“Chamou-me o deus do outro lado
que eu atravessasse a rua
o deus era um Menino
eu, Menina ou qualquer coisa.
Só isso nós dois fazíamos
repetir com paixão
as coisas de céu e chão.
Com um beijo nos unimos
e vagarosamente saímos
rumo a outro quarteirão
longe do ôco reinante
nessa rua entardecida.
Pulamos além da Vida
eu, deusa, ele Menino
em busca de algum destino.”
Dora Ferreira da Silva, Cartografias do Imaginário (Poemas)
No dia 1 de Julho de 1918, nascia, em Conchas (pequena cidade do interior de São Paulo - Brasil), Dora Mariana Ferreira da Silva. Se fosse viva comemoraria hoje 90 anos.
Casada com o filósofo Vicente Ferreira da Silva (1916-1963), Dora viveu quase toda a sua vida no n.º 324 da Rua José Clemente, no bairro Jardim Paulista, em São Paulo. Esta casa onde o casal viveu (e onde Dora continuou a residir até aos seus últimos dias), constituiu-se enquanto centro de cultura, aberta a filósofos, poetas, professores e artistas de quase todos os cantos do mundo. Ainda ao lado do marido, na década de 50, Dora fundou e dirigiu a revista Diálogo e, posteriormente, já sozinha, a revista Cavalo Azul.
No fim da década de 1940, na Serra de Itatiaia (Rio de Janeiro), ao lado de Agostinho da Silva (1906-1994), de Judith Cortesão (1914-2007), de Vicente Ferreira da Silva, Dora viveu, durante alguns meses, numa comunidade pseudo-monástica, na qual se lia, pintava, meditava e praticava yoga (cujo professor era precisamente Agostinho da Silva). Com esta experiência havia a intenção de se construir um mundo novo e um homem livre e, ao mesmo tempo, visava-se restaurar o elo com a divindade, por via da crença numa nova religião que o pensador português supostamente haveria criado no Uruguai, por enquanto lá passara, e a que chamara de Alcorão. Por esta comunidade andaram ainda Saudade Cortesão, Murilo Mendes (1901-1975), Oswald de Andrade (1890-1954) e o seu filho Rudá de Andrade (1930), por exemplo. Assim era Itatiaia, lugar sagrado, uma comunidade que, tal como descrevia Dora Ferreira da Silva, era a antecipação do movimento hippie!
Enquanto tradutora, traduziu Rainer Maria Rilke (1875-1926), Carl Gustav Jung (1875-196!), São João da Cruz (1542-1591) e Angelus Silesius (1624-1677), por exemplo. Enquanto poeta ganhou três vezes o Prémio Jabuti (com as obras Andanças, Poemas da Estrangeira e Hídrias) e uma vez o Prémio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras (com a obra Poesia Reunida).
A impressão que nos deixa a escrita da poeta Dora Ferreira da Silva é a de um contacto permanente com uma dimensão extra-temporal, é a de um convite constante à perscrutação da eternidade. Certa vez, pudemos constatar a veracidade de tal impressão numa visita à casa de Dora. Sentada na sua poltrona, exalava poesia por todos os poros. O seu olhar infantil convencia-nos de que vida só vale a pena ser vivida com intensidade, entrega e paixão. Falava da vida e da morte, dos vivos e dos mortos, como se fosse uma coisa só. No seu discurso, Vicente, Agostinho ou Judith, pareciam estar ali, ao nosso lado, sentados no sofá ou a olhar o jardim pela janela. Estavam tão vivos quanto nós... Depois do falecimento de Dora, a 6 de Abril de 2006, voltámos à casa do Jardim Paulista e, embora tudo ainda estivesse nos seus lugares, Dora Mariana já não estava lá, nem as suas memórias que faziam viver tudo o que, convencionalmente, já tinha perecido. Aquela casa, verdadeiro centro de cultura de tempos tão próximos, não era já a mesma. Poderia até simbolizar muitas vivências e experiências mas não contava já com a presença de Dora... era esta quem a animava, era esta quem a fazia existir plenamente. Importa-lhe a busca do infinito e o propósito que anima os homens na sua caminhada cósmica e ancestral. Para a autora, a palavra poética é a chave de abertura de uma dimensão limite e tangencial, onde se encontram e fundem a esfera da matéria e do espírito, do humano e do divino, dos homens e dos anjos, do tempo e da eternidade, da imanência e da transcendência.
Para resumir, a inspiração de Dora vem de tempos muito antigos, gregos, e que remonta a um ideal de vida, de sociedade, de ligação com o divino que está assente numa Idade de Ouro, numa Grécia ainda luminosa e filosófica.
Na tarde de 6 de Abril de 2006, com 87 anos, Dora Ferreira da Silva morreu na cidade de São Paulo, lugar onde viveu grande parte da sua vida e na qual escreveu uma poesia que se constituía como chave do sagrado e do silêncio maior:
“O silêncio tem uma porta
que se abre
para um silêncio maior:
antecâmara do último,
que anuncia outro depois”.
Dora Ferreira da Silva, O Silêncio
Bibliografia
Andanças (1970)
Uma via de ver as coisas (1973)
Menina e seu mundo (1976)
Jardins (Esconderijos) (1979)
Talhamar (1982)
Tauler e Jung (1987)
Retratos da origem (1988)
Poemas da estrangeira (1996)
Poemas em fuga (1997)
Poesia Reunida (1999)
Cartografia do Imaginário (2003)
Hídrias (2005)
O Leque (2007)
que eu atravessasse a rua
o deus era um Menino
eu, Menina ou qualquer coisa.
