A Águia, órgão do Movimento da Renascença Portuguesa, foi uma das mais importantes revistas do início do século XX em Portugal. No século XXI, a Nova Águia, órgão do MIL: Movimento Internacional Lusófono, tem sido cada vez mais reconhecida como "a única revista portuguesa de qualidade que, sem se envergonhar nem pedir desculpa, continua a reflectir sobre o pensamento português". 
Sede Editorial: Zéfiro - Edições e Actividades Culturais, Apartado 21 (2711-953 Sintra). 
Sede Institucional: MIL - Movimento Internacional Lusófono, Palácio da Independência, Largo de São Domingos, nº 11 (1150-320 Lisboa). 
Contactos: novaaguia@gmail.com ; 967044286. 

Donde vimos, para onde vamos...

Donde vimos, para onde vamos...
Ângelo Alves, in "A Corrente Idealistico-gnóstica do pensamento português contemporâneo".

Manuel Ferreira Patrício, in "A Vida como Projecto. Na senda de Ortega e Gasset".

Onde temos ido: Mapiáguio (locais de lançamentos da NOVA ÁGUIA)

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segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Cadernos de Agostinho da Silva (excertos)


SANTA TERESA

Teresa de Ahumada, que nasceu em Ávila, a 28 de Março de 1515, pertencia a uma velha família de fidalgos castelhanos; desde muito nova leu, na companhia de Rodrigo, um dos irmãos que mais amava, os livros de cava­laria, então muito divulgados em Espanha, e se entusiasmou pelas proezas dos cavaleiros andantes que partiam a purificar o mundo; a sua forte ima­ginação criava-lhe um segundo universo de feiticeiros e de monstros, de ba­talhas e de heróicas andanças; por outro lado, as tradições religiosas da fa­mília tinham-na levado a ler as vidas dos santos e desejava ser como um deles, dedicada ao seu Deus e antevendo desde a terra as delícias da eterni­dade; unidos os dois ideais num só objectivo, queria combater pela Fé e sacrificar-se para que o reino sublime do Senhor se estabelecesse finalmente; aos oito anos fugiu de casa com o irmão, para passar a terras de mouros e buscar o martírio que a levaria até o céu: o sonho não lhe bastava e, num ímpeto de audácia, procurava realizá-lo; um parente trouxe-a de novo, e depois da morte da mãe, ocorrida quando tinha doze anos, o pai internou-a no convento das carmelitas de Ávila, para a libertar da influência pouco recomendável de uma prima; a 2 de Novembro de 1533 fez-se noviça e pro­fessou um ano depois: ia, como pensara, dedicar-se a Deus, embora com menos aventuras e com menos dureza do que tinha desejado, porque o seu mosteiro era uma tranquila moradia, onde ninguém achava necessários os martírios do corpo; depois de algumas doenças graves, uma das quais a dei­xou paralítica durante dois anos, teve uma crise religiosa: todo o seu fervor caiu e passou a ser, como as outras, uma freirinha bastante interessada pelo mundo profano; quase durou quinze anos o período de afastamento; de quando-em-quando sentia remorsos e a saudade dolorosa de quem perdeu um caminho de beleza; mas depressa voltava ao tom geral da vida monás­tica do tempo. Subitamente ouviu um dia que Jesus lhe falava e a incitava à oração; a voz interior de tal maneira se lhe impôs, que deixou tudo o que a prendera até ai e, abrasada de amor, se voltou para a contemplação das essências divinas; ouviu mais vozes, teve visões, transportou-se em vida para o céu dos anjos e com o espírito de Deus se uniu, se fundiu o seu espírito; depois dos transes, assaltava-a o temor de que se tratasse de uma armadilha do demónio; mas podia estar segura: a nitidez com que ouvia Jesus, a per­feita certeza de que o tinha a seu lado, o consolo e a força da sua alma de­pois do contacto com Deus, tudo lhe garantia que se não tratava de uma dia­bólica ilusão; S. Francisco de Borja, que encontrou pouco depois, mais a firmou na sua convicção.

Se tornou a viver pela imaginação, como nos primeiros anos, se era o seu ideal uma vida celeste, não esquecia que as forças dos cavaleiros se mos­tram na terra e que tanto mais se apura o espírito quanto mais se lida por limitar os domínios da bruta matéria; não pertencia Teresa de Jesus ao grupo dos que temem perder, ao contacto dos maus, o sentido do bem; Deus, afinal, vivia na sua alma, e com tal esplendor que iluminaria sempre as trevas mais profundas a que a levasse o seu trabalho; depois, não se julgava nenhum ser superior: procurava estar sempre à altura da restante humanidade, en­tender-se com os seus irmãos, realizar, de acordo com eles, a sua obra; mais descera Jesus, passando de Deus a homem, do que ela, pobre freira, lidando com as monjas imperfeitas, com os padres manhosos, com os dúbios políti­cos; nenhum orgulho dos favores divinos, nenhum lamento de condição humana: um contínuo bom humor, um altíssimo dom da simpatia, uma pe­netrante e larga compreensão da vida levam-na a acercar-se de todos e a alcançar de todos o que deseja; como muitos outros peninsulares dos sécu­los XIV a XVI, um Nuno Alvares, um Infante, um Santo Inácio, um S. Pe­dro de Alcântara, Teresa de Jesus realiza a união, supremamente rara, de um espírito místico, absorvido numa ideia que os outros nem compreendem, nem apercebem em toda a sua extensão, e de uma capacidade de realização prática, que sabe transpor todos os obstáculos e imprimir a pouco-e-pouco no mundo rebelde a marca do pensamento. O sonho de Teresa foi dos mais loucos que se têm sonhado no mundo: reformar ela, a monja sozinha e sem poder, a Ordem do Carmo, que se relaxara, ajudar ela a cristianizar um mundo que estava tão afastado de Deus; com vontade implacável se lançou ao trabalho e se bateu contra as oposições que logo surgiram, empregando para as vencer toda a força da sua imaginação religiosa e todo o seu maravi­lhoso tacto politico; tudo suportou por um fim que lhe parecia justo; e a vontade dos outros, que se não tinha concentrado sobre um objectivo único, quebrou-se sempre diante da alma heróica de Teresa de Jesus; só às vezes se perguntava se não seria errado perder com os homens o que pudera dedicar a Deus; mas o próprio Deus a pusera no mundo para viver, lutar, sofrer; sentia que, se não servisse a humanidade, a visão divina se lhe apagaria no espírito, como seca o leite a quem não amamenta. Uma a uma se vão fazendo as fundações de conventos novos, ao mesmo tempo que escreve as suas obras em que os maiores ímpetos de amor, em que a mais ousada imaginação se exprime sempre duma forma vigorosa, mas serena, equilibrada, lógica: a fir­meza de carácter de Teresa de Ávila não admite nem os devaneios de pala­vras, nem o desalinho da construção; a sua língua é a fala popular do sé­culo XVI e a junção das expressões imaginosas e fortes à aspiração ardente por um ideal, à coragem de realização, ao domínio de si próprio, faz de Te­resa de Jesus a representante, em plano superior, da gente voluntariosa e fidalga, idealista e viva dos «pueblos» de Castela. Morre aos 66 anos em Alba de Tormes, depois de um último tormento: o de se ter visto expulsa pelas suas próprias monjas; mas não a deixaram, até o fim, a fé numa ideia e a fé no homem que tinham sido a grande força de toda a sua existência. A Igreja canonizou-a a 12 de Março de 1622, apesar das suspeitas de here­sia que a santa, em vida, despertou nos Inquisidores.

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