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______________A Praga, Arnold Böcklin, 1898Não têm fim, o ar calcinado, os detritos, a escória, as avenidas sempre iluminadas, da peste e da fome. Os edifícios, demasiado altos para o olhar, pétreos, metálicos, monstruosos, ciclopes cegos que vigiam a nossa morte anunciada, demasiado sem vida, demasiado sem morte, cruzes e lápides megalómanas que tanto ignoram os passantes como os glorificam, na sua vileza, na sua podridão, no seu desespero, canino e ululante, esparso na noite, qual sirene apocalíptica. Não tem fim a longa fila, sinuosa, serpenteante, dos que pedem sem saber o que pedem, mas sabem que lhes nasceu uma mancha negra no corpo, ou verde, ou cor de cenoura de hipermercado, esta longa fila de leprosos tecnológicos, com sexos radioactivos, com cérebros devorados pelo cancro.
Em breve abrirão os portões e a multidão acéfala encontrará a felicidade perdida momentaneamente achada, sob a forma de avançados compostos electrónicos, o desejo cibernético ao alcance de um cartão de crédito, a inteira posse de um corpo imaginário, ou real, convertido a uma série de algarismos, de procedimentos, de protocolos capitalistas da posse. Vende-se. Agora com desconto. Agora com ofertas. Agora com direito a uma viagem. A um lugar paradisíaco onde se pode ter sexo com uma criança pelo preço de um hambúrguer. Onde a droga não é crime. Onde o crime também é possível, por um simples câmbio super-sigiloso, veloz, eficaz. Aqui, vende-se… e compra-se. Compra-se a alma dos teus antepassados por um diamante. Os segredos de pichiché da bisavó do vizinho por uma pepita de ouro e troca-se, uns seios mais jovens, uns dedos mais esguios, filmes de alcova da criada, pelos teus, ou a morte em directo com cursos rápidos de assassínio por mestres renomados. Tudo no anonimato, tudo sem teres de revelar a tua cara de bicho, tudo só e apenas a troco do teu dinheiro.
Pulsa com um coração de lixo a cidade satânica, as suas artérias estão sempre cheias de sangue, de pus, de fel, de baba. Barramos torradas com a gordura sabe-se lá de quê, de quem, lambemos os lábios à janela, felizes de não estarmos lá fora, na rua, embrulhados num cobertor, embrulhados na merda, e sorrimos… e ouvimos os mil gritos de sofrimento que rasgam todos os megafones, todas as máquinas-falantes, todos os satélites e telefones, todas as rádios e telégrafos de navios à beira do naufrágio e de aviões no vórtice da queda… e depois pensamos… ainda não é a minha vez e esta noite espero uma visita… e comprei um perfume… e acendi uma vela na sala… e ouço aquela velha música de que gosto tanto.
Klatuu Niktos
17 comentários:
Fartem-se! - quero contemplar-vos: vermes felizes! :)
Verma Insular presente…LOL
Klatuu,
A frieza, a frieza pela perda de contacto com a carne que se encontra ao nosso lado assusta-me. A entrega e total dependência a tudo o que é compacto e portátil é meter palas nos olhos e perder o que de humano nos resta. Hoje, os miúdos vão ao café e não falam uns com os outros, pelo menos da maneira directa e espontânea, fazem-no pelo msn do telemóvel, pelo portátil, e vivem em silêncios quebrados pelo click das teclas batidas com destreza. Mas depois em saídas nocturnas são totalmente o oposto do que são durante o dia (fruto de uma entrega precoce ao álcool?). Estamos a caminhar para uma imaturidade emocional e para um crescimento pessoal anómalo, disfarçado pela tal “liberdade” vulgo desinteresse e quiçá negligência dos pais complacentes a todos os pedidos. Estamos a caminhar para um mundo de compensações vazias, porque fomos educados por aqueles que antes nada tinham. Julgavam eles que nada tinham…
“Compra-se a alma”, pelo prazer de um : não me chateies a cabeça, se faz favor”;
“Compra-se a alma”, pelo prazer de: eu tenho a roupa x ou y, logo, sou muito melhor que tu”;
“Compra-se a alma”, para compensar um: eu posso e compro coisas caras e de marca, porque no fundo sou um acéfalo emocional e não aguento saber que sou uma lástima como ser humano.
Vazios, apenas isso, vazios preenchidos por brilhos com garantias de 2 anos.
Nunca me farto:)
Belo texto. Retratas tão bem os podres da sociedade actual...
Não preciso de acrescentar mais nada; subscrevo a Mortisa.
Retratas o lado obscuro da sociedade com grande mestria.
Isto não é um elogio, é o que penso.
Abraço, isto é um cumprimento e respeito entre seres humanos ;)
Ruela,
:))) Lol
Não te sabia tão sarcástico...
E já que em cima me esqueci dos beijinhos, aqui ficam eles agora.
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"... esta longa fila de leprosos tecnológicos, com sexos radioactivos, com cérebros devorados pelo cancro." Entre se ser o que se é, e ser o que se quer, ainda que intrinsicamente nisto resida o grande drama de sua própria mentira a preencher a existência com malabarismos robóticos.Eis o caos da alma que concretiza em anônimos, heterônimos em busca de algo que preencha a sua vida simplória e medíocre.
Melhor mesmo escutar àquela velha música.
Beijos, maninho!
TER versus SER...
Lúcido retrato da peste (pós)moderna. .. Haverá vacina para ela? (Talvez a poesia, a cultura, o conhecimento, uma pedagogia dos afectos...)
(teimosamente) um beijo*
porque sim.
