ambiciosos dos espectáculos cortesãos, ávidos de consideração e de dinheiro, insaciáveis dos gozos da vaidade.
De modo que a governação cai nas mãos inexperientes e frívolas daqueles que nem têm a experiência, nem a filosofia, nem a prática, nem a sabedoria, nem os sistemas, nem os estudos necessários para encetar, com proveitosos resultados, um caminho político de ideias e de concepções. Em Portugal os homens de estado não se criam, decretam-se: a carta constitucional dá ao rei a faculdade de, com uma assinatura, elevar um homem qualquer, ignorante e nulo, àquela ciência, àquela superioridade de espírito, àquela altura intelectual que pedem as regências públicas.
Um homem, inteligência do acaso, saído das obscuridades da pequena literatura ou do pequeno jornalismo, talento de álbum, filósofo de almanaque, coleccionador de poesias eróticas, com o cérebro cheio de pequenas futilidades de retórica, é de um momento para o outro, em virtude de um decreto, por graça do imperante e protecção da Carta, considerado como hábil e superior para dirigir o movimento político, para levar a nação no caminho do bem social à conquista das felicidades, da florescência, da grandeza, da independência e da riqueza.
Este homem não conhece a política do seu país, não conhece a história contemporânea, não conhece os métodos políticos, não conhece a marcha das ideias, as necessidades da sociedade moderna, a influência dos princípios, os limites morais da legalidade, as prescrições salutares da justiça; não conhece a diplomacia, não conhece o trabalho íntimo e latente da reconstituição europeia, não conhece as condições das classes, o estado da indústria, a prosperidade do país; não conhece a filosofia social, os princípios morais da governação, a influência do passado, a vantagem das alianças, a possibilidade latente do futuro, não conhece nada, nem ideias nem factos; mas que importa que não conheça nada? Foi considerado superior por um decreto régio e isto porque intrigou, porque pediu, porque se vendeu, porque se rojou, porque se curvou, porque abdicou sentimentos, dignidade, consciência, independência, e ficou uma matéria vil à qual um influente qualquer da camarilha pode fazer tomar todas as formas possíveis, como se fosse um pouco de barro, e em virtude desta nulidade, é considerado grande homem, por decreto do rei. Outros então alcançam o valimento e depois manifestam a altivez, tornam-se dominadores, encobrem a ignorância com a vaidade, a nulidade com o aparato, a falta de ideia com a abundância de vexação.
É uma das coisas mais dolorosamente cómicas do nosso sistema, este direito que têm os poderosos da camarilha de decretar grandes homens de Estado.» […]
Eça de Queiroz, publicado in O Distrito de Évora, 2 de Junho de 1867 (nº42).
Lembrei-me deste artigo de Eça de Queiroz, de que transcrevo a primeira parte, na sequência de uma conversa com o Lord of Erewhon, de que vou também tentar transcrever o que me fez partir para este post:
«[…] a iniquidade da República Portuguesa que veio substituir Portugal não está numa enfermidade da substância do regime republicano, mas no facto de não ter dado solução a nenhum dos defeitos que criticava na monarquia, de só os ter engrandecido e fomentado uma sociedade que se sustenta na corrupção; com a agravante de ser uma corrupção múltipla, de obreiros vários, como na Roma tardia, sazonalmente assolada por tribos barbáricas de costumes diversos, que a atacavam por fora; e por dentro minada por «homens de bem» com promessas de salvação, salvaguardados pelas vestes do sacerdócio, a prometer uma cidade de Deus superior à dos homens. E hoje não podemos falar de prostrados ao sofrimento na cruz, mas de vendidos ao deus dinheiro e de tribos de políticos: o capitalismo e os partidos […]»
Saliento que a haver «pouca escrita» nas palavras do Lord, a falha é minha, porque quem o conhece sabe que as suas conversas são textos perfeitos.
5 comentários:
És uma das mulheres mais inteligentes que conheço e, sem dúvida, das poucas onde reconheço as virtudes antigas que honraram as mulheres lusitanas.
És uma grande amiga que tenho.
Obrigado, Clarissa.
Viva El Rey!
Viva Portugal!
Oportunissimo, Clarissa.
Abraço. É muito bom encontrar-te por cá.
PS. Vou-te roubar aquele "rosto" :)
Lord, quantas das tuas conversas de café já deveriam ter sido publicadas... tenho que treinar a memória para conseguir reproduzir mais alguns excertos.
Admiro-te muito.
Um beijo na testa.
Casimiro, vamos continuar a encontrar-nos por cá :)
E quanto ao «rosto», «ofereço-to» para que possas sempre regressar a casa, à tua pátria-pequena.
Um beijo.
Ao menos li o Eça.
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