Só isso nós dois fazíamos
repetir com paixão
as coisas de céu e chão.
Com um beijo nos unimos
e vagarosamente saímos
rumo a outro quarteirão
longe do ôco reinante
nessa rua entardecida.
Pulamos além da Vida
eu, deusa, ele Menino
em busca de algum destino.”
Dora Ferreira da Silva, Cartografias do Imaginário (Poemas)
No dia 1 de Julho de 1918, nascia, em Conchas (pequena cidade do interior de São Paulo - Brasil), Dora Mariana Ferreira da Silva. Se fosse viva comemoraria hoje 90 anos.
Casada com o filósofo Vicente Ferreira da Silva (1916-1963), Dora viveu quase toda a sua vida no n.º 324 da Rua José Clemente, no bairro Jardim Paulista, em São Paulo. Esta casa onde o casal viveu (e onde Dora continuou a residir até aos seus últimos dias), constituiu-se enquanto centro de cultura, aberta a filósofos, poetas, professores e artistas de quase todos os cantos do mundo. Ainda ao lado do marido, na década de 50, Dora fundou e dirigiu a revista Diálogo e, posteriormente, já sozinha, a revista Cavalo Azul.
No fim da década de 1940, na Serra de Itatiaia (Rio de Janeiro), ao lado de Agostinho da Silva (1906-1994), de Judith Cortesão (1914-2007), de Vicente Ferreira da Silva, Dora viveu, durante alguns meses, numa comunidade pseudo-monástica, na qual se lia, pintava, meditava e praticava yoga (cujo professor era precisamente Agostinho da Silva). Com esta experiência havia a intenção de se construir um mundo novo e um homem livre e, ao mesmo tempo, visava-se restaurar o elo com a divindade, por via da crença numa nova religião que o pensador português supostamente haveria criado no Uruguai, por enquanto lá passara, e a que chamara de Alcorão. Por esta comunidade andaram ainda Saudade Cortesão, Murilo Mendes (1901-1975), Oswald de Andrade (1890-1954) e o seu filho Rudá de Andrade (1930), por exemplo. Assim era Itatiaia, lugar sagrado, uma comunidade que, tal como descrevia Dora Ferreira da Silva, era a antecipação do movimento hippie!
Enquanto tradutora, traduziu Rainer Maria Rilke (1875-1926), Carl Gustav Jung (1875-196!), São João da Cruz (1542-1591) e Angelus Silesius (1624-1677), por exemplo. Enquanto poeta ganhou três vezes o Prémio Jabuti (com as obras Andanças, Poemas da Estrangeira e Hídrias) e uma vez o Prémio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras (com a obra Poesia Reunida).
A impressão que nos deixa a escrita da poeta Dora Ferreira da Silva é a de um contacto permanente com uma dimensão extra-temporal, é a de um convite constante à perscrutação da eternidade. Certa vez, pudemos constatar a veracidade de tal impressão numa visita à casa de Dora. Sentada na sua poltrona, exalava poesia por todos os poros. O seu olhar infantil convencia-nos de que vida só vale a pena ser vivida com intensidade, entrega e paixão. Falava da vida e da morte, dos vivos e dos mortos, como se fosse uma coisa só. No seu discurso, Vicente, Agostinho ou Judith, pareciam estar ali, ao nosso lado, sentados no sofá ou a olhar o jardim pela janela. Estavam tão vivos quanto nós... Depois do falecimento de Dora, a 6 de Abril de 2006, voltámos à casa do Jardim Paulista e, embora tudo ainda estivesse nos seus lugares, Dora Mariana já não estava lá, nem as suas memórias que faziam viver tudo o que, convencionalmente, já tinha perecido. Aquela casa, verdadeiro centro de cultura de tempos tão próximos, não era já a mesma. Poderia até simbolizar muitas vivências e experiências mas não contava já com a presença de Dora... era esta quem a animava, era esta quem a fazia existir plenamente. Importa-lhe a busca do infinito e o propósito que anima os homens na sua caminhada cósmica e ancestral. Para a autora, a palavra poética é a chave de abertura de uma dimensão limite e tangencial, onde se encontram e fundem a esfera da matéria e do espírito, do humano e do divino, dos homens e dos anjos, do tempo e da eternidade, da imanência e da transcendência.
Para resumir, a inspiração de Dora vem de tempos muito antigos, gregos, e que remonta a um ideal de vida, de sociedade, de ligação com o divino que está assente numa Idade de Ouro, numa Grécia ainda luminosa e filosófica.
Na tarde de 6 de Abril de 2006, com 87 anos, Dora Ferreira da Silva morreu na cidade de São Paulo, lugar onde viveu grande parte da sua vida e na qual escreveu uma poesia que se constituía como chave do sagrado e do silêncio maior:
“O silêncio tem uma porta
que se abre
para um silêncio maior:
antecâmara do último,
que anuncia outro depois”.
Dora Ferreira da Silva, O Silêncio
Bibliografia
Andanças (1970)
Uma via de ver as coisas (1973)
Menina e seu mundo (1976)
Jardins (Esconderijos) (1979)
Talhamar (1982)
Tauler e Jung (1987)
Retratos da origem (1988)
Poemas da estrangeira (1996)
Poemas em fuga (1997)
Poesia Reunida (1999)
Cartografia do Imaginário (2003)
Hídrias (2005)
O Leque (2007)
2 comentários:
Grande, grande... Essa intensidade vive-nos fundo na alma, mas só algumas pessoas conseguem soltá-la à luz do dia assim, de um modo tão marcante.
Ganda caroxa!=)
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