"É necessário que surjam no mundo, a exemplo do que foram os frades-soldados da Idade Média, frades políticos, homens que, imolando tudo o que lhes é estritamente pessoal nas aras do geral, não queriam terras separadas do céu, nem céus separados da terra, mas sempre e sempre e sempre os dois unidos no mesmo esplendor de fraternidade, de paz e de bem-aventurança. Não se suponha, porém, que isto se fará falando ou escrevendo ou pensando; isto se fará fazendo. E fazendo pela não-intervenção absoluta na política de grupos; pela escolha, para governantes, de homens e não de legendas; pela atenção aos problemas locais e imediatos e não só aos planetários e futuros; e, como base de tudo, pela conquista e domínio de si mesmo, através do caminho único que têm apontado a experiência e os séculos: o caminho da ascese mais rigorosa e absoluta, da oração contínua e do amor dos homens em Deus e por Deus."
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- Agostinho da Silva, "Política e Santidade", in As Aproximações (1960), in Textos e Ensaios Filosóficos. II, Lisboa, Âncora Editora, 1999, p.24.
Apenas acrescentaria que "ascese", neste contexto, quer dizer exercício constante da mente para superar os seus limites cognitivos e afectivos (tal como um atleta se treina para ultrapassar os seus limites físicos), que "oração" pode ser para alguns "meditação", que "homens" se pode dilatar a "todos os seres" e que "Deus" se pode traduzir por Infinito ou Natureza primordial. Sem esta ascese e este amor, creio que a política é o pior dos riscos, para si e para os outros. Mas, como diz Agostinho neste texto, é por isso mesmo que os ascetas, que buscam a santidade da não-dualidade, a ela se devem dedicar: não na esfera do confronto de grupos e partidos, mas no domínio mais amplo da sua transcensão e integração no serviço do Bem comum.
- Agostinho da Silva, "Política e Santidade", in As Aproximações (1960), in Textos e Ensaios Filosóficos. II, Lisboa, Âncora Editora, 1999, p.24.
Apenas acrescentaria que "ascese", neste contexto, quer dizer exercício constante da mente para superar os seus limites cognitivos e afectivos (tal como um atleta se treina para ultrapassar os seus limites físicos), que "oração" pode ser para alguns "meditação", que "homens" se pode dilatar a "todos os seres" e que "Deus" se pode traduzir por Infinito ou Natureza primordial. Sem esta ascese e este amor, creio que a política é o pior dos riscos, para si e para os outros. Mas, como diz Agostinho neste texto, é por isso mesmo que os ascetas, que buscam a santidade da não-dualidade, a ela se devem dedicar: não na esfera do confronto de grupos e partidos, mas no domínio mais amplo da sua transcensão e integração no serviço do Bem comum.
14 comentários:
Pois é... Não há grande política sem pequena política, não há política civilizacional sem política minimalista, o governo de si por si mesmo... Quem esquece isto, só faz política medíocre, que é o que temos!
e foi essa Política Maior que fez um dos grandes políticos do século XX: Mahatma Ghandi.
Concordo fundamentalmente. Formalmente, contudo, desde logo no plano dos "media", não me parece que este tipo de discurso passe, podendo até virar-se contra nós. Parece-me melhor deixar "Deus" de fora, falar menos de "santidade", insistindo, sobretudo, nessa visão supra-partidária, trans-sectária, para além das esquerdas e das direitas que nos têm (des)governado...
um frade-soldado do século XXI
Concordo na essência com o texto de Agostinho da Silva, com as ressalvas já feitas pelo Paulo e pelo Renato
"Não se suponha, porém, que isto se fará falando ou escrevendo ou pensando; isto se fará fazendo."
Falar e pensar ajuda e é mesmo essencial a qualquer mudança que se pretenda conseguir.
Mas é pouco, se nos limitarmos a ficar por aí...
Concordo que a política é um grande risco quando se está nela por carreirismo, para se obter através dela benesses pessoais indevidas.
Fazer política por "amor" é hoje em dia cada vez mais raro.
Por isso estamos como estamos:(
Uma monja-soldado:) também deste século.
