GANIVET
Angel Ganivet, que nasceu em Córdova em 1865 e se suicidou em 1898, em Riga, onde era cônsul, foi um dos mais fortes escritores da geração que tentou um renascimento intelectual da Espanha nos últimos anos do século XIX, se não mesmo o mais sólido de todos; Unamuno, que afinal veio s exercer uma influência maior, não teve o sentido de equilíbrio, a disciplinada reflexão, a acção coerente de Ganivet; o ter morrido ainda muito novo impediu Ganivet de fazer desaparecer do seu corpo de pensamento certas ideias que nos surgem ou como contraditórias ou como pouco assentes em bases seguras; mas os livros que nos deixou — As Cartas Finlandesas, com a sua série de estudos sociais, os Hombres del Norte, trabalho da maior originalidade sobre a literatura escandinava, La conquista del reino de Maya e Los trabajos del infatigable creador Pio Cid, que são uma espécie de romances filosóficos, El escultor de su alma, drama místico em que deixou marcados alguns dos traços mais importantes da sua concepção da vida, o Epistolário publicado por Navarro y Ledesma, e sobretudo El porvenir de España e Idearium español, em que se inclui uma psicologia dos espanhóis, uma interpretação do passado da Espanha e um esboço do programa do futuro — gravam no leitor uma impressão de saber profundo, de alta capacidade de especulação, de gosto pelo jogo das ideias, de compreensão justa do que a realidade apresenta e ao mesmo tempo de fervor místico na arquitectura do seu sonho do porvir; o estilo cheio de vigor apoiado na linguagem popular, com o emprego frequente das imagens usuais na gente de Castela e Andaluzia, mais contribui para que a personalidade de Ganivet nos apareça como excepcional, mesmo num país de tão fortes personalidades como a Espanha. Como para todos os melhores espíritos que têm aparecido na Península desde o começo da decadência, o problema essencial é, para Ganivet, o problema do presente e do futuro da sua Pátria, e tão fortemente se acha ligado ao problema do sentido da vida que dificilmente os poderemos destrinçar; é característico dos homens da nossa Península esta íntima ligação entre as suas concepções metafísicas e as suas concepções de acção moral e social, de acção social que é sempre para eles, sobretudo, uma acção moral; e é exactamente esta interdependência, ou melhor, esta fusão dos dois planos que lhes dá o tom religioso que surpreendemos em Espanha num Jovellanos ou num Joaquin Costa, em Portugal num Herculano ou num Antero. Ganivet não crê que a Espanha se tenha perdido para sempre; esteve junto do povo e conheceu as reservas de energia, de vitalidade, as possibilidades de acção renovadora que nele se contêm; do fundo primitivo nada se perdeu, embora tudo tivesse adormecido; e é nesse fundo primitivo, marcado pelo estudo da psicologia do povo actual e pelo estudo do que há verdadeiramente tradicional na Espanha, que tem que assentar a renovação do pais; toda a tentativa de levantar a Espanha por métodos imitados do estrangeiro está destinada a falir, porque vai contra o sentir íntimo do povo, porque será uma superficial preocupação de um escol reduzido; não há que europeizar a Espanha, como tantas vezes se exclama, há que a hispanizar, despindo-a do vestuário estrangeiro com que a enrouparam os seus dirigentes; e então, se um dia a tarefa se realizar, surgirá ens olhos maravilhados do mundo uma nação bem diferente de todas as outras que existem. Nenhum outro povo tem como a gente de Espanha o sentido de uma tolerância que não é indiferença, porque coexiste com uma defesa apaixonada do que nos parece verdadeiro; a capacidade de entendimento com o adversário é-nos demonstrada pela forma por que os cristãos conviveram com os árabes: os visigodos que se refugiaram nas Astúrias são estrangeiros, os guerreiros das conquistas são estrangeiros; na Espanha existe, como em nenhum outro país, o espírito descentralizador, autárquico: cada terra aspira a governar-se por si própria, cada homem a reger-se pelos ditames da sua alma; este gosto da independência defende das arremetidas dos poderes o que o indivíduo tem de mais sagrado — a sua maneira de ser peculiar — e só pode ser prejudicial quando se estenda aos domínios da técnica, em que o individualismo é absurdo; há depois o impulso místico que não é o de um Kempis, que vai para Deus por uma evasão do mundo, mas o de uma Santa Teresa ou de um Frei Luiz de Granada, que a Deus se encaminham pelo serviço dos homens; tem a Espanha ainda um espírito de aventura e de coragem desinteressada que não encontramos nos empreendimentos dos outros povos; uma capacidade enorme de construção idealista a partir do conhecimento exacto das realidades: os Bacos de Velasquez e as Virgens de Murillo só se banham de uma luz divina depois de terem sido