Uma margem, um rio, e eu ali. Na sua beira, acocorado e sentindo a aspereza das pedras que atiro à agua, uma a uma, ritualmente. Olhando os círculos concêntricos que no esverdeado sujo se formam e crescem, alargam-se até desaparecerem no passear das águas, ao inverso das minhas reflexões que giram em círculos cada vez mais pequenos até restar um ponto negro final, minúsculo, nele cabendo o gigantismo da persistente interrogação que me trouxe à solidão do recanto além do salgueiral que bordeja o caminho rural. A dúvida. A sensação crítica dos próprios actos, talvez aquilo que é vulgo chamar-se de dúvidas de consciência. Nem as águas que correm mansamente, nem os círculos que lhes provoco e nelas se esvaem trazem quer resposta quer alívio, quer a luz, o sinal, que se diz encontrar-se quando nos evadimos a tudo o mais e nos refugiamos para, com sorte, solidão e suor cerebral, pensarmos até encontrar as respostas exigidas.
Mais uma pedra, mecanicamente alimento movimentos contra natura às águas, como impondo-lhes a minha presença e, assim, forçando-as, delas extrair o momento, a inspiração, que do verdete que as suja me surja a luz que esclareça e apague, afogue, o tormento da dúvida que para a solidão me caminhou. Me caminhou, encaminhou. Porque os passos que me afastaram da vila e me fizeram mergulhar no campo circundante, que me conduziram a este oásis de nada nem ninguém além de mim e das pedrinhas em que voam as minhas interrogações, esses passos foram agitados, o caminhar foi inseguro e errante, tão vagueante como fugidia é a resposta à dúvida que me corrói o viver e alimenta o braço que, sem cessar, atira às mudas águas o grito das interrogações, mil e uma pedras que tão poucas são para a resposta que não se encontra no ondear que ciclicamente vem e morre a meus pés. O isolamento não me responde mesmo quando o chamo, o invoco, o reclamo e dele me aposso como áugure privado, vaticinador dos caminhos certos a escolher quando as encruzilhadas são dúbias.
Ergo-me porque se acabaram as pedras, nada mais há a atirar e nada mais há a extrair do rio que não me responde. Não é neste recanto, no falso isolamento e na vã ilusão que induz que se decide, que decido, que sopeso e acho o resultado mais justo, a decisão que as águas não trazem: elas correm livres, conspurcadas por impurezas múltiplas e agitadas pelo meu insano bombardear de pedras e tormentos pessoais, elas seguem o seu caminho ignorando-me e deixando-me solitário na margem, uma igual a tantas que no seu curso conhece e acaricia, mas desconhecendo e ignorando com altivez quem, nelas, ousa perturbá-las com questões que lhe são estranhas e para quem o seu curso e o caudal que nele as encaminha, não têm respostas: as questões filosóficas dos humanos são-lhe alheias, e delas trate quem da ética e seu parentesco tem de tratar: os próprios, pais naturais da dúvida e responsáveis pela sua educação, consequência.
Ergo-me e regresso, atravesso os salgueiros que me esconderam sem me esconder à razão da minha fuga, regresso aos campos e atravesso-os em passos de retorno, ora firmes, altivos na certeza encontrada de que as respostas e os caminhos certos encontram-se não nos concêntricos círculos que nada mais fazem que agitar águas que correm livres e, assim falsamente, ocultar a realidade, a convicção e a certeza de se estar a agir correctamente. Seja qual for a enigmática pergunta ou a dor do flagelo, é cabo que se atravessa e estrada que se trilha seguindo o caminho apontado pela bússola interior, dita e crismada de consciência.
Atrás ficou o rio, talvez não indiferente a eu ter encontrado o meu caminho.
2 comentários:
Gil, eu acho que nada fica indiferente, nem o rio nem o próprio caminho que pisamos.
Um abraço de agrado por estes momentos que me proporcionou :)
;-)
thanks. não há abraço mais caloroso que essas palavras
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