:)
Reproduzo aqui o comentário que deixei na "Serpente Emplumada":
"Será que ainda teríamos quem se dispusesse a dar-se ao trabalho de entrar na política se eliminássemos todas as regalias materiais, as luzes da ribalta, o sentar-se no colinho dos "grandes" deste mundo, o suposto status e todos os salamaleques associados ao ser "político"?
Essa ascese de que tão bem fala Agostinho não deveria ser parte obrigatória da educação que todos os seres humanos recebem, para que cada um deles seja absolutamente livre, amante de todos os seres, e por isso capaz de governar-se e de governar o país, e não uma elite plutocrática, e por isso com acesso mais facilitado a uma educação de qualidade, ou uma versão ocidental de uma casta "Brahmin" filosofico-religiosa-política?
Sugestões sobre que forma deveria ter essa educação?"
A política não é uma mística - é a transformação de uma «pequena» filosofia em critérios de eficácia; e isso basta para erguer uma sociedade mais justa.
Não obstante, a dimensão moral de um político não é matéria politicamente desprezível.
Não vejo separação entre política, mística e santidade se por estas se entender o que Agostinho entende: "ser total". A verdadeira ascese é assumir tudo, a verdadeira renúncia é a renúnica à parcialidade.
P. S. Este pedaço de texto é interpelante... mas não expressa o cerne do pensamento político de Agostinho - remete para os bastidores da política; diria, até, para um dimensão «doméstica» (ou, etimologicamente, ética): o ethos é a dimensão fundamental das motivações que podem justificar o tipo e o modo do serviço (ou abuso do) ao bem comum e à coisa pública, mas o ethos é uma singularidade, que só é politicamente reconhecido por uma sociedade se o conjunto dos homens se puder nele identificar.
Nas sociedades ocidentais contemporâneas, abertas, múltiplas, devassadas por mil discursos, muitas formas de estar e entregues a uma certa inércia laicizada de uma maioria religiosa cristã - toda a moral religiosa que se erga em política está, à partida, condenada ao fracasso, por um lado, por um certo «nihilismo» civil, por outro, por oposição aberta ao que muitos facilmente confundirão com teocracia.
Bom, aí penso o contrário... Creio que o texto expressa de facto o cerne do pensamento político agostiniano e uma máxima fundamental do pensamento tradicional, a de que o bom serviço e governo do mundo e dos outros passa pelo bom serviço e governo de si mesmo. Que dizê-lo seja impopular, não o torna menos verdadeiro. Há decerto que adaptar a linguagem. E afinal o que queremos: sucesso a todo o custo ou exemplo de alternativa para o presente e o futuro ?
Se procurasse o sucesso a todo o custo, não me tinha batido tanto pelas 3 Petições MIL, que antevia bem "impopulares" (e quão fácil é arranjar petições "populares"). Não é pois disso que se trata: mas de encontrar a melhor linguagem para expressar o nosso ideário. A esse respeito, reitero que o que disse acima...
Bom, na verdade estava a responder ao Lord...
Paulo, não estamos a falar da mesma coisa. Tu falas do político - eu estou a falar da política: acredito haver no pensamento de Agostinho o embrião de uma ideologia nova e de um destino novo, que também encontro, em muitos aspectos, em Gilberto Freyre, nomeadamente a Lusofonia como ideologia supra-nacional, sem fundamento rácico.
Não desprezo a ideia de um ethos político, nem o de Agostinho - mas não esqueças que muitos homens «desgovernados» prestaram ao longo da história da civilização excelente e abnegado serviço aos outros e ao bem comum.
Não é preciso ser santo - basta não ser corrupto, nem tirânico nem um filho da mãe.
P. S. Acho que temos que acertar agulhas, porque já estamos a parecer a pior fase do Trio Odemira - com cada um a cantar para o seu lado...
Acertar agulhas é acertar vocabulário e sentidos: ser santo em Agostinho não é ser santinho ou beato, é ser Pleno.
Posso aceitar - mas o património do conceito não é político; geraria equívocos, a ser usado enquanto discurso de «moralização da política»; e o cidadão comum nunca teria a tua leitura.
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