A remar contra uma maré tortuosa... Mais um verme se apresenta!
Estou preocupada já há algum tempo, a velha música já não funciona todas as noites!
Mas, provocada por um pensamento provocante, será que tenho o direito de gritar por cima das velhas músicas dos outros? Será que é o grito ou o sussuro aquele que ultrapassa a melodia entediante e estupidificante de todos os dias?
Tento acordá-los ou espero às suas cabeceiras que acordem?
Perguntas que não posso perguntar a toda a gente... Perguntas algo loucas e dissonantes da melodia... Como foi que o Tolkien chamou ao Deus que cantou notas dissonantes no inicio da criação?
E, já agora, para terminar este comentário que será considerado pouco edificante... " Do I dare disturb the Universe?"...
A esta ultima respondo sem hesitar: Outra coisa não posso fazer!!!
E... BEIJOS!!!! Caramba! Em Portugal há que ser Português! É ou não verdade que os Portugueses se beijam uns aos outros que se fartam!? Os meninos que dêem apertos de mão que é isso que fazem quando se encontram na rua! Eu, que sou mulher e que sou portuguesa dou beijos aos pares e apertos de mão quando não confio num homem! E mais não digo que já estou a comentar em off-topic!
Cara A Estranha:
O Tolkien era católico. Chamou-lhe Adversário, e não era um deus.
Um beijo
Caro Casimiro: Obrigaste esta estranha pessoa a ir buscar o Silmarillion :)
"There was Eru the One, who in Arda is called Ilúvatar; and he made first the Ainur, the Holy Ones, that were the offspring of his tought, and they were with him before aught else was made. (...)
But now Ilúvatar sat and hearkened, and for a great while it seemed good to him, for in the music there were no flaws. But as the theme progressed, it came into the heart of Melkor to interweave matters of his own imagining that were not in accord with the theme of Ilúvatar; for he tought therein to increase the power and glory of the part assigned to himself. To Melkor among the Ainur had been given the greatest gifts of power and knowledge, and he had a share in all the gifts of his brethren. He had gone often alone into the void seeking the imperishable flame; for desire grew hot within him to bring into being things of his own (...)
J.R.R. Tolkien - The Silmarillion pp 15 e 16, Harper Collins
Os Ainur e os Valar são apresentados como duas gerações distintas de Deuses, ou pelo menos é o que entendo do que leio uma vez que estas personagens são apresentadas como tendo poderes de Criação concedidas pelo seu próprio criador Ilúvatar. É possivel que mais para a frente no livro Melkor seja chamado de Opositor mas no inicio o nome que lhe é atribuido é Melkor e eu não me lembrava do nome quando fiz o primeiro comentário.
Quanto ao facto de o Tolkien ser um católico isso não me desagrada e não vejo que seja necessáriamente um defeito. O meu problema com os católicos não reside no facto de o serem mas sim a mania de não respeitarem quem o não é. O que não me parece ser o caso deste autor, que cometeu ainda assim outros pecadilhos que não lhe ficam muito bem (Como por exemplo a rectidão estar a norte e a decadência a Sul e outras coisas do género), mas que no final não mancham a obra dele para lá do humanamente e etnocentricamente razoável.
Obrigada por me teres feito levantar o traseiro da cadeira. Fui preguiçosa em não ir à estante ver o nome da personagem com que queria ilustrar o meu comentário, desta forma o comentário fica mais completo. :)
Dois beijos!
Sobre este tema, o que tenho a dizer é isto
http://nunotorres.blogspot.com/2008/03/objecto-excitante-messianismo-e-janelas.html
Objecto Excitante, Messianismo e Janelas de Oportunidade para a Portugalidade
Esta comunicação tem o objectivo de enunciar as primeiras bases do seguinte argumento:
* A obsessão actual com o progresso e o crescimento económico e com o desenvolvimento da economia, ou seja, a obsessão com o aumento da produção de bens materiais e das condições de aumento desses bens materiais, pode ser considerado um sintoma sociopatológico análogo àquilo que se poderia apelidar no individuo de “avidez narcísica”,
[...] etc
E ainda sobre este tema, algo em que me envolvi directamente foi isto
http://www.essexunipeopleandplanet.co.uk/Ethical_investment.asp
http://www.ethics4essex.org.uk/
Ethical Investments: The campaign continues
University shows an initial positive responce to the calls for an ethical investment policy after the success of the Ethics4Essex campaign!
Cara A Estranha: (com risco de violar a regra de que os comentários no blogue se destinam exclusivamente a comentar o post, mas esperando que o Autor deste seja condescente...)
Os Ainur e os Valar seriam, para os cristãos, "anjos" (de ordem superior) e não "deuses"... embora haja aqui alguma ambiguidade semântica induzida pelos ciumes do Único...
Também não acho o catolicismo de Tolkien um defeito (pelo contrário, só um católico escreveria aquela obra; mas isso levava-nos a uma discussão que apenas poderemos ter noutro local); e peço-te que reconsideres o "Norte": a rectidão está a Norte porque a Norte estão (no respectivo henmisfério) a Estrela Polar, e o Pólo; e isto por mais etnodescentrados que modernamente sejamos. Se as antigas sagas fossem argentinas, estaria a Sul (mas não a Oeste!)... questão de (olha que engraçadas as palavras: ) "orientação".
Esperando que não tenhas conseguido fechar o livro, e que pelo menos repares que a dissonância de Melkor, na canção dos Ainur, se devia a pura inflacção do ego, e não a uma saudavel tendencia libertária.
Dois beijos também
Obrigado a quem comentou.
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