LITERATURA PORTUGUESA (IV)
Certo é, porém, que apesar de todas as inegáveis qualidades dos escritores do século XVIII só o movimento romântico vem abrir horizontes novos à literatura portuguesa. A emigração forçada que as lutas políticas provocaram colocou vários escritores em contacto com os centros literários estrangeiros, sobretudo os dos países anglo-saxónicos e da França e deu-lhes uma visão nova da missão do artista, acentuando e ampliando o trabalho dos pré-românticos. A exemplo do que se fazia no romantismo europeu, reclamou-se maior liberdade de expressão, defendeu-se a volta à tradição popular e à Idade-Média, condenou-se todo o classicismo de sobrevivência. O movimento romântico não teve, entre nós, a amplidão, a profundidade que atingiu em outros países, mas há nos primeiros românticos portugueses um equilíbrio, um bom senso que em vão se procuraria na maior parte dos seus modelos.
Herculano (1810-1877) cultiva a poesia filosófica e política e nela afirma, juntamente com a sua coerência de pensador e o seu carácter apaixonado e recto, qualidades de artista que se não resigna ao fácil, ao que só é belo na aparência, mas procura, como convinha ao que pensava, o que pode ser duradouro e sem falha. Já no romance é muito fraco o seu sentido do romanesco, embora haja no Eurico, no Bobo, no Monge de Cister páginas de descrição que valem ao mesmo tempo pelo que revelam do historiador e do poeta; nas Lendas e Narrativas, colecção de novelas curtas em algumas das quais desenvolveu temas dos Livros de Linhagens, Herculano consegue no Bispo Negro, na Dama Pé de Cabra, em Arras por Foro de Espanha, maior movimentação do que nos romances. Noutro campo, a sua História de Portugal, que suspendeu a partir do IV volume, nem chegando a terminar a Idade Média, é uma obra perfeita de informação e pensamento crítico; aqui, é Herculano o continuador do espírito científico do século XVIII, e a sua História pode colocar-se a par de qualquer das grandes histórias de outras literaturas, apesar do prejuízo que advém para a unidade da obra da junção da história das instituições com a história puramente narrativa. Mas são talvez os Opúsculos, em toda a sua variedade —, folhetos de história, de economia, de política, de jurisprudência,— que melhor exprimem a sólida personalidade de Herculano, nas suas duas faces principais, a da paixão e a do espírito crítico.
Almeida Garrett, (1799-1854), é muito diferente de Herculano; enamorado da variedade da vida, aberto à finura poética, ao humorismo, capaz também de exaltada sensibilidade, senhor de um estilo dúctil, maravilhosamente expressivo, requintado na construção e na escolha dos vocábulos, embora com uma aparência de perfeita naturalidade, Garrett consegue ser um excelente poeta lírico (Flores sem Fruto, Folhas Caídas), um romancista com dons de observação, alguma imaginação psicológica, habilidade descritiva (O Arco de Sant'Ana), um dramaturgo com alguns grandes momentos (Primeiro Acto do Frei Luís de Sousa) e sempre com talento de homem de teatro (O Alfageme de Santarém, A Sobrinha do Marquês, Um auto de Gil Vicente). A sua obra mais representativa é talvez As Viagens na minha terra, diário de uma digressão ao Ribatejo, fino, diletantesco, irónico, sensível à paisagem e à arte, em que o autor conseguiu narrar com uma habilidade técnica notável o episódio de Joaninha, em que também se revelou a sua sensibilidade quase feminina e o seu sentido do dramático.
Castilho (1800-1873), que se costuma incluir entre os românticos é, propriamente, um neo-classicista, em grande parte da sua obra, noutra, um ultra-romântico; pertence ao século XVIII pelo seu gosto da literatura grega e latina, pela limitação dos temas de grande número das suas poesias, pelo escrúpulo no trabalho da forma (Cartas de Eco a Narciso, A Primavera); é ultra-romântico quando, em obras como A noite do Castelo e Os Ciúmes do Bardo, dá do romantismo apenas o que é exagerado e ridículo. Embora se tenha esquematizado, quando se apresenta Castilho como um autor sem ideias, certo é que as não tinha nem muito profundas nem muito abundantes; o seu grande valor está no perfeito domínio da forma: Castilho é, neste campo, talvez o maior artista da poesia portuguesa. A pobreza de poder criador no plano intelectual afectivo e o gosto do trabalho formal marcavam-lhe um destino — o de tradutor; e, de facto, as versões de Molière (O Tartufo, O médico à força, As sabichonas), de Vergílio, (As Geórgicas), de Anacreonte, de Ovídio (Os Factos) são as melhores das suas obras; já, porém, o Fausto de Goethe o excedeu. Os discípulos de Castilho herdaram, sobretudo, os defeitos do mestre: nem João de Lemos (1819-1890), nem Bulhão Pato (1829-1912), nem Tomás Ribeiro (1831-1901) têm qualquer valor duradouro ; só deverá exceptuar-se Soares de Passos (1826-1860), com a Morte de Sócrates e O Firmamento.
Como escritores independentes de qualquer escola, embora de certo modo se ligando ao romantismo, figuram Júlio Dinis (1839-1871), Camilo (1826-1890) e João de Deus (1830-1896). Júlio Dinis muito prejudicado pela doença, pelo meio ambiente e pela curta experiência, pouco mais deixou do que promessas, mas em alguns dos seus livros (A Morgadinha dos Canaviais,Uma Família Inglesa) há verdadeiras qualidades de romancista, quer na expressão de ambiente, o que é o principal, quer na criação de personagens verdadeiramente representativas, quer na arte do diálogo. Em Camilo havia a matéria de um grande romancista, a possibilidade de um profundo conhecimento de almas de destinos humanos; faltou-lhe, porém, juntamente com o incitamento e a crítica e as facilidades materiais, gosto de análise, essencial no romancista e uma cultura humana e ampla; Camilo é irremediavelmente marcado pelo seu canto de província, pela falta de largos contactos, pela apressada cedência ao entusiasmo, ou lírico ou sarcástico, pela subordinação a um gosto público inferior; não realizou nenhum dos grandes romances que poderia ter produzido; mas há em muitos dos seus livros o testemunho do que poderia ter feito (Novelas do Minho, Amor de Perdição, O Retrato de Ricardina, A Brasileira de Prazins). João de Deus é um poeta, continuador da corrente das composições camonianas em metros curtos e da Marilia de Dirceu; é o lírico dos sentimentos que se não analisam, do fluir de imagens que substitui a minúcia psicológica, do amor candidamente sensual, sem que lhe faltem, no entanto possibilidades de atingir uma elevação que o põem ao lado dos maiores poetas; mas, para se manter a esse nível, era necessária uma cultura que realmente não possuía, o que o prejudicou também na sua obra em prosa e na actividade pedagógica, tão notável pela generosidade, pelo amor aos humildes.
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