CERVANTES
Nascido em Madrid em 1547, pertencia Miguel de Cervantes e Saavedra a uma família pobre; o pai era cirurgião, mas de categoria inferior, o que o fez conhecer a miséria e a prisão por dívidas; o contacto que logo Cervantes teve com a vida foi duro e de molde a dissipar-lhe toda a espécie de ilusões; ninguém como ele pôs tão claramente a importância do económico para a vida moral do homem vulgar: pobreza e honestidade, entendida a palavra num sentido muito mais largo dó que o de não roubar directamente, aparecem como termos de conciliação difícil; escusado é dizer que, por outro lado, a existência de ricos num mundo de miseráveis lhe surgia como o resultado de uma série de infracções morais, voluntárias ou não. Dos estudos de Cervantes pouco sabemos: por volta dos 20 anos frequentou um colégio universitário de Madrid; Cervantes, que não era, como já se tem querido sustentar romanticamente, um homem sem cultura que, por milagre, por bafejo dos deuses, produziu uma obra de génio, não nos dá, por outro lado, a impressão de ter sofrido formação livresca; a leitura deve ter entrado nele apenas como um dos elementos da grande vida que nos rodeia; a sua educação fez-se ao contacto dos homens e das coisas e entram naturalmente no número os homens mortos que se nos revelam pelo que escreveram; além de tudo, é Cervantes um dos escritores em que melhor podemos aprender como, a cultura não é uma erudição, um saber fixo, mas uma capacidade de juízos críticos, com uma compreensão da vida tal como se nos apresenta e, ao mesmo tempo, o desejo de que ela se torne mais racional e, por isso, mais justa; essa espécie de cultura resulta, como é evidente, não só da qualidade do espírito de quem a possui, e é neste sentido pessoal, incomunicável, mas também do ambiente que se encontrou na vida; o que leva a um esforço para que todos tenham à sua volta tudo aquilo de que necessitam Para se tornarem cultos. Parece que Cervantes deve parte da sua formação à influência de Erasmo que muitos grandes espíritos espanhóis veneravam como um mestre: neles mostrou a Península as suas possibilidades de espírito crítico, tolerância, visão inteligente do mundo humano; mas depressa as circunstâncias históricas, com os chefes religiosos e políticos, tornaram a vida dos erasmistas impossível no ambiente de austera tristeza que a contra-Reforma trouxe à Espanha; mas Cervantes, que tinha a arte de velar, pela ironia, as suas opiniões, escapa à repressão e nunca os inquisidores o incomodem. A viagem pela Itália como soldado de aventura alarga-lhe a experiência; em 1571 bate-se em Lepanto contra os turcos e a acção fica para ele como a vitória da civilização sobre a barbárie; esteve depois em Navarino, Tunis e Goleta: lutou sempre como um bravo, mas havia no seu peito o ressentimento contra a inépcia dos dirigentes que não aproveitam o heroísmo dos homens para uma grande obra humana e se mostram incapazes de se erguer acima dos interesses mesquinhos e das mesquinhas questões. Em 1575 é capturado pelos piratas de Argel que o têm preso durante cinco anos: é uma parte da sua vida de que sabemos bastantes pormenores e em que Cervantes nos aparece como um homem de perfeita coragem e de segura inteligência; a nobreza da sua alma e a agudeza do seu espírito conquistaram o mouro e embora tivesse imaginado e posto em prática numerosas tentativas de fuga nunca foi castigado pelo rei. Em Espanha não souberam apreciá-lo; em 1581, Filipe II, que ele procurou em Tomar, deu-lhe uma pequena recompensa; mas logo o esqueceu; quatro anos depois, publicou Cervantes a Galateia, pastoral idílica que nos surge como uma tentativa de ignorar o mundo real: sem resultado, porque Cervantes e a vida parecem ter sido feitos para se encontrarem e se baterem; há uma aventura com Ana de Rojas, depois o casamento e o emprego no serviço de abastecimentos; Cervantes percorre as aldeias espanholas, miseráveis como sempre, à procura do trigo e do azeite de que precisavam os exércitos e as armadas reais; conhece mais profundamente a vida dos seus compatriotas e tão profundamente que chega, pelo estudo dos espíritos particulares de um povo e de um século, ao que há de mais íntimo no espírito dos homens de todos os tempos. Entre 1590 e 1602, é preso por várias vezes e por vários motivos e o contacto com os seus companheiros de prisão mergulha-o mais ainda no ambiente espanhol e na essência do humano; não traz de todas as suas experiências nem a submissão dos fracos, nem o desânimo dos vencidos: a sua aceitação da vida é serena, corajosa, irónica. Em 1605 publica-se o D. Quixote, cujo êxito foi imediato; os homens reconheciam o mundo em que viviam, pintado com um realismo de que ninguém feira capaz até aí: era a Espanha com toda a sua força, com toda a sua miséria, com todo o seu fidalgo estoicismo; e era também o homem de todos os tempos e de todos os lugares, mas apreendido através do episódio quotidiano e da acção, sem uma página sequer de considerações abstractas; ao mesmo tempo, para quem não sentia o significado profundo do livro, era uma história de aventuras cómicas que entretinham e divertiam; o génio de Cervantes sobretudo se manifesta nesta possibilidade de satisfazer todos os gostos: escreve para toda a humanidade porque toda a humanidade palpita dentro dele e porque acha legitimas todas as concepções de vida que se podem formar; compreende o mundo, sem dúvida, mas protesta, porque poderia ser melhor; d e haverá possibilidade de melhorar? A sua conclusão parece ser a de que será impossível se os homens continuarem a ser o que são: uns, como D. Quixote, admiráveis no sonho e incapazes de realização prática, outros, como Sancho Pança, presos à terra, ignorantes de todo o céu que se alarga para além dos seus estreitos horizontes; seria preciso que surgisse um novo tipo humano, o que sabe sonhar e sabe realizar, não nos estreitos domínios em que o fez, por exemplo, uma Santa Teresa de Ávila, mas com os profundos interesses sociais de que a humanidade necessita; se não vierem reformadores deste carácter, os homens andarão sempre entre as ilusões absurdas do cavaleiro e o chouto paciente do burrico de Sancho. Em 1613 publicou ainda Cervantes as Novelas Exemplares, depois em 1615 a segunda parte de D. Quixote; Pérsiles e Segismunda só apareceu depois da morte do escritor, ocorrida em Abril de 1616.
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