"You’ve got a friend
When you're down and troubled
And you need a helping hand
And nothing, whoa nothing is going right.
Close your eyes and think of me
And soon I will be there
To brighten up even your darkest nights."
(James Taylor)
- É preciso sacrificá-lo.
A vela queimava devagar, respeitando as tristezas que o meu avô ruminou tentando se equilibrar nas incoerências do mundo. Seus amigos faziam silêncio, cada um deles imaginando o dia de seu próprio velório. Comentam que a morte chega mais cedo para os bons. Não digo nada. Na minha mente dança o retrato do moço que nunca conheci, reparo que o bigode é o mesmo e me pergunto como um homem pode passar cinqüenta anos cultivando os mesmos sonhos. Olho para aquele rosto irreconhecível. Quando a alma sai do corpo, ele se transforma numa massa amorfa e inexpressiva, como se as lembranças fossem as únicas responsáveis pelas nossas rugas.
Se o cão do meu avô estivesse vivo, com certeza reviraria sua cova fresca, abocanharia o caixão, desabotoaria seu colarinho, tiraria seu paletó, roçaria seu peito fraco de velho e lamberia suas mãos de morto, que ainda assim guardariam antigos carinhos.
A primeira vez que a vi, ela desmanchava pequenos torrões de terra com a ponta dos dedos. Não havia beleza em seu rosto, no entanto, seu jeito telúrico me comoveu. Encostei no poste e fiquei ali, só observando, absorvendo cada pequeno gesto. O cigarro aceso e o terno de segunda me davam um aspecto de herói de filme americano. Ela jamais soube desse nosso primeiro encontro. Entrei no bar da frente, pedi um salgado e um café. Frio, o café sempre sai da garrafa antes do cliente chegar. Fingi que era bom e engoli de uma vez. Pensei no meu último cigarro de contrabando e achei que só por ser de contrabando deveria ser tragado com mais ardor.
- É preciso sacrificá-lo.
Não entendo. O seu modo de cruzar as pernas e balançar os pés não combinava com a maldade. E os seus olhos... pequenos, redondos, bons. Olhava para os pássaros em suas gaiolas de madeira e via entre eles e meu avô uma imensa semelhança. E depois as pauladas. “... a boca que beija é a mesma que escarra...”.
Meu avô era grande e guardava, numa atitude infantil, o tempo na algibeira.
- É preciso sacrificá-lo.
Todas as feridas em carne viva daquele cão voltam e chegam a arder na minha própria pele. Meu avô fechava a mão e o acariciava com os nós dos dedos, entre as duas orelhas, único lugar não devastado pela desgraça. “É preciso sacrificá-lo...”
Ela jamais suportaria essa morte branca, higienizada. Ela detestava hospitais. Tinha pavor e nojo do cheiro das flores. E o cheiro das flores sempre vem acompanhado do odor podre dos hospitais. Nunca ousei dar-lhe um ramalhete sequer. Odiava as flores. Adorava os girassóis suicidas de Van Gogh.
As visitas entediavam-na, aos poucos, as pessoas deixaram de aparecer. Ou para deixar de incomodá-la ou por puro comodismo. As raras palavras que pronunciava eram:
- Está um cheiro insuportável aqui, deve vir do corredor. A comida é tão ruim que não sei dizer se o cheiro vem do refeitório ou do banheiro.
- Não sinto nada. – eu mentia.
Ela sabia que aquele cheiro forte vinha do seu próprio corpo, sempre na mesma posição. Os banhos eram feitos com um pano úmido. Cada dia mais magra... talvez o monstro que tanto temíamos quando criança, saísse debaixo da sua cama e devorasse toda noite um pedaço da sua carne tenra e amarga.
Suas costas estavam cobertas de feridas, como se o seu corpo tivesse a intenção de escancarar suas mágoas. Um campo de papoulas prontas para serem colhidas.
“- É preciso sacrificá-lo. – decretou o veterinário.” Já não conseguia enxergar tanta perversidade nessa frase.
O relógio do hospital marca 11 horas. Lembro do meu avô e agora apalpo, como se apalpa uma fruta madura, todo o seu medo. Eu também poderia guardar o tempo no bolso – injeto o líquido em seu braço branco.
Hoje sei que meu avô era deveras bom e se o seu cachorro estivesse vivo abriria seu túmulo e colocaria uma flor em sua lapela.
Poderia num acesso de fúria, arrancar os ponteiros do relógio, mas agora é tarde demais e todas as horas são mortas.
(James Taylor)
- É preciso sacrificá-lo.
A vela queimava devagar, respeitando as tristezas que o meu avô ruminou tentando se equilibrar nas incoerências do mundo. Seus amigos faziam silêncio, cada um deles imaginando o dia de seu próprio velório. Comentam que a morte chega mais cedo para os bons. Não digo nada. Na minha mente dança o retrato do moço que nunca conheci, reparo que o bigode é o mesmo e me pergunto como um homem pode passar cinqüenta anos cultivando os mesmos sonhos. Olho para aquele rosto irreconhecível. Quando a alma sai do corpo, ele se transforma numa massa amorfa e inexpressiva, como se as lembranças fossem as únicas responsáveis pelas nossas rugas.
