Lá, naquele tempo em que não se viam capulanas nas varandas das avenidas, garrindo as acácias e os jacarandás usurpadores das cores turísticas, lá naquele tempo em que a naturalização da cidade estava tão longe como distava o terreiro de onde saíam naus com decretos e leis, chiar de madeiras velhas gretadas pela História que a água dos oceanos traçou.
Lá, onde os machimbombos sempre cheios quando não era dia de praia faziam sempre rumo aos subúrbios. Lá, naquele tempo em que havia duas cidades e o cimento duma ganhava fungos quando o caniço e o zinco o confrontavam, Norte e Poente, tanto, que o Sul era dos arranha-céus e a Este o mar chamava.
quando amar era perigoso se, no orgasmo, os pêlos dos amantes não brilhassem ambos em pálido rosa imperial, ou tinha tabela miscigenada em moeda com a prata da esfera armilar, repúblicos vinte escudos. Naquele tempo, lá.
nem tinham sido inventados os chapas, pois as capulanas só vinham ao cimento vender amendoim torrado e maçaroca assada, peixe e papaias no mercado. Lá, princesa das duas cidades...
O tempo caducou-se. Vieram as capulanas às varandas e penduraram-se às janelas, garrida nova flora da cidade que esmagou os jacarandás e as acácias, velho álbum de postais em que a abertura da lente não fora feita em formato technicolor: faltava-lhe a cor das capulanas quando a objectiva se virava aos céus para focar as torres, ou se espraiava colina abaixo no longo rectilíneo das árvores aveninadas. Em baixo, sorria o mar, esse fotogénico amante que a todas beija e ergue maliciosas ondas para lamber, guloso, as cores quentes da sua capulana.
(lá, naquele tempo)
Eu vim de lá. Vivi lá e lá li livros sobre fórmulas alquimísticas do viver, que não podia entender sem perceber primeiro que a areia dourada que nas suas folhas se entranhava, que as manchas das mangas que me sujavam a camisa, essas, eram as primeiras letras a ler, a cartilha da cidade. Das duas cidades... lá, naquele tempo...
– e bastava saber olhar como sabia ler. Se o tivesse feito, então perceberia que as frondosas copas das árvores eram flores dum jardim com amos e empregados, que a areia da praia era grão que só alvas pás moinhavam, pés de longe pois da cidade que raramente os via calçados.
Lá, naquele tempo, eu fartei-me de ler livros e chumbei, não passei o exame: eu não sabia ler o livro d'A Princesa das Duas Cidades. Naquele tempo eu, estando lá, não estava: não via a luz das capulanas ondeando nos prédios, brilho que se lia mais além do vermelho das acácias e do azul dos jacarandás, cores que cegavam.
3 comentários:
Gil, guardo com muito carinho duas capulanas que um grande amigo me trouxe de uma recente viagem, apetece pegar nelas e dar-lhes lugar de honra ao olhar :)
sim, são lindas... mas nunca, nunca, te esqueças das "duas cidades"... só assim o brilho das suas cores não encandeia o pensar, às vezes apenas o olhar turístico... :-)
eu AMEI aquela cidade. e Vivi - assim em maiúscula - o colo quente e aconchegante d'ambas as Princesas, cada qual em sua época e cada per si formaram-me o sentir e o pensar, complementando-se e completando-me.
(vejo que estes posts são-te especialmente sensíveis. nasceste lá, ou moraste lá em mufanita?)
Não Gil, vivi em Luanda até aos três anos, e por isso não tenho memórias minhas, só as das fotos e as histórias dos meus pais. Tenho dois grandes amigos criados até à idade adulta adulta em Moçambique,a visão deles da vida e do mundo marcou o meu crescimento de adulta. É por isso este carinho por memórias que fui fazendo minhas, por uma forma de estar e viver que sinto também como parte de mim.
Um beijo :)
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