sólidos rapazes e raparigas dos campos espanhóis; ou, mais precisamente, são ao mesmo tempo deuses e homens; o sentido da justiça é mais ardente na Espanha do que entre os outros povos: a oposição, latente ou declarada, aos tribunais e aos códigos vem exactamente de que não satisfaz ninguém a sua justiça estreita, implacável e monotonamente aplicada; se juntarmos a tudo a viva inteligência, que por falta de cultura só tem servido para zombar dos governos e para sustentar o charlatanismo, teremos no povo espanhol uma base suficiente e única para que se reproduza o milagre grego mesmas linhas essenciais, mas acrescentando-lhe tudo o que trouxeram o espírito cristão e a técnica moderna. Infelizmente, até hoje, os dirigentes espanhóis só têm procurado ser os opressores e não os educadores do seu povo; com o mando despótico de um Carlos V e a vigilância dos Inquisidores, a Espanha viu estabelecer-se um sistema de governo que abafa o que há de mais forte, de mais vivo no seu espírito; sempre se tem tentado habituar os espanhóis à violência, ao gosto do sangue, à forte centralização, dominá-los pela fome, pela incultura, pelo medo; aplicou-se à nação, como uma carapaça que a oprime, um produto do génio alemão e do génio italiano; aí radica a separação nítida que se nota em Espanha entre as classes superiores e o povo. As dificuldades de reacção são naturalmente muito grandes e, fora uma ou outra rápida passagem, Ganivet não indicou os meios de que se devia lançar mão; fala apenas de um entendimento entre as nações ibéricas, sem união, e duma acção educativa; são os dois pontos fracos do Idearium e de El porvenir de España, porque não põe como condição do entendimento uma autonomia bastante ampla das várias regiões espanholas, nem se caracteriza suficientemente o sistema educativo a empregar; por outro lado, quase se não dá importância ao factor económico, em que tem talvez de se procurar a explicação de muitos dos acontecimentos da História de Espanha e que há-de ser a primeira base de qualquer renascimento; de resto, só uma renovação económica na Europa poderá fornecer o quadro em que seja possível actuar num pais em que todos os reformadores só têm encontrado como obstáculo insuperável um escol que nada compreende e um povo que vive na mais grosseira das ignorâncias. E, ampliando, modernizando as ideias de Ganivet, pode dizer-se que a Península dará porventura ao mundo a fórmula pela qual o homem aproveitará plenamente essa renovação económica e não deixará que ela venha esmagar o seu espírito; nenhuma nação na Europa parece ter, como a Espanha, as reservas de força moral, de desinteressada actividade, de afirmação do indivíduo necessárias para que se consiga um tal objectivo.
5 comentários:
Bom. É claro que Agostinho é Agostinho. E agora vou eu comentar.
Carlos V teve o azar de ter nascido depois da "destruição da Ocultissima Ordem do Templo", momento histórico definido no séc. XIX para poder (com a superioridade de quem tinha sido iniciado em lojecas de dificil e duvidoso acesso) descarregar na Igreja Católica a culpa de tudo o que acontecera (ou não acontecera). E portanto é de Carlos V e "dos Inquisidores" (!) a responsabilidade pela des-hispanização da Espanha. Pena esse malogrado Ganivet não ter referido os Bourbons, que na época dele estavam no trono usurpado há quase duzentos anos.
Para pôr a coisa de outra maneira, talvez mais clara para os portugueses: Carlos V foi mau porque foi um rei alemão e italiano (?!), um estrangeiro no trono dos hispânicos; entao e em Portugal Afonso filho de Henrique o Borgonhês, e Filipa de Lancaster a Inglesa, e Pedro IV o Internacional, foram bons porquê?
Qualquer deles renovou ou procurou renovar de alto a baixo o país que encontrou de acordo com regras de fora trazidas.
Explico porque é que isto é crucial: nenhuma Pátria hispânica se erguerá na ignorância ou na demonização da Europa. Como nenhuma Pátria se erguerá na dissolução na Europa.
"A Europa jaz, posta nos cotovelos...
o Rosto com que fita é Portugal"
Não é prudente separar a Cabeça dos Ombros. Qualquer criança devia saber isso.
Cumprimentos,
Casimiro
Este pedaço do caderno é fino...
P. S. Ó fidalgo Casimiro... estou à espera que respondas ao homem, para ir na onda...
Bom, já que gostaram deste, segue outro: depois do nosso irmão próximo, agora o nosso irmão extremo... O Marinho é que salientava muito as nossas afinidades com os russos. Talvez seja neles (nos extremos) que mais verdadeiramente a Europa se cumpre...
P.S.: Também estou à espera da réplica ao Arnaldo. Depois, prometo contribuir.
Renato, só para notar que nada seria mais oportuno (nestes dias) do que uma reflexão russa.
Agora vou ao Arnaldo, que me tirou do meu rico sossego :)
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