Se o cão do meu avô estivesse vivo, com certeza reviraria sua cova fresca, abocanharia o caixão, desabotoaria seu colarinho, tiraria seu paletó, roçaria seu peito fraco de velho e lamberia suas mãos de morto, que ainda assim guardariam antigos carinhos.
A primeira vez que a vi, ela desmanchava pequenos torrões de terra com a ponta dos dedos. Não havia beleza em seu rosto, no entanto, seu jeito telúrico me comoveu. Encostei no poste e fiquei ali, só observando, absorvendo cada pequeno gesto. O cigarro aceso e o terno de segunda me davam um aspecto de herói de filme americano. Ela jamais soube desse nosso primeiro encontro. Entrei no bar da frente, pedi um salgado e um café. Frio, o café sempre sai da garrafa antes do cliente chegar. Fingi que era bom e engoli de uma vez. Pensei no meu último cigarro de contrabando e achei que só por ser de contrabando deveria ser tragado com mais ardor.
- É preciso sacrificá-lo.
Não entendo. O seu modo de cruzar as pernas e balançar os pés não combinava com a maldade. E os seus olhos... pequenos, redondos, bons. Olhava para os pássaros em suas gaiolas de madeira e via entre eles e meu avô uma imensa semelhança. E depois as pauladas. “... a boca que beija é a mesma que escarra...”.
Meu avô era grande e guardava, numa atitude infantil, o tempo na algibeira.
- É preciso sacrificá-lo.
Todas as feridas em carne viva daquele cão voltam e chegam a arder na minha própria pele. Meu avô fechava a mão e o acariciava com os nós dos dedos, entre as duas orelhas, único lugar não devastado pela desgraça. “É preciso sacrificá-lo...”
Ela jamais suportaria essa morte branca, higienizada. Ela detestava hospitais. Tinha pavor e nojo do cheiro das flores. E o cheiro das flores sempre vem acompanhado do odor podre dos hospitais. Nunca ousei dar-lhe um ramalhete sequer. Odiava as flores. Adorava os girassóis suicidas de Van Gogh.
As visitas entediavam-na, aos poucos, as pessoas deixaram de aparecer. Ou para deixar de incomodá-la ou por puro comodismo. As raras palavras que pronunciava eram:
- Está um cheiro insuportável aqui, deve vir do corredor. A comida é tão ruim que não sei dizer se o cheiro vem do refeitório ou do banheiro.
- Não sinto nada. – eu mentia.
Ela sabia que aquele cheiro forte vinha do seu próprio corpo, sempre na mesma posição. Os banhos eram feitos com um pano úmido. Cada dia mais magra... talvez o monstro que tanto temíamos quando criança, saísse debaixo da sua cama e devorasse toda noite um pedaço da sua carne tenra e amarga.
Suas costas estavam cobertas de feridas, como se o seu corpo tivesse a intenção de escancarar suas mágoas. Um campo de papoulas prontas para serem colhidas.
“- É preciso sacrificá-lo. – decretou o veterinário.” Já não conseguia enxergar tanta perversidade nessa frase.
O relógio do hospital marca 11 horas. Lembro do meu avô e agora apalpo, como se apalpa uma fruta madura, todo o seu medo. Eu também poderia guardar o tempo no bolso – injeto o líquido em seu braço branco.
Hoje sei que meu avô era deveras bom e se o seu cachorro estivesse vivo abriria seu túmulo e colocaria uma flor em sua lapela.
Poderia num acesso de fúria, arrancar os ponteiros do relógio, mas agora é tarde demais e todas as horas são mortas.
Marcia Barbieri
3 comentários:
Em primeiro lugar, gostaria de dizer que adoro essa música e acho que todos que possuem amigos de verdade se vêem nela de alguma forma.
A morte sempre é um caso a se pensar, pois mais dia, menos dia, ela há de nos cair no regaço, e normalmente a morte de alguém tão querido nos faz pensar em nossa própria. Começamos a ver valores nas pessoas que nunca foram tão evidentes em vida e nossas lembranças ficam realçadas pelo fim de uma vida. Mas a coisa pior que encarar a morte natural de uma pessoa querida: testemunhar a trajetória de uma morte sofrida. Essa narrativa traz esse percurso de descrição e sensação com maestria.
Beijinho.
Bela narrativa - afinal também tem um toque de neo-romantismo, não isento de «tétricos trópicos»... ;)
Bem-vinda, Amiga Marcia!
Bia,
obrigada pelas leituras sempre atenciosas, fico feliz quando coloco um texto,pois,sei que vc. o lerá.
Beijos
Klatuu,
obrigada pelo comentário, espero que acompanhe meu trabalho. Eu farei o mesmo.
Beijos
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