Existem três fenómenos em volta da "bola" que, aparentemente, correm em sentidos contrários; são esses os principais eixos, julgo eu, que mais contribuem para a formação das perspectivas daquilo que é, hoje em dia, um jogo de duplo tabuleiro, a nível desportivo e a nível negocial, ambos intrincadamente fundidos, e ainda ambos cumprindo o seu radical pendor de identidade, de risco, de impresibilidade e de expectativa, que veiculam as emoções, e das quais não escapam as próprias extremadas atitudes face ao fenómeno: por um lado, a diabolização do futebol e de seus intervenientes, acrescida sempre dos respectivos diminuidores juízos de valor sobre quem o aprecia; por outro lado, o endeusamento dos neogladiadores, heróis em calções e de botas espinhudas, a leviana e cega identificação idólatra de símbolos com significações bastante pueris e a paixão e a fé que quase sobrehumanamente são dirigidas a bandeiras que a tão pouco conduzem.
É assim, balizados por estas duas antagónicas atitudes (muito redutoramente aqui apontadas), que se cruzam e fintam os três fenómenos que no início referi, são eles: a intelectualidade vs futebol (o vice-versa é jogado mais na linha da indiferença), a intelectualização do futebol ( inclui os chamados filósofos da bola, treinadores de bancada e os sacerdotes das pregações de análise ritualística do fenómeno desportivo - todos estes, das duas uma, ou nunca levaram umas bolas a brincar, o que poderá revelar sintomas de uma preocupante infância, ou então estão ainda ressentidos por terem sido sempre os últimos a serem escolhidos para a equipa do bairro ou da escola, isto no melhor dos casos, quando não havia jogadores a mais) e, last but not least, a futebolização do intelecto (quem de vez em quando presta atenção ao desenrolar da política nacional e aos discursos que vão sendo postos em campo, já conhece um bom exemplo, mas, quem disso anda também alheado, tem aqui, no estilo deste texto também um exemplo, embora não tão bom).
Mas, o resultado real, e é de realidade e não de alienação que aqui se trata, as três estratégias - ou estilos nos casos mais espontâneos - giram em volta do mesmo esférico, apenas diferindo na posição que tomam na área. Ou seja, se, por via de um exercício de imaginação, conseguíssemos, neste momento, supor que um superior castigo nos retirasse esse esquivo brinquedo, julgo que, aquilo a que iríamos assistir, não seria a ocupação desse vazio por um qualquer espontâneo boom de apaixonado interesse por outras espécies de bens culturais e sociais; esse lugar seria mais rapidamente substituído, talvez, por um disco, sticks e patins, do que por poesia, filosofia e movimentos sociais, isto porque essas "funções", destes diferentes tipos de manifestação cultural, são distintas, não transferíveis, nem substituíveis, para outras de natureza diferente; podem ser complementares ou seguir em caminhos paralelos, mas umas não anulam as outras, pois, como diz o provérbio xintoísta, "todos os homens têm coração, cada coração tem a sua própria inclinação", e o ânimo não suporta passar fome.
E assim presto homenagem a um dos craques da poesia portuguesa, que na equipa da Faculdade de Letras jogou a defesa-central, onde ganhou fama como "sarrafeiro", ao mesmo tempo que, no papel, preparava alguns dos mais sensíveis e inspirados lances de poesia do século XX, assim como, por entre traduções de Saint-Exupéry, Garcia Lorca, Marc Ferro, H.I. Marrou, Blaise Cendrars e Montaigne, era capaz de perder grande parte do seu santo tempo em leituras de jornais desportivos. Aqui fica.
Portinari, "Futebol", 1935
"Quer-nos parecer que começa a ser tempo de o intelectual ou o artista irem perguntando a si próprios por que motivo o público que lhes falta esgota lotações dos estádios, num país dubdesenvolvido do Ocidente ou numa república popular, pelo maduro prazer de assistir, durante noventa minutos, às aparentemente loucas correrias de um punhado de homens atrás de uma caprichosa bola de couro."
Ruy Belo, Futebol e jornais desportivos têm muito público...Porquê?, in A Bola, 6-Jan-1972
"(...) - Acha que a poesia não pode, ou melhor, não deve ser ambígua, difícil, mas sim clara, fácil?
- A poesia é por natureza difícil. Como o futebol. Desculpe a alusão. Mas não é descabida. POrque é que eu leio muitos jornais desportivos? Porque os nossos maiores jornalistas são Alfredo Farinha, Carlos Pinhão, Aurélio Márcio - (...)"
Ruy Belo, in A Senda da Poesia
PORTUGAL FUTURO
O portugal futuro é um país
aonde o puro pássaro é possível
e sobre o leito negro do asfalto da estrada
as profundas crianças desenharão a giz
esse peixe da infância que vem na enxurrada
e me parece que se chama sável
Mas desenhem elas o que desenharem
e lhe chamem elas o que lhe chamarem
portugal será e lá serei feliz
Poderá ser pequeno como este
ter a oeste o mar e a espanha a leste
tudo nele será novo desde os ramos à raíz
À sombra dos plátanos as crianças dançarão
e na avenida que houver à beira-mar
pode o tempo mudar será verão
Gostaria de ouvir as horas do relógio da matriz
mas isso era o passado e podia ser duro
edificar sobre ele o portugal futuro
Ruy Belo, Palavra(s) de Lugar, in Homem de Palavra